47º Festival de Cinema de Gramado #2: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Prremiado em Cannes, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tem protagonismo coletivo.

Laureado com o Prêmio do Júri no último Festival de Cannes, Bacurau marca a volta do cinema brasileiro ao hall de vencedores do prestigiado evento francês, quebrando um jejum de 12 anos desde que Linha de Passe rendeu à Sandra Corveloni o prêmio de melhor atriz na Croisette. Com estreia programada no circuito comercial para o dia 29 de agosto, o longa-metragem dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fez sua estreia nacional na noite de abertura do 47º Festival de Cinema de Gramado, fora de competição, e a reação do público, que aplaudiu o filme em cena aberta, reforça a tese de que toda a catarse trazida por momentos cruciais e impactantes da obra diz muito sobre um país que tem sofrido um tremendo desmonte cultural e que, cada vez mais, precisa ter a sua resiliência retratada e impulsionada nas telas.

Não à toa, Bacurau faz questão de registrar em seus créditos finais que é uma produção responsável por mais de 800 empregos diretos e indiretos e também o registro de um país e de sua identidade. Tematicamente, podemos associar o filme a Aquarius, longa anterior de Kleber, no sentido de que ambos são sobre o poder da resistência e sobre como de fato agimos ao invés de apenas levantar uma bandeira com discursos fáceis. Contudo, se Aquarius seguia a escala de O Som ao Redor ao fazer o Brasil se olhar no espelho por meio de um forte realismo social, Bacurau parte para o plano da mistura de gêneros, o que pode tanto deliciar quem gosta de mergulhar em suspense, sangue e mistério como metáfora da nossa realidade quanto incomodar aqueles que preferem um quadro muito mais claro e descritivo.

Já colocando uma pitada de suspense em sua abertura com o letreiro “daqui a alguns anos…”, sem identificar exatamente quando a história acontece, Bacurau é, em uma leitura mais simplista, um filme sobre o futuro, quando, na verdade, está intimamente ligado às mazelas políticas e sociais que já foram e ainda são vividas pelo povo brasileiro. Kleber e Juliano, também autores do roteiro, constroem toda atmosfera de Bacurau a partir de uma incômoda sensação de instabilidade social que, ao longo e ao final da obra, será responsável por um crescente quadro de selvageria. Há sangue, morte, tiros e outras barbáries no filme, o que, curiosamente, é capaz de misturar náusea e um macabro conforto no espectador: se a primeira reação é de baque com tamanha violência, logo ela é amortecida pela ideia de que, de alguma forma, ela evoca a força de um povo esquecido pelo mundo e maltratado pela vida, mas que decide assumir seu protagonismo em uma importante linha de batalha.

Ambientado em um futuro próximo que não é exatamente especificado, Bacurau é, na verdade, sobre o nosso presente.

Garimpando referências, Kleber diz que é possível encontrar em Bacurau ecos de Sam Peckinpah e até de Alfred Hitchcock, mas que esse filme, na realidade, reflete sua paixão por um cinema brasileiro eternizado por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros mestres, assim como a grande admiração que ele e Juliano nutrem pelo chamado cinema de gênero. Em sua passagem pelo Festival de Cinema de Gramado, o diretor, por outro lado, salientou que refuta a ideia de usar referências como estandarte de um filme e que, apesar das críticas iniciais em Cannes terem gerado uma série de leituras em cima disso, ele dispensa a necessidade de ter que explicá-las ou iluminá-las. Nada mais justo, principalmente se tratando de um filme de difícil classificação e que precisa ser consumido pelo espectador com o mínimo possível de informações, de forma que cada um o preencha a partir de seu próprio repertório cinéfilo.

Como o próprio título já sugere, Bacurau é um longa sobre esse lugar específico e, por isso mesmo, é natural que Kleber e Juliano tenham tomado a decisão de não definir um protagonista específico para a trama. O coletivo é a força-motriz do longa, e a construção dos personagens é um mérito à parte: o roteiro consegue nos apresentar cada um dos moradores do local sem pressa ou atropelo, além de atribuir a eles características e personalidades pontuais de maneira orgânica. “Quem nasce em Bacurau é o quê”, pergunta um forasteiro a certo ponto, recebendo uma resposta curta e simbólica: “É gente!”. Tal momento retoma o posicionamento do filme de colocar diversos rostos do Brasil na tela, compondo um mosaico de personagens interessantíssimos e de bons atores, onde até mesmo uma musa como Sonia Braga abraça com ferocidade um papel tão “pequeno” quanto o dos seus demais colegas.

Saindo das fronteiras que passamos a conhecer desse lugar chamado Bacurau, temos também um outro núcleo, encabeçado pelo ator alemão Udo Kier. Nele, o desenvolvimento dos personagens e das atuações soa mais artificial. Pode ser que essa seja uma escolha consciente de Bacurau: a de fazer dos estrangeiros figuras mais caricatas e de pouca identificação, algo que, entretanto, não diminui a ligeira frustração com o distanciamento que temos com as motivações (ou ao menos o mistério) daqueles personagens. Também são um tanto diluídos os discursos reiterativos que Bacurau toma em seu terço final, sublinhando muitos pontos sobre a vilania ou sobre o desdobramento de certas figuras que, de um modo ou de outro, já estavam claros até ali. 

Em comparação aos outros dois longas assinados por Kleber, Bacurau é mais específico do que O Som ao Redor e Aquarius, mas isso não é motivo para alarde ou depreciação: ao longo de muitos anos o cineasta vem gestando esse projeto assumidamente de gênero com Juliano Dornelles e não aceitá-lo como tal é perder boa parte de sua essência e de tudo aquilo que a dupla diz com tanta propriedade. Em uma cidade fictícia onde a figura mais querida do local “gerou michê e puta, mas nenhum ladrão” e onde as pessoas buscam refúgio em escolas e museus para enfrentar ameaças mortais, Kleber e Juliano caminham por essa linha hoje tão tênue entre a ficção e a realidade para entregar o tipo de catarse que pode muito bem nos dar algum tipo de fôlego em meio à loucura e ao ódio que logo voltam a cair sobre as nossas cabeças quando voltamos à vida real após a sessão. 

4 comentários em “47º Festival de Cinema de Gramado #2: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

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