
Rachel Senott é extraordinária em Shiva Baby, um dos filmes mais originais e aflitivos do ano.
CHERRY: INOCÊNCIA PERDIDA (Cherry, 2021, de Anthony e Joe Russo): Aparentemente preocupado em não se deixar definir apenas pelo papel de Homem-Aranha, Tom Holland tem, aos 25 anos de idade, equilibrado a carreira de herói da Marvel com filmes mais densos e dramáticos, que, afinal de contas, são parte de sua origem (ainda hoje lembro da minha grande comoção com O Impossível, onde ele era uma revelação). Foi assim no recente O Diabo de Cada Dia e agora em Cherry: Inocência Perdida, dirigido por Anthony e Joe Russo, responsáveis por dois longas do Capitão América e dos Vingadores. E é mesmo Holland que dá alguma liga a esse projeto deveras previsível. Do início ao fim, temos a eterna história do soldado traumatizado pela guerra. O ator é muito convincente como, primeiro, um jovem deslocado e sem propósito e, depois, como o soldado que se atira nas drogas em uma espiral de autodestruição e infortúnios. Falta ao longa como um todo o pulso firme de Holland, principalmente na direção dos irmãos Russo. Eles tentam a todo custo imprimir algum estilo ao resultado, mas tudo é aleatório, a ponto de, em certo momento, eles adotarem o ânus do protagonista como ponto de vista sem motivo plausível. Se a história em si já carece de ritmo e originalidade, os Russos ainda parecem tocar o barco no piloto-automático, acreditando que, ao colocarem uma pitada cool aqui e outra ali, Cherry se tornaria uma obra com personalidade. Não é o que acontece. Na verdade, a única certeza possível é a de que, sem Tom Holland, seria bastante difícil chegar ao final do filme.
QUO VADIS, AIDA? (idem, 2020, de Jasmila Žbanić): A guerra de Quo Vadis, Aida? não é necessariamente a da Bósnia quando o exército da República Sérvia assume o controle da cidade de Srebrenica, que serve como pano de fundo para este angustiante trabalho da diretora Jasmila Žbanić, e sim aquela que Aida (Jasna Đuričić) trava com ela mesma e com todos a sua volta para ter alguma chance de salvar a sua família. Ao transferir os possíveis conflitos centrados em fatos históricos para o turbilhão emocional e mental de uma protagonista desesperada, Žbanić confere a Quo Vadis, Aida? o fator imediato da empatia, fazendo com que sejamos solidários à condição da personagem e entendamos, de um ponto de vista muito íntimo e pessoal, as profundas marcas deixadas por uma grande guerra em suas principais vítimas. A tensão é crescente porque todos os conflitos são extremamente concentrados, resultado de uma duração muito enxuta (101 minutos) e de uma direção que, com segurança e insights de sobra, faz uma amarração para lá de consistente. O toque final na construção de todo o sentimento de urgência é Jasna Đuričić, naquele tipo de interpretação em que só podemos imaginar o quão exaustiva foi sua jornada emocional ao dar vida à protagonista. Indicado ao Oscar 2021 de melhor filme internacional, Quo Vadis, Aida? perdeu a estatueta para o favoritíssimo Druk: Mais Uma Rodada, mas, caso tivesse levado a estatueta de última hora, a surpresa não teria nada de desagradável. Muito pelo contrário.
SEM TEMPO PARA MORRER (No Time to Die, 2021, de Cary Joji Fukunaga): A era Daniel Craig na franquia James Bond termina muito tímida com Sem Tempo Para Morrer, que se assemelha mais aos resultados irregulares de Quantum of Solace e 007 Contra Spectre do que às excelentes surpresas de Cassino Royale e Operação Skyfall. É muito sintomático o capítulo derradeiro de Craig na franquia despertar mais emoção pela despedida do ator ao papel do que ao desfecho de seu James Bond porque, além de ser um claro sinal de desgaste da franquia na atual composição, Sem Tempo Para Morrer também não tem maiores acertos como um filme isolado. Na medida em que Craig confere a presença que o icônico personagem merece, há fragilidades como a escolha do vilão, que, no filme anterior, já era fraquíssimo nas mãos de Christoph Waltz e aqui mais uma vez tem pouca expressividade com Rami Malek, tanto pelo tom repetitivo de interpretação adotado pelo ator quanto pelo pouco espaço dado a ele. Menos ambicioso do que sugere, Sem Tempo Para Morrer tem ação basicamente protocolar e um enredo dependente demais do volume anterior e de histórias pregressas dos personagens, sem a inventividade ou a surpresa de um capítulo que poderia dar liga a todo o ciclo do personagem. O frescor acaba sob responsabilidade do elenco feminino: Léa Seydoux, reprisando o papel de Bond girl; Ana de Armas, em uma pequena, mas carismática e divertida participação; e Lashana Lynch, com um novo tipo de papel que pode se tornar recorrente na franquia garantem os vislumbres de acertos e renovações necessárias a uma transição como essa.
SHIVA BABY (idem, 2021, de Emma Seligman): Pode não parecer, mas Shiva Baby, primeiro longa-metragem de estreia de Emma Seligman, tendo como base um curta-metragem de mesmo nome e de autoria própria, é um dos filmes mais claustrofóbicos e aflitivos de 2021. E o que a diretora faz para causar essa sensação no espectador é de extrema (e inteligente) simplicidade: colocar, em uma mesma reunião familiar, o maior número de pessoas e navegar nos sentimentos e nas histórias por trás de todas as aparências que os personagens tentam manter. Tudo em um mesmo cenário e em uma mesma tarde, protagonizado por uma personagem sobrecarregada de expectativas. A personagem em questão é a jovem Danielle (Rachel Senott), interrogada de minuto em minuto, seja por familiares ou por estranhos quaisquer, sobre suas perspectivas profissionais e os rumos que está dando para a sua vida. Como se não bastasse um segredo carregado por ela e que vale não ser revelado para não estragar a surpresa, Danielle não se encaixa naquele mundo tão caótico, familiar e judaico, e o sufoco de tamanha cobrança move a tensão da trama. Rachel Sennott é extraordinária na pele da personagem porque tem a árdua tarefa de se comunicar com o espectador pelo silêncio, uma vez que somente nós estamos a par de seus tormentos. Shiva Baby é uma verdadeira crônica sobre os pré-conceitos envolvendo amadurecimento e o tempo de cada um na juventude, formando um mosaico repleto de coadjuvantes interessantes (a excelente mãe vivida por Polly Draper, a cômica participação de Jackie Hoffman) e que revela uma diretora com perfeito domínio cênico e de timing para as mais diferentes oscilações de gênero.
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