51º Festival de Cinema de Gramado #3: “Angela”, de Hugo Prata

Não acho que exista estrutura mais elegante para uma cinebiografia do que abordar a vida de uma personagem a partir de um momento ou de um recorte específico. Quanto menos o roteiro parecer uma linha de tempo da Wikipedia, melhor. Em Elis, seu trabalho de estreia em longas-metragens, o diretor Hugo Prata foi superficial ao, justamente, tentar abraçar a vida — e quase todo o repertório musical — da eterna Elis Regina. Já em Angela, a aposta é outra, com Prata encenando apenas os últimos quatro meses de vida da socialite mineira Angela Diniz, quando ela se relacionou e foi assassinada por seu companheiro Raul, conhecido como Doca Street.
Infelizmente, o resultado é bastante similar ao de Elis no sentido de Angela não conseguir capturar as dimensões de sua protagonista. Inclusive, tudo parece mais esvaziado nesse segundo filme do diretor, o que se deve ao fato de que o roteiro assinado por Duda de Almeida não se expande para muito além do relacionamento entre Diniz e Doca. A dinâmica entre os dois poderia revelar várias camadas da vida pregressa da personagem e de sua personalidade, mas Angela é resumida a essa conexão tóxica com um homem que parece talhar-lhe qualquer senso de decisão e determinação. Para quem desconhece a história real, dificilmente o longa de Hugo Prata ajudará a dar uma boa contextualização sobre quem de fato foi a biografada.
Há outros problemas significativos nesse recorte de uma nota só. Assim como vimos há pouco tempo em Blondie, a protagonista é resumida ao sofrimento, e as nuances de sua “forte” personalidade são limitadas a um comportamento desbocado com quem quer que seja. Essa fragilidade se acentua na medida em que Angela é circular na dinâmica estabelecida entre o casal. O ritual é sempre o mesmo: euforia de amor, cenas de sexo com muita música, crise de ciúmes (provocados ou imaginados), brigas com violência em escalada, término e, por fim, reconciliação. Algo no mínimo redundante para um filme de quase duas horas e que deixa escapar a chance de refletir sobre a questão do abuso ao invés de somente reconstituir ou reimaginar fatos.
O maior elo de Angela é a performance de Ísis Valverde, visivelmente entregue a personagem e colocando em sua performance mais do que o roteiro lhe dá como base. Como Doca Street, Gabriel Braga Nunes não foge muito do tipo que costuma interpretar, mas se encaixa bem à forma com que o texto desenha seu personagem. Eles acabam preservando o interesse por uma história cujo desfecho sabemos que é trágico e que Angela resolve usar como ponto final. Todo o desenrolar jurídico e de opinião popular sobre o caso fica apenas para uma série de letreiros antecedendo aos créditos, o que é anticlimático e abrevia reflexões fundamentais para o projeto como um todo.
51º Festival de Cinema de Gramado #2: “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho

É impressionante como, em apenas uma década, Kleber Mendonça Filho se tornou uma das principais vozes do cinema brasileiro e, sem dúvida, um de nossos cineastas mais respeitados no exterior. Mais do que a grife acoplada a seu nome, Kleber tem uma identidade muito própria como realizador. Identidade que vem sendo lapidada com O Som ao Redor, Aquarius, Bacurau e, agora, Retratos Fantasmas, que fez sua estreia nacional no 51º Festival de Gramado fora de competição. O documentário é diferente de tudo o que ele realizou até agora, o que é sempre um bom sinal ao mesmo tempo em que também pode frustrar o público não tão sintonizado com o tema em questão.
A sinopse indica que Retratos Fantasmas é o relato do centro de Recife no século XX a partir das salas de cinema que movimentavam a população e ditavam comportamentos. No entanto, o filme rompe as fronteiras da simples homenagem ao cinema e parte para uma série de outros assuntos e reflexões — talvez até em excesso, principalmente quando falamos de um documentário inteiramente narrado por uma única voz (no caso, a de Kleber) e construído basicamente em cima de imagens de acervo. Entre as tantas coisas abarcadas, estão ali, por exemplo, várias memórias pessoais do diretor, registros históricos da cultura recifense, o cinema visto como lar e um tom memorialístico que se equilibra entre tudo o que já se foi e o que não está mais aqui.
O primeiro capítulo dos três apresentados pelo longa é, de longe, o meu favorito. Isso porque Kleber decide partir de seu íntimo para depois chegar ao centro cultural da cidade, permitindo que Retratos Fantasmas não seja “apenas” um filme sobre cinemas de rua. Do micro ao macro, o documentário explora, neste primeiro segmento, a relação do cineasta com a importante figura de sua mãe e, principalmente, a importância que o apartamento comprado por ela teve em sua formação como realizador, a ponto de ser um dos principais cenários de O Som ao Redor, seu longa-metragem de estreia. Revisitando a sua própria filmografia, Kleber não se preocupa em fazer desse um exercício de ego, e sim de perspicazes observações sobre como aquele espaço é a síntese perfeita de inúmeras transformações vividas por ele, pela cidade e pelo cinema em si.
Já os outros capítulos não me entusiasmam tanto, ainda que sigam apresentando um texto muito sagaz escrito pelo diretor. Por termos apenas a perspectiva de Kleber em uma narração praticamente ininterrupta, Retratos Fantasmas acaba se tornando um tanto exaustivo, especialmente para aqueles que, leigos no assunto, propuseram-se a embarcar em um documentário tão específico, seja sobre salas de cinema ou sobre o cenário cultural de Recife. Não que a especificidade seja um problema — ela não é, inclusive porque o roteiro dá conta de fazer as devidas contextualizações —, mas, em certos casos, ela será a régua pela qual mediremos nossa sintonia com o resultado, e esse é um ponto importante a ser considerado sobre Retratos Fantasmas.
De um ponto de vista formal, o documentário lida muitíssimo bem com o rico material de acervo que é estruturado com esmero. Mesmo o material estático, como fotos e recortes de jornais, ganha certa interação quando Kleber se move ou se aproxima para apontar ao espectador detalhes e informações que poderiam passar despercebidas. Também é eficiente a transição de Retratos Fantasmas entre o cinema norte-americano estampado com, por exemplo, marquises e cartazes de Batman e A Escolha de Sofia, e a defesa que o longa se propõe a fazer de um cinema que é nosso e que cujas salas acabam, infelizmente, reduzidas a pó para darem lugares a igrejas ou a prédios gigantes que descaracterizam toda uma cidade. E não deixem ainda de prestar atenção na trilha sonora escolhida sob medida, de Sidney Magal com O Meu Sangue Por Você até Herb Alpert com Rise.
Cinema é uma arte curiosa porque sempre me fascino com o quanto podemos admirar um filme, mas não exatamente se afeiçoar a ele. Já havia experimentado isso com o cinema de Kleber Mendonça Filho em O Som ao Redor, o que não se repetiu em Aquarius e Bacurau (produções com as quais tenho fortes conexões, em especial com o primeiro), mas agora volta a acontecer com Retratos Fantasmas. Tal sensação me traz de volta aos elogios para a filmografia construída pelo cineasta desde a sua estreia em longas-metragens no ano de 2012. E por quê? Pelo simples fato de que, mesmo nas vezes em que não fui fisgado por seus filmes, saí de todos com vários elogios a serem tecidos. Não é qualquer realizador, brasileiro ou mundial, que alcança tamanha solidez — muito menos em um espaço tão curto de tempo.
Rapidamente: “Elementos”, “Holy Spider”, “Super Mario Bros.” e “Viver”

Bill Nighy recebeu sua primeira indicação ao Oscar por Viver.
ELEMENTOS (Elemental, 2023, de Peter Sohn): Do ponto de vista visual e tecnológico, Elementos exigiu um esforço descomunal da Pixar. Foram mais de 150 mil tons de cores utilizados na paleta, o que exigiu do estúdio novos computadores para a produção. É um número impressionante se compararmos, por exemplo, com o clássico Toy Story, que contabiliza apenas 294 tons. O resultado é perceptível na tela, muito em função da extensa gama de universos que coexistem na trama, com foco nos personagens de fogo, inspirados na vida do próprio diretor Peter Sohn, que se mudou da Coréia para os Estados Unidos sem falar uma palavra sequer em inglês. Esteticamente, trata-se mesmo de uma festa para os olhos — talvez mais pela quantidade de personagens e cenários do que pelo conceito em si —, o que sustenta bastante o entretenimento diante de uma história sem grandes insights. Falta tempero ao clássico conflito envolvendo dois personagens de universos opostos que criam um laço afetivo para desgosto dos pais e das tradições. Os protagonistas são simpáticos e o modo como Elementos brinca com o cruzamento entre dois mundos também, mas o roteiro escrito pelo trio Brenda Hsueh, John Hoberg e Kat Likkel é plano ao lidar com dilemas que a própria Pixar já explorou um sem número de vezes vezes. E o fato de Peter Sohn não ser um diretor exatamente inventivo deixa Elementos limitado à escala do apenas simpático.
HOLY SPIDER (idem, 2022, de Ali Abbasi): Na cidade iraniana de Mashad, prostitutas começam a ser assassinadas, e a suspeita é a de que há um serial killer metódico envolvido nos crimes. Intrigada pela situação, uma destemida repórter (Zar Amir Ebrahimi, premiada como melhor atriz no Festival de Cannes por seu desempenho) viaja até o local para escrever sobre o caso e abraça a investigação munida de fortes convicções e posicionamentos, a ponto de se envolver mais do que o esperado em todo o enredo. Holy Spider, portanto, nos dá a ideia de esse será o centro da trama, inclusive porque seria o ponto de vista natural para um filme que se propõe a abordar a misoginia. Não é o que acontece porque o diretor e roteirista Ali Abbasi opta por dar imenso enfoque ao fanático religioso vivido por Mehdi Bajestani, descortinando em pouco tempo a identidade do serial killer e seu modo de operar. Apesar da discussão envolvendo o fanatismo religioso funcionar, a questão sobre misoginia e a forma como aquela população em específico trata as mulheres acaba ficando em segundo plano. A falta de equilíbrio entre duas tramas paralelas prejudica Holy Spider e evidencia a falta que uma diretora mulher faz na cadeira de direção, principalmente na escrita do roteiro, afinal, é um tanto quanto inexplicável o escanteamento de uma personagem feminina que tinha muito mais a dizer em todos os sentidos.
SUPER MARIO BROS. – O FILME (The Super Mario Bros. Movie, 2023, de Aaron Horvath, Michael Jelenic e Pierre Leduc): A incursão da Nintendo na produção de longas-metragens vem quebrando recordes. Somente até a data de publicação deste texto, Super Mario Bros. – O Filme já se tornou a terceira maior bilheteria para uma animação no mundo, algo perfeitamente compreensível se considerarmos o capital nostálgico de um personagem que marcou incontáveis gerações, sejam elas gamers ou não. Não é diferente comigo: muito da minha infância girou em torno das versões de Super Mario World e Super Mario Kart para o Super Nintendo, garantindo a minha cota de afeto para um filme que, justamente por ser baseado em um verdadeiro hit, tinha desafios de mesmas proporções. Não que a adaptação careça de carisma ou fan service, mas falta história mesmo no roteiro escrito por Matthew Fogel. Há também fragilidades difíceis de esconder, como a participação de Luigi, inicialmente colocado em pé de igualdade no protagonismo com Mario para depois praticamente ser esquecido pela trama, ainda que a missão central seja seu resgate. Reconheço, entretanto, que a nostalgia bate de maneiras muito diferentes no público e que ela pode ser um fator decisivo na apreciação da obra. Como os números vem provando, Super Mario Bros. acertou em cheio ao apostar nela. Colorido, acelerado e com várias tiradas, o filme capta bem o espírito do game ao mesmo tempo em que evidencia uma possível franquia, mas muito ainda a ser amadurecido em termos de narrativa.
VIVER (Living, 2022, de Oliver Hermanus): Sem ter visto o longa de 1952 dirigido por Akira Kurosawa, conferi Viver impossibilitado de tecer comparações com a obra original, o que, às vezes, costuma ser uma bênção. Devo conferir em breve o trabalho de Kurosawa para quitar essa dívida, mas o que posso dizer é que o remake dirigido pelo cineasta sul-africano Oliver Hermanus tem seu maior trunfo na interpretação do grande Bill Nighy. Ele interpreta um personagem conhecido como sr. Williams, funcionário público de Londres que busca manter a ordem em uma montanha de trabalhos burocráticos. Sobrecarregado e solitário em casa, ele recebe um diagnóstico médico que lhe dá pouco tempo de vida pela frente. O conflito em questão já foi explorado de mil e uma maneiras pelo cinema, e não é como se essa refilmagem propusesse algo de novo 70 anos após o lançamento do longa original. Só que Bill Nighy é um legítimo representante do que existe de melhor nos intérpretes britânicos, das sutilezas ao minimalismo, e evita tratar o protagonista como uma grande vítima do destino, mas sim de suas próprias escolhas e de um instransponível jeito de ser. Se o trabalho vocal já chama a atenção — Nighy fala baixíssimo, revelando um protagonista em constante autorrepressão —, Viver ainda dá ao ator momentos de “vá lá e brilhe”, como quando ele canta “The Rowan Tree” em uma noite boêmia. Vale, entretanto, o aviso: boa parte do que conhecemos do personagem vem da maneira como outros o enxergam em casa ou no trabalho, o que causa uma certa frustração por não vermos mais de Nighy e, principalmente, pelo remake nem sempre acertar no equilíbrio entre as perspectivas que formam o protagonista.
Rapidamente: “Bardo”, “Os Fabelmans”, “Império da Luz” e “Nada de Novo no Front”

Em Império da Luz, Olivia Colman busca conferir camadas a uma protagonista bastante irregular.
BARDO, FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES (Bardo, Falsa Crónica de Unas Cuantas Verdades, 2022, de Alejandro G. Iñárritu): Criticar o estilo de um cineasta vale até certo ponto. Afinal, do que adianta, por exemplo, seguir “acusando” Baz Luhrmann de “exagerado” quando ele sempre o foi em cada um de seus longas? O mesmo é válido para a filmografia do mexicano Alejandro G. Iñárritu, diretor frequentemente rotulado de ególatra, vaidoso, maneirista e ávido por aparecer mais do que a própria história. A meu ver, das duas uma: paramos de ver seus filmes porque eles não nos apetecem ou tentamos compreender de que forma o estilo do diretor contribui ou não para o relato em questão. Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades performou muito abaixo do esperado junto a público e crítica porque, talvez, seja o filme de Iñárritu que mais pese a mão em simbologias, sonhos e metáforas regados a uma pluralidade de ângulos, enquadramentos e movimentos de câmera super estilizados. Se isso um dia já lhe rendeu dois Oscars de direção consecutivos (Birdman e O Regresso), hoje parece distanciar o espectador de vez. Contudo, tratando-se de um filme amplamente inspirado em memórias e sentimentos de Iñárritu, não vejo como ele poderia fazer diferente. À parte essas questões, é interessante, por exemplo, a conversa entre pai e filho sobre identidade a partir da imigração deles próprios do México para os Estados Unidos. Já outros momentos soam repetitivos até para os moldes do diretor, como o diálogo sobre arte, sucesso e fracasso no terraço de uma festa. A longa duração de 159 minutos amplifica fragilidades e acertos, além de afetos e desafetos para com o filme. Goste-se ou não, o que ninguém pode dizer é que, com Bardo, Iñárritu se desvirtuou ou deixou de ser fiel ao seu próprio cinema.
OS FABELMANS (The Fabelmans, 2022, de Steven Spielberg): Era questão de tempo para que Steven Spielberg fizesse um filme sobre sua juventude e, principalmente, sobre como o cinema foi fundamental para a sua formação como profissional e ser humano. Não por modismo, já que há uma onda de diretores dedicados a revisitar suas vidas ou a fazer homenagens ao cinema — James Gray com Armageddon Time, Damien Chazelle com Babilônia, Sam Mendes com Império da Luz —, mas porque Os Fabelmans é um projeto muito antigo de Spielberg. E o longa reforça o afeto do consagrado por contar histórias e mostrar como não só Spielberg se descobriu do ponto de vista pessoal e profissional como também aprendeu a compreender a sua família e as pessoas a sua volta a partir do cinema. No seu primeiro roteiro desde A.I.: Inteligência Artificial, de 2001, ele volta ao passado pincelando outras questões importantes na sua formação: a relação com os pais, a origem judaica, a desmistificação do cinema como mero hobby, o primeiro e inusitado amor… Tudo é muito bem equilibrado, com uma atmosfera calorosa e personagens interpretados por atores perfeitamente escalados, do protagonista-revelação Gabriel LeBelle aos pais vividos por Michelle Williams e Paul Dano. As emoções genuínas de Os Fabelmans garantem um filme mais universal e menos nichado, algo bastante positivo, mesmo que, por vezes, o conjunto parece linear demais, sem a palpável efervescência de Amor, Sublime Amor, longa anterior de Spielberg. Também não deixa de ser um coming of age de alguém que olha para o seu passado sem julgamentos, e sim com compreensão e generosidade, como deveria acontecer com todos nós.
IMPÉRIO DA LUZ (Empire of Light, 2022, de Sam Mendes): Tenho mil restrições com o termo Oscar bait, comumente usado para se referir a filmes que parecem ter sido feitos para ganhar o Oscar. Não só acho complicado acreditar que estúdios ainda sejam guiados por esse tipo de encomenda com tanta frequência como já não é mais tão fácil prever as escolhas da Academia de Ciências Cinematográficas de Hollywood, que, de um ano para o outro, premia Green Book e Parasita, títulos extremamente opostos em qualquer ângulo. Não vejo, entretanto, outra forma de definir Império da Luz, o primeiro filme de Sam Mendes após as inúmeras consagrações de 1917. Tudo começa já no roteiro escrito por ele próprio, que mistura uma série de temas sem conseguir aprofundá-los, da homenagem às salas de cinema a transtornos mentais. Em determinada altura, Mendes também tenta versar sobre racismo ao introduzir uma história de amor protagonizada por um casal sem química. Nada se conecta, ao ponto de ninguém conseguir elevar o resultado — e, considerando nomes como Roger Deakins na fotografia e a dupla Trent Reznor e Atticus Ross na trilha sonora, isso não é pouca coisa. O peso maior acaba nas costas da protagonista Olivia Colman, que, sozinha, busca construir texturas para uma personagem bastante irregular em termos de roteiro. Lançado em dezembro nos cinemas estadunidenses para se posicionar como um candidato ao Oscar, Império da Luz foi silenciosamente ignorado por público e crítica. Mesmo descontando as expectativas criadas em função dos talentos reunidos e a efetividade de um belo teaser, não é difícil entender o porquê.
NADA DE NOVO NO FRONT (All Quiet on the Western Front, 2022, de Edward Berger): Ao contrário do que estamos acostumados a ver em muitos filmes de guerra, não há momentos heroicos e gloriosos em Nada de Novo no Front. Para falar bem a verdade, o patriotismo efervescente dos personagens vai por água abaixo logo que eles entram nas trincheiras e compreendem que todo aquele horror é um caminho sem volta. A proposta do diretor Edward Berger é mais do que traçar um retrato hiper-realista da guerra: ele quer colocar o espectador na pele dos personagens, seja através da assombrosa e retumbante trilha sonora de Volker Bertelmann ou por meio de pesadas cenas de confronto entre os soldados da Primeira Guerra Mundial. E consegue. Nada de Novo no Front impacta desde o primeiro momento em que jovens garotos, antes tão ávidos por defender sua nação, colocam o pé no campo de batalha com imenso espanto. A parte técnica tem papel fundamental, mas o acerto está mesmo nessa ideia de mostrar a vida suja, insalubre e traumatizante de pessoas comuns que se dão conta da terrível realidade a qual estão submetidas. Aqueles que não simpatizam com o filme citam obras desde Vá e Veja até 1917 para defender a tese de que Nada de Novo Front não passa de mais do mesmo no gênero. Acontece que, quando ainda precisamos testemunhar países como Rússia e Ucrânia travando batalhas descabidas, obras como essa são muito pertinentes, pois nos lembram que nunca há vencedores em guerras, apenas dolorosas destruições que, no final das contas, sequer passam perto daqueles que, confortáveis, estão tomando todas as decisões com apenas uma caneta na mão.
Independent Spirit Awards 2023: os filmes menos badalados e aqueles que dificilmente veremos no circuito comercial brasileiro
Os meses de janeiro e fevereiro trazem consigo uma série de filmes a serem conferidos em função da temporada de premiações. No meu caso, o volume acaba sendo um tantinho maior, pois, como membro da Film Independent, tenho acesso a screeners de diversos títulos indicados ao Independent Spirit Awards e que, infelizmente, muitas vezes sequer chegam ao Brasil. Lamento muito o descaso com a distribuição dessas obras porque considero o cinema independente dos Estados Unidos mais criativo e instigante do que o mainstream. Faço aqui, portanto, um apanhado dos indicados ao Spirit Awards que consegui ver na leva deste ano – e digo “consegui” porque, na correria da vida, não dei conta de tudo. Por já terem crítica publicada aqui no blog ou por serem obras já amplamente abordadas e discutidas nesta temporada. São elas: Tár, Até os Ossos, Aftersun, Entre Mulheres, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, Pearl, Depois de Yang e Uma Noite no Lago. Mesmo com tantas de fora, há títulos de sobra para serem comentados.

Lily McInerny (à frente) é uma revelação em Palm Trees and Power Lines
Começo por aquele que nem sequer o circuito comercial dos Estados Unidos chegou a lançar até agora: Our Father, the Devil. O caso desse longa é curioso porque ele concorre na categoria de melhor filme sem ter qualquer outra indicação nas demais categorias. Tendo rodado apenas festivais e ainda sem previsão de estreia, trata-se de uma obra instigante até certo ponto e bastante anticlimática quando se aproxima do desfecho. Gosto muito da interpretação de Babetida Sadjo como essa mulher atormentada pela chegada de um homem religioso no lar de idosos em que trabalha. A atmosfera que toma conta de Marie é de trauma e medo. Para o espectador, existe também a camada do mistério, já que o tal homem diz nunca ter conhecido a protagonista. O que há ali, então, de tão aterrorizante para ela? Até revelar quais são os fantasmas pairando em cena, o filme é muito bem sucedido na forma como intriga o espectador. Após, esvazia sua eficiência. A revelação não é das mais imprevisíveis, mesmo que discuta um tema sempre incômodo, o que enfraquece a expectativa construída no desenrolar da trama. E, em casos de trabalhos como Our Father, the Devil, sabemos como o resultado final depende bastante do desfecho.
Palm Trees and Power Lines também carrega sensação parecida. Na história, Lea se apaixona por um homem mais velho que parece a solução para os seus problemas com jovens imaturos de sua idade. Sabemos, no entanto, que algo de bom não sairá dali e que Tom (Jonathan Tucker) talvez tenha outras intenções no relacionamento. Assim como Our Father, the Devil, Power Trees and Power Lines tem uma excelente performance de sua protagonista, a revelação Lily McInerny. Temos certo desconforto ao acompanhar a história da personagem porque sabemos que ela está emocionalmente (e genuinamente) enredada pela nova nova paixão e que ninguém será capaz abrir seus olhos. A expectativa criada não é necessariamente compensada pelas respostas dadas, mas a diferença é que Power Trees and Power Lines, em seu minuto final, deixa uma provocação que tem tudo a ver com o conjunto, causando na plateia aquele tipo de divisão tão produtiva para debates.
Por falar em provocação, não há como deixar de fora Morte Morte Morte. A divergência em torno da explicação do tradicional “quem matou?” está longe de ser unânime, talvez porque desafie até mesmo a lógica do espectador que usa mil engrenagens para tentar prever o final. Fico do lado dos satisfeitos porque a diretora Halina Reijn leva até às últimas consequências o retrato de uma geração hiper conectada e que se julga mais esperta do que realmente é. O elenco é entrosado — com destaque para a Rachel Sennott de Shiva Baby — e a diversão é garantida. Envolvimento também não falta em Emily the Criminal, estrelado por Aubrey Plaza, que vive excelente momento na carreira com a segunda temporada de The White Lotus e com essa sua indicação ao Spirit Awards. Como uma mulher que tenta refazer a vida após passar um tempo na prisão, ela transita entre o drama e o suspense quando sua personagem se vê envolvida em um negócio escuso que e capaz de colocá-la em maus lençóis. Tudo isso faz com que a protagonista seja abordada como uma vítima. Pelo contrário. Emily nunca baixa a cabeça para ninguém e mata no peito tudo o que é consequência das suas ações e más decisões, algo que Aubrey Plaza tira de letra.

Gabrielle Union e Jeremy Pope, ambos indicados ao Spirit Awards por The Inspection
Em The Inspection, Ellis (Jeremy Pope) é outro que segura uma barra das grandes quando tem sua homossexualidade descoberta pelos colegas de exército. Não bastasse a situação constrangedora do momento, o protagonista passa a viver um tremendo pesadelo. Entre chacotas e até violências físicas, vive novamente, em diferente escala, toda rejeição já experimentada com a sua duríssima mãe (Gabrielle Union, ótima). É louvável o domínio do diretor Elegance Bratton sob o tema e pela forma como decide retratá-lo, pois The Inspection não descamba para a mera tortura do protagonista e evita embelezar seu sofrimento. O que temos aqui é a história de um jovem tentando se encontrar por caminhos tortos e tomando decisões que, no frigir dos ovos, revelam apenas alguém que quer ser visto e aceito. É aí que Ellis, interpretado com garra por Jeremy Pope, encontrará algum tipo de força, ainda que desoladora por ser sob o preço de tanta dor.
A partir de circunstâncias do dia a dia, To Leslie e Passagem abordam jornadas bastante pessoais. O primeiro, já marcado por uma indicação merecida e sem precedentes para Andrea Riseborough ao Oscar de melhor atriz, lança olhar para uma situação de doer: a de uma mulher premiada que, por vícios e equívocos, perde todo o dinheiro recebido em um prêmio de loteria. Sua vida está ladeira abaixo, a ponto de ser abandonada por um filho exausto de lidar com sua incapacidade de abandonar para sempre o álcool e de até eventualmente dormir na rua. To Leslie pode parecer um filme muito simples, mas percebam a generosidade com que o diretor Michael Morris olha para sua protagonista, sem tornar To Leslie um exercício de comiseração. Sem falar, claro, da maravilhosa performance de Andrea Riseborough, em um papel irresistível para o meu gosto pessoal.
Já Passagem dá à Jennifer Lawrence o tipo de papel que marcou sua descoberta com Inverno da Alma e que acabou sendo preterido – ou não ofertado – pela atriz após a temporada de superexposição sob a batuta de David O. Russell e com a trilogia Jogos Vorazes. Lawrence é sutil na pele de uma jovem que recém chegada da Guerra do Afeganistão quase sem poder andar ou responder por si própria. Surpreendentemente, Lynsey quer se recuperar para voltar à guerra, decisão que revela uma protagonista em conflito com a sua vida atual e pregressa. A situação muda um pouco de cenário quando ela conhece James (Brian Tyree Henry, indicado ao Oscar com justiça), um homem tão cheio de fantasmas e problemas quanto ela. Passagem dispensa o teor romântico entre os dois e acerta ao encenar uma história bastante discreta sobre o poder transformador da compreensão entre duas pessoas que se reconhecem na dor.

Regina Hall é o ponto alto da comédia Honk for Jesus. Save Your Soul.
Mudando da água para o vinho, chego à comédia Honk for Jesus. Save Your Sol., consideravelmente rejeitada por público e crítica. Não faço coro à rejeição porque me diverti muito mesmo admitindo que não há frescor no modo como a diretora Adamma Ebo aplica o formato de documentário falso, o famoso mockumentary, à história de um casal evangélico que tenta reerguer seu império e reputação com os fiéis após o marido ter sido preso sob alegações de assédio sexual. Considero importante a existência de abordagens cômicas para temas espinhosos, e que por, convenções e interesses, são dados como intocáveis, bem a exemplo das fortunas acumuladas por igrejas diante da exploração de seus fiéis. Há escracho do início ao fim Honk for Jesus. Save Your Soul., inclusive na interpretação dos protagonistas Sterling K. Brown e Regina Hall. Ela é um caso à parte como a esposa ao mesmo tempo devota ao marido e sempre silenciosamente alerta aos movimentos suspeitos do homem com quem se casou. Vale não gostar do filme? Claro. Agora, não dar os devidos louros ao trabalho de Hall é outra história…
Por último, mas não menos importante, deixo meus elogios à animação Marcel the Shell With Shoes On, adaptada do curta-metragem de mesmo nome. Não está no mapa o azar desse filme em ter que disputar prêmios no mesmo ano do belo Pinóquio de Guillermo del Toro, pois trata-se de uma pérola com grande luz fora do monopólio Disney/Pixar e representa sempre a subestimada cota de animações não necessariamente para crianças. É impossível não se apaixonar por Marcel, a conchinha de sapatos que deseja reencontrar a família e enxerga o mundo com ingenuidade e deslumbre. O mais legal do filme é isso: ele nos encharca com a pureza de Marcel, convidando o espectador a observar a vida com mais generosidade. Emocionante e divertido, Marcel the Shell With Shoes On ainda é envernizado pelo extraordinário trabalho de dublagem de Jenny Slate e Isabella Rosselllini.
Independent Spirit Awards 2023: The Lesser-Known Films and Those We’ll Hardly See in Brazilian Theaters
January and February bring a wave of films for awards season, and in my case, the volume gets a bit heavier since, as a Film Independent member, I receive screeners for various titles nominated for the Independent Spirit Awards—many of which, unfortunately, never make it to Brazil. I deeply regret the lack of distribution for these works because I consider independent U.S. cinema far more creative and engaging than the mainstream. Here, I present an overview of the Spirit Awards nominees I managed to catch this year—and I say “managed” because I couldn’t get to everything in the rush of life. Some have already been reviewed here on the blog, or are works widely covered and discussed this season. These include Tár, Bones and All, Aftersun, Women Talking, Everything Everywhere All at Once, Pearl, After Yang, and A Love Song. Even with so many left out, there’s plenty of titles to comment on.
Starting with a film that hasn’t even hit the U.S. commercial circuit yet: Our Father, the Devil. This film is interesting as it’s competing for Best Feature without any other nominations in the remaining categories. Having only toured festivals and still lacking a release date, it’s intriguing to a point but rather anticlimactic as it approaches the end. I’m particularly taken by Babetida Sadjo’s performance as this woman tormented by the arrival of a religious man at the nursing home where she works. Marie’s atmosphere is one of trauma and fear. For the viewer, there’s also an air of mystery, as the man claims never to have met her. What’s so terrifying about him, then? Up until it reveals the ghosts haunting the scenes, the film does an excellent job of drawing viewers in. However, it loses some of its power afterward. The revelation isn’t all that surprising, even if it discusses a consistently unsettling theme, which weakens the expectation built throughout the plot. And in works like Our Father, the Devil, we know the outcome heavily relies on the conclusion.
Palm Trees and Power Lines also carries a similar feeling. In the story, Lea falls for an older man who seems like a solution to her problems with immature guys her age. We know, however, that nothing good will come of this and that Tom (Jonathan Tucker) may have other intentions. Like Our Father, the Devil, Palm Trees and Power Lines benefits from its protagonist’s strong performance, this time with breakout star Lily McInerny. There’s a discomfort in following her story because we know she’s emotionally and genuinely entangled in this new romance, and no one will open her eyes. The expectation isn’t necessarily met by the answers given, but the difference is that Palm Trees and Power Lines, in its final moment, leaves a provocation that resonates with the whole piece, creating that kind of productive division among viewers ideal for debates.
Speaking of provocation, we can’t overlook Bodies Bodies Bodies. The divergence over the explanation of the classic “whodunit” is far from unanimous, perhaps because it challenges the viewer’s own logic as they work out the ending. I side with the satisfied camp because director Halina Reijn goes all out in portraying a hyperconnected generation that thinks it’s smarter than it is. The cast works well together – particularly Rachel Sennott from Shiva Baby – and the fun is guaranteed. Engagement also abounds in Emily the Criminal, starring Aubrey Plaza, who’s having a great moment in her career with the second season of The White Lotus and this Spirit Awards-nominated role. As a woman trying to rebuild her life after serving time in prison, she shifts between drama and suspense when her character gets involved in a shady business that puts her in a tough spot. This doesn’t lead to a portrayal of her as a victim. On the contrary, Emily never backs down and faces every consequence of her actions and poor decisions head-on, which Aubrey Plaza handles effortlessly.
In The Inspection, Ellis (Jeremy Pope) is another character who endures a lot when his homosexuality is discovered by his fellow soldiers. Adding to the awkwardness, he’s plunged into a nightmare. From taunts to physical violence, he relives rejection on a different scale, similar to what he already faced with his harsh mother (an excellent Gabrielle Union). Director Elegance Bratton’s command over the topic and his choice of portrayal is admirable, as The Inspection avoids indulging in mere torture of its protagonist and resists glamorizing his suffering. Instead, it’s the story of a young man trying to find himself through flawed paths, making choices that reveal someone desperate to be seen and accepted. This is where Ellis, brought to life with grit by Jeremy Pope, finds strength, albeit a strength gained at the painful cost of great suffering.
Using everyday situations, To Leslie and Causeway dive into highly personal journeys. The former, already marked by a well-deserved, unprecedented Oscar nomination for Andrea Riseborough as Best Actress, tackles a painful situation: a woman who squanders all her lottery winnings due to her vices and mistakes. Her life spirals downward, leading her to be abandoned by a son tired of dealing with her inability to quit drinking and even sleep on the streets at times. To Leslie might seem simple, but notice the compassion with which director Michael Morris regards his protagonist without turning the film into an exercise in pity. Not to mention the remarkable performance by Andrea Riseborough in a role irresistible to my personal taste.
Causeway offers Jennifer Lawrence a role reminiscent of her breakout performance in Winter’s Bone, a type of part she missed out on or wasn’t offered during her overexposure under David O. Russell and the Hunger Games trilogy. Lawrence is subtle in portraying a young woman back from the war in Afghanistan, barely able to walk or care for herself. Surprisingly, Lynsey wants to heal to return to the battlefield, a decision that reveals a protagonist at odds with her current and past life. The dynamic shifts when she meets James (Brian Tyree Henry, rightfully Oscar-nominated), a man as haunted and troubled as she is. Causeway avoids a romantic angle and wisely crafts a quiet story about the transformative power of empathy between two people who recognize each other in their pain.
Switching from serious to lighthearted, we come to Honk for Jesus. Save Your Soul, which was largely dismissed by both audiences and critics. I don’t join the rejection chorus because I had a lot of fun, even if the mockumentary style used by director Adamma Ebo to tell the story of an evangelical couple trying to restore their empire and reputation after the husband’s arrest on sexual harassment charges isn’t exactly fresh. I think comedic takes on thorny subjects are essential, especially on issues traditionally considered untouchable, such as the fortunes amassed by churches through exploiting their followers. Honk for Jesus. Save Your Soul goes all-out, especially with lead performances from Sterling K. Brown and Regina Hall. Hall stands out as the devoted wife who silently keeps an eye on her husband’s suspicious behavior. Disliking the film is fair, but overlooking Hall’s work? That’s a different story.
Last but not least, I extend my praise to the animation Marcel the Shell with Shoes On, adapted from the short film of the same name. This film has had the bad luck of competing for awards in the same year as Guillermo del Toro’s lovely Pinocchio, but it shines brightly outside the Disney/Pixar monopoly and represents the often-overlooked niche of non-kid-oriented animation. It’s impossible not to fall in love with Marcel, the tiny shell in shoes searching for his family and seeing the world with innocence and wonder. The best part is that the film immerses us in Marcel’s purity, inviting the audience to look at life with greater kindness. Both moving and fun, Marcel the Shell with Shoes On is topped off by extraordinary voice work from Jenny Slate and Isabella Rossellini.