O febril momento político que o Brasil atravessa influencia Aquarius para o bem e para o mal. No sentido positivo, o novo longa-metragem do pernambucano Kleber Mendonça Filho se engrandece em diálogos como aquele em que Clara (Sonia Braga), jornalista aposentada que resiste às tentativas de uma grande empreiteira que deseja comprar seu apartamento, enfrenta Diego (Humberto Carrão) dizendo que as pessoas costumam relacionar o problema da falta de educação aos pobres, quando, na verdade, o problema do Brasil é a má educação dos ricos, pessoas que acreditam que dinheiro define caráter. Em contrapartida, os cartazes empunhados pelo elenco do filme em Cannes denunciando o indiscutível golpe que o Brasil sofre podem ofuscar a tese de que Aquarius é um filme grande por si só – e sobre muitas coisas além da provocação de contar uma história sobre uma experiência de vida que entra em rota de colisão com um poder supostamente maior.
Dividido em três partes (O Cabelo de Clara, O Amor de Clara e O Câncer de Clara), Aquarius é, antes de mais nada, o retrato de uma mulher de meia-idade com suas alegrias, anseios e frustrações, contemplando desde a sua reivindicação pela atenção dos filhos não tão presentes a uma divertidíssima noite de bebida e música com o seu grupo de melhores amigas. No meio disso tudo, vem a empreiteira Bonfim, que, após comprar todos os apartamentos do edifício da protagonista, tenta, a todo custo, convencê-la a se desfazer da moradia. Em tese, é uma trama aparentemente simples, mas Kleber Mendonça Filho, cineasta e cinéfilo experiente que é, sabe dar as devidas simbologias à jornada de uma verdadeira heroína. Sim, Clara, interpretada magistralmente por Sonia Braga em um papel que o cinema brasileiro lhe devia há décadas, é uma grande heroína – e não simplesmente por ser uma mulher que, apesar de doce, contida e aparentemente frágil, resistiu à vida inteira, inclusive a um câncer que até hoje, eventualmente, volta a assombrar sua vida. Na representação de Aquarius, a grandeza de Clara surge também a partir da personificação do mal, presente na figura do jovem empreiteiro que a cerca cada vez mais.
Interpretado com certeira ironia por Humberto Carrão, Diego representa essa geração que já nasce com o futuro nas mãos e alça voos altos e rápidos na vida. É o jovem que, mesmo tão novo, se apresenta de forma estranhamente conservadora, acreditando que nome e dinheiro são indiscutivelmente superiores a qualquer história de vida que a protagonista queira conservar no edifício onde mora. Entendemos o carinho que Clara nutre pelo prédio porque, no primeiro ato, ao encenar uma memória da protagonista, o filme desenha saudosamente um aniversário que diz tudo sobre sua família, seus amores e suas dores (e, talvez, um aparador nunca tenha tido um significado tão simbólico no cinema brasileiro). Ao passo em que Aquarius demora a apontar os caminhos que realmente vai seguir, Kleber vai, aos poucos, discretamente fazendo essa costura entre a íntima história de uma mulher de idade avançada e os significados muito maiores de cada situação. Pode ser um filme sobre resistência, maturidade, família e, principalmente, direitos – o que fica claramente exposto na grande cena em que a protagonista, em mais um embate com o jovem empreiteiro, diz que só sairá morta do edifício-título. O apartamento é de Clara. Ela quer ficar. Ela não não vai vender. E ela tem esse direito. Simples assim.
Sonia Braga, que, em inúmeras ocasiões, faz questão de afirmar que Aquarius lhe devolveu o cinema brasileiro, é impecável em todas as frentes de personalidade de sua personagem. É o típico momento em que uma grande atriz lembra o espectador, a cada minuto, do porquê ter se tornado um ícone. Todo o elenco, na realidade, é muito coeso porque fora ela e o próprio Carrão, ainda há outros atores extremamente críveis em cena, entre eles, Maeve Jinkings que, trabalhando com uma personagem difícil, tem um momento particularmente marcante em uma reunião familiar com a mãe. Com estreia comercial prevista para o dia 1º de setembro, Aquarius consolida Kleber Mendonça Filho como um de nossos maiores realizadores. É impressionante como o melhor de toda a sua carreira como jornalista e cinéfilo está novamente e plenamente convergida na tela. Assim como O Som ao Redor, é provável que nem todos comprem o conceito do estilo, mas, aos que souberem e conseguirem apreciar, Aquarius é mesmo tudo o que foi dito até agora. Mais uma vez, Gramado abre uma de suas edições em grande estilo.
Ansiosa para conferir “Aquarius”! Bom Festival, Matheus!!!!