I think it’s nice that we share the same sky.
Direção: Charlotte Wells
Roteiro: Charlotte Wells
Elenco: Frankie Corio, Paul Mescal, Celia Rowlson-Hall, Sally Messham, Ayse Parlak, Sophia Lamanova, Brooklyn Toulson, Spike Fearn, Kayleigh Coleman, Harry Perdios, Ruby Thompson, Ethan Smith, Onur Eksioglu, Cafer Karahan
Reino Unido/Estados Unidos, 2022, Drama, 102 minutos
Sinopse: Sophie reflete sobre a alegria e a melancolia das férias que ela tirou com seu pai 20 anos antes. Memórias reais e imaginárias preenchem as lacunas enquanto ela tenta reconciliar o pai que conheceu com o homem que desconhecia.
* Atenção! O texto abaixo contém spoilers envolvendo detalhes centrais do filme.
Nossas memórias não são termômetros tão confiáveis porque dependem de onde estamos agora e, principalmente, do sentido que passamos a atribuir às coisas quando tomamos alguma perspectiva. Talvez aquele relacionamento repleto de momentos felizes tenha suas lembranças distorcidas porque resultou em uma dolorosa separação. Um período difícil de anos anteriores de repente é visto de forma positiva na medida em que acabou proporcionando uma série de aprendizados. Ou, então, aquelas ensolaradas férias de infância ganham, com o passar dos anos, um ar pesado e triste, em função de tudo o que aprendemos com as dores trazidas pela vida adulta. A tônica de Aftersun, longa-metragem de estreia de Charlotte Wells, é justamente essa: abordar o tempo como ferramenta indispensável no processo de ressignificar sentimentos, percepções e vivências.
Tudo parte de uma perspectiva presente — a protagonista adulta está revisitando as gravações de um período de férias na Turquia com o pai —, mas Aftersun se situa no passado, convidando o espectador a preencher as lacunas do que está acontecendo, especialmente daquilo que uma pequena Sophie (Frankie Corio) ainda não enxerga em função da idade e só passará a entender quando se tornar adulta. Para tanto, a diretora se vale de uma narrativa cotidiana e sem grandes acontecimentos dramáticos. O que importa aqui é atmosfera. E que atmosfera! Desde os primeiros minutos percebemos o filme envolto em um certo incômodo que não condiz com os momentos supostamente felizes entre pai e filha. No final das contas, por que a alegria parece tão triste?
Wells nos torna íntimos dos personagens a partir das circunstâncias mais banais. Entre uma e outra situação, como um passeio de barco ou um banho de lama, ela revela, com muita discrição, detalhes munidos de discretos significados: os pais da protagonista são separados, Calum (Paul Mescal) se diz surpreso de ter conseguido completar 30 anos e os livros que ele leva para a viagem têm como tema a meditação. Dar pequenas pinceladas em detrimento da encenação de grandes dramas faz muito sentido para aquilo que Aftersun emula com maestria em atmosfera: o estado de depressão de Calum, que busca esconder sua condição para cumprir o esperado papel de um pai diante da filha durante em um período de férias.
Ainda que Sophie perceba mais coisas do que Calum imagina, ele, inevitavelmente, faz de tudo para manter as aparências, represando angústias e tristezas que, assim como a própria protagonista em sua versão adulta, jamais saberemos quais são. Essa barreira invisível entre os personagens não impede o roteiro de iluminar a relação dos dois. Há uma cumplicidade palpável ali, representada em cenas banalíssimas e, por isso mesmo, tão próximas da vida real. A delicadeza de Aftersun também se estende à jornada individual de Sophie, situada naquela fase da vida em que uma criança começa a se descolar dos pais para, aos poucos, começar a construir sozinha a sua identidade individual.
Parte da dor que a Sophie adulta sente vem dessa impossibilidade de ter ajudado seu pai. Não por vontade própria, e sim pelos limites da vida: sendo uma criança, ela jamais poderia imaginar ou compreender o que realmente estava se passando dentro do homem que lhe deu à vida e que, presume-se, ela viu pela última vez no corredor de um aeroporto ao final das férias. E, anterior a isso, talvez ainda mais cruel seja a ideia de nunca ter conhecido de verdade um pai que agora, sendo compreendido a partir de memórias ressignificadas, diz-lhe tanto sobre a vida e suas dificuldades. Tantas divagações são possíveis porque Aftersun nos inunda com algo cada vez mais em falta: empatia. É fácil fazer o exercício de se colocar tanto no lugar da protagonista quanto no de Calum, ambos interpretados com humanidade ímpar por Frankie Corio e Paul Mescal.
Nos minutos finais, a diretora sai um pouco do realismo com o intuito de entrelaçar passado e presente em uma das cenas mais bonitas do ano. Desafio alguém a não levá-la na memória. Falo da sequência ao som de Under Pressure, do Queen, capaz de sintetizar o universo inteiro do filme. A banda do saudoso Freddie Mercury que me perdoe, mas não conseguirei mais ouvir a canção do mesmo jeito, tamanha a emoção. Há de se tirar o chapéu para essa estreia de Charlotte Wells em longas-metragens, e fico feliz em ver que, até aqui, a produção tem sido reconhecida por público e crítica como merece. Que essa rara sensibilidade em conjugar imersão e emoção possa ser vista em outros trabalhos da diretora. E acho que vai, pois, se ela já começou assim, com um dos retratos mais verdadeiros sobre a depressão, mal posso esperar pelo que vem por aí.
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