Cinema e Argumento

Rapidamente: “Bardo”, “Os Fabelmans”, “Império da Luz” e “Nada de Novo no Front”

eolightmovie

Em Império da Luz, Olivia Colman busca conferir camadas a uma protagonista bastante irregular.

BARDO, FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES (Bardo, Falsa Crónica de Unas Cuantas Verdades, 2022, de Alejandro G. Iñárritu): Criticar o estilo de um cineasta vale até certo ponto. Afinal, do que adianta, por exemplo, seguir “acusando” Baz Luhrmann de “exagerado” quando ele sempre o foi em cada um de seus longas? O mesmo é válido para a filmografia do mexicano Alejandro G. Iñárritu, diretor frequentemente rotulado de ególatra, vaidoso, maneirista e ávido por aparecer mais do que a própria história. A meu ver, das duas uma: paramos de ver seus filmes porque eles não nos apetecem ou tentamos compreender de que forma o estilo do diretor contribui ou não para o relato em questão. Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades performou muito abaixo do esperado junto a público e crítica porque, talvez, seja o filme de Iñárritu que mais pese a mão em simbologias, sonhos e metáforas regados a uma pluralidade de ângulos, enquadramentos e movimentos de câmera super estilizados. Se isso um dia já lhe rendeu dois Oscars de direção consecutivos (Birdman e O Regresso), hoje parece distanciar o espectador de vez. Contudo, tratando-se de um filme amplamente inspirado em memórias e sentimentos de Iñárritu, não vejo como ele poderia fazer diferente. À parte essas questões, é interessante, por exemplo, a conversa entre pai e filho sobre identidade a partir da imigração deles próprios do México para os Estados Unidos. Já outros momentos soam repetitivos até para os moldes do diretor, como o diálogo sobre arte, sucesso e fracasso no terraço de uma festa. A longa duração de 159 minutos amplifica fragilidades e acertos, além de afetos e desafetos para com o filme. Goste-se ou não, o que ninguém pode dizer é que, com Bardo, Iñárritu se desvirtuou ou deixou de ser fiel ao seu próprio cinema.

OS FABELMANS (The Fabelmans, 2022, de Steven Spielberg): Era questão de tempo para que Steven Spielberg fizesse um filme sobre sua juventude e, principalmente, sobre como o cinema foi fundamental para a sua formação como profissional e ser humano. Não por modismo, já que há uma onda de diretores dedicados a revisitar suas vidas ou a fazer homenagens ao cinema — James Gray com Armageddon Time, Damien Chazelle com Babilônia, Sam Mendes com Império da Luz —, mas porque Os Fabelmans é um projeto muito antigo de Spielberg. E o longa reforça o afeto do consagrado por contar histórias e mostrar como não só Spielberg se descobriu do ponto de vista pessoal e profissional como também aprendeu a compreender a sua família e as pessoas a sua volta a partir do cinema. No seu primeiro roteiro desde A.I.: Inteligência Artificial, de 2001, ele volta ao passado pincelando outras questões importantes na sua formação: a relação com os pais, a origem judaica, a desmistificação do cinema como mero hobby, o primeiro e inusitado amor… Tudo é muito bem equilibrado, com uma atmosfera calorosa e personagens interpretados por atores perfeitamente escalados, do protagonista-revelação Gabriel LeBelle aos pais vividos por Michelle Williams e Paul Dano. As emoções genuínas de Os Fabelmans garantem um filme mais universal e menos nichado, algo bastante positivo, mesmo que, por vezes, o conjunto parece linear demais, sem a palpável efervescência de Amor, Sublime Amor, longa anterior de Spielberg. Também não deixa de ser um coming of age de alguém que olha para o seu passado sem julgamentos, e sim com compreensão e generosidade, como deveria acontecer com todos nós.

IMPÉRIO DA LUZ (Empire of Light, 2022, de Sam Mendes): Tenho mil restrições com o termo Oscar bait, comumente usado para se referir a filmes que parecem ter sido feitos para ganhar o Oscar. Não só acho complicado acreditar que estúdios ainda sejam guiados por esse tipo de encomenda com tanta frequência como já não é mais tão fácil prever as escolhas da Academia de Ciências Cinematográficas de Hollywood, que, de um ano para o outro, premia Green Book e Parasita, títulos extremamente opostos em qualquer ângulo. Não vejo, entretanto, outra forma de definir Império da Luz, o primeiro filme de Sam Mendes após as inúmeras consagrações de 1917. Tudo começa já no roteiro escrito por ele próprio, que mistura uma série de temas sem conseguir aprofundá-los, da homenagem às salas de cinema a transtornos mentais. Em determinada altura, Mendes também tenta versar sobre racismo ao introduzir uma história de amor protagonizada por um casal sem química. Nada se conecta, ao ponto de ninguém conseguir elevar o resultado — e, considerando nomes como Roger Deakins na fotografia e a dupla Trent Reznor e Atticus Ross na trilha sonora, isso não é pouca coisa. O peso maior acaba nas costas da protagonista Olivia Colman, que, sozinha, busca construir texturas para uma personagem bastante irregular em termos de roteiro. Lançado em dezembro nos cinemas estadunidenses para se posicionar como um candidato ao Oscar, Império da Luz foi silenciosamente ignorado por público e crítica. Mesmo descontando as expectativas criadas em função dos talentos reunidos e a efetividade de um belo teaser, não é difícil entender o porquê.

NADA DE NOVO NO FRONT (All Quiet on the Western Front, 2022, de Edward Berger): Ao contrário do que estamos acostumados a ver em muitos filmes de guerra, não há momentos heroicos e gloriosos em Nada de Novo no Front. Para falar bem a verdade, o patriotismo efervescente dos personagens vai por água abaixo logo que eles entram nas trincheiras e compreendem que todo aquele horror é um caminho sem volta. A proposta do diretor Edward Berger é mais do que traçar um retrato hiper-realista da guerra: ele quer colocar o espectador na pele dos personagens, seja através da assombrosa e retumbante trilha sonora de Volker Bertelmann ou por meio de pesadas cenas de confronto entre os soldados da Primeira Guerra Mundial. E consegue. Nada de Novo no Front impacta desde o primeiro momento em que jovens garotos, antes tão ávidos por defender sua nação, colocam o pé no campo de batalha com imenso espanto. A parte técnica tem papel fundamental, mas o acerto está mesmo nessa ideia de mostrar a vida suja, insalubre e traumatizante de pessoas comuns que se dão conta da terrível realidade a que estão submetidos. Aqueles que não simpatizam com o filme citam obras desde Vá e Veja até 1917 para defender a tese de que Nada de Novo Front não passa de mais do mesmo no gênero. Acontece que, quando ainda precisamos testemunhar países como Rússia e Ucrânia travando batalhas, obras como essa são muito pertinentes, pois nos lembram que nunca há vencedores em guerras, apenas dolorosas destruições que, no final das contas, sequer passam perto daqueles que, confortáveis, estão tomando todas as decisões com apenas uma caneta na mão.

Independent Spirit Awards 2023: os filmes menos badalados e aqueles que dificilmente veremos no circuito comercial brasileiro

Os meses de janeiro e fevereiro trazem consigo uma série de filmes a serem conferidos em função da temporada de premiações. No meu caso, o volume acaba sendo um tantinho maior, pois, como membro da Film Independent, tenho acesso a screeners de diversos títulos indicados ao Independent Spirit Awards e que, infelizmente, muitas vezes sequer chegam ao Brasil. Lamento muito o descaso com a distribuição dessas obras porque considero o cinema independente dos Estados Unidos mais criativo e instigante do que o mainstream. Faço aqui, portanto, um apanhado dos indicados ao Spirit Awards que consegui ver na leva deste ano – e digo “consegui” porque, na correria da vida, não dei conta de tudo. Por já terem crítica publicada aqui no blog ou por serem obras já amplamente abordadas e discutidas nesta temporada. São elas: Tár, Até os Ossos, Aftersun, Entre Mulheres, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, Pearl, Depois de Yang e Uma Noite no Lago. Mesmo com tantas de fora, há títulos de sobra para serem comentados.

ptressplines

Lily McInerny (à frente) é uma revelação em Palm Trees and Power Lines

Começo por aquele que nem sequer o circuito comercial dos Estados Unidos chegou a lançar até agora: Our Father, the Devil. O caso desse longa  é curioso porque ele concorre na categoria de melhor filme sem ter qualquer outra indicação nas demais categorias. Tendo rodado apenas festivais e ainda sem previsão de estreia, trata-se de uma obra instigante até certo ponto e bastante anticlimática quando se aproxima do desfecho. Gosto muito da interpretação de Babetida Sadjo como essa mulher atormentada pela chegada de um homem religioso no lar de idosos em que trabalha. A atmosfera que toma conta de Marie é de trauma e medo. Para o espectador, existe também a camada do mistério, já que o tal homem diz nunca ter conhecido a protagonista. O que há ali, então, de tão aterrorizante para ela? Até revelar quais são os fantasmas pairando em cena, o filme é muito bem sucedido na forma como intriga o espectador. Após, esvazia sua eficiência. A revelação não é das mais imprevisíveis, mesmo que discuta um tema sempre incômodo, o que enfraquece a expectativa construída no desenrolar da trama. E, em casos de trabalhos como Our Father, the Devil, sabemos como o resultado final depende bastante do desfecho.

Palm Trees and Power Lines também carrega sensação parecida. Na história, Lea se apaixona por um homem mais velho que parece a solução para os seus problemas com jovens imaturos de sua idade. Sabemos, no entanto, que algo de bom não sairá dali e que Tom (Jonathan Tucker) talvez tenha outras intenções no relacionamento. Assim como Our Father, the Devil, Power Trees and Power Lines tem uma excelente performance de sua protagonista, a revelação Lily McInerny. Temos certo desconforto ao acompanhar a história da personagem porque sabemos que ela está emocionalmente (e genuinamente) enredada pela nova nova paixão e que ninguém será capaz abrir seus olhos. A expectativa criada não é necessariamente compensada pelas respostas dadas, mas a diferença é que Power Trees and Power Lines, em seu minuto final, deixa uma provocação que tem tudo a ver com o conjunto, causando na plateia aquele tipo de divisão tão produtiva para debates.

Por falar em provocação, não há como deixar de fora Morte Morte Morte. A divergência em torno da explicação do tradicional “quem matou?” está longe de ser unânime, talvez porque desafie até mesmo a lógica do espectador que usa mil engrenagens para tentar prever o final. Fico do lado dos satisfeitos porque a diretora Halina Reijn leva até às últimas consequências o retrato de uma geração hiper conectada e que se julga mais esperta do que realmente é. O elenco é entrosado — com destaque para a Rachel Sennott de Shiva Baby — e a diversão é garantida. Envolvimento também não falta em Emily the Criminal, estrelado por Aubrey Plaza, que vive excelente momento na carreira com a segunda temporada de The White Lotus e com essa sua indicação ao Spirit Awards. Como uma mulher que tenta refazer a vida após passar um tempo na prisão, ela transita entre o drama e o suspense quando sua personagem se vê envolvida em um negócio escuso que e capaz de colocá-la em maus lençóis. Tudo isso faz com que a protagonista seja abordada como uma vítima. Pelo contrário. Emily nunca baixa a cabeça para ninguém e mata no peito tudo o que é consequência das suas ações e más decisões, algo que Aubrey Plaza tira de letra.

theinspectionmovie

Gabrielle Union e Jeremy Pope, ambos indicados ao Spirit Awards por The Inspection

Em The Inspection, Ellis (Jeremy Pope) é outro que segura uma barra das grandes quando tem sua homossexualidade descoberta pelos colegas de exército. Não bastasse a situação constrangedora do momento, o protagonista passa a viver um tremendo pesadelo. Entre chacotas e até violências físicas, vive novamente, em diferente escala, toda rejeição já experimentada com a sua duríssima mãe (Gabrielle Union, ótima). É louvável o domínio do diretor Elegance Bratton sob o tema e pela forma como decide retratá-lo, pois The Inspection não descamba para a mera tortura do protagonista e evita embelezar seu sofrimento. O que temos aqui é a história de um jovem tentando se encontrar por caminhos tortos e tomando decisões que, no frigir dos ovos, revelam apenas alguém que quer ser visto e aceito. É aí que Ellis, interpretado com garra por Jeremy Pope, encontrará algum tipo de força, ainda que desoladora por ser sob o preço de tanta dor.

A partir de circunstâncias do dia a dia, To Leslie e Passagem abordam jornadas bastante pessoais. O primeiro, já marcado por uma indicação merecida e sem precedentes para Andrea Riseborough ao Oscar de melhor atriz, lança olhar para uma situação de doer: a de uma mulher premiada que, por vícios e equívocos, perde todo o dinheiro recebido em um prêmio de loteria. Sua vida está ladeira abaixo, a ponto de ser abandonada por um filho exausto de lidar com sua incapacidade de abandonar para sempre o álcool e de até eventualmente dormir na rua. To Leslie pode parecer um filme muito simples, mas percebam a generosidade com que o diretor Michael Morris olha para sua protagonista, sem tornar To Leslie um exercício de comiseração. Sem falar, claro, da maravilhosa performance de Andrea Riseborough, em um papel irresistível para o meu gosto pessoal.

Passagem dá à Jennifer Lawrence o tipo de papel que marcou sua descoberta com Inverno da Alma e que acabou sendo preterido – ou não ofertado – pela atriz após a temporada de superexposição sob a batuta de David O. Russell e com a trilogia Jogos Vorazes. Lawrence é sutil na pele de uma jovem que recém chegada da Guerra do Afeganistão quase sem poder andar ou responder por si própria. Surpreendentemente, Lynsey quer se recuperar para voltar à guerra, decisão que revela uma protagonista em conflito com a sua vida atual e pregressa. A situação muda um pouco de cenário quando ela conhece James (Brian Tyree Henry, indicado ao Oscar com justiça), um homem tão cheio de fantasmas e problemas quanto ela. Passagem dispensa o teor romântico entre os dois e acerta ao encenar uma história bastante discreta sobre o poder transformador da compreensão entre duas pessoas que se reconhecem na dor.

hjesusysoul

Regina Hall é o ponto alto da comédia Honk for Jesus. Save Your Soul.

Mudando da água para o vinho, chego à comédia Honk for Jesus. Save Your Sol., consideravelmente rejeitada por público e crítica. Não faço coro à rejeição porque me diverti muito mesmo admitindo que não há frescor no modo como a diretora Adamma Ebo aplica o formato de documentário falso, o famoso mockumentary, à história de um casal evangélico que tenta reerguer seu império e reputação com os fiéis após o marido ter sido preso sob alegações de assédio sexual. Considero importante a existência de abordagens cômicas para temas espinhosos, e que por, convenções e interesses, são dados como intocáveis, bem a exemplo das fortunas acumuladas por igrejas diante da exploração de seus fiéis. Há escracho do início ao fim Honk for Jesus. Save Your Soul., inclusive na interpretação dos protagonistas Sterling K. Brown e Regina Hall. Ela é um caso à parte como a esposa ao mesmo tempo devota ao marido e sempre silenciosamente alerta aos movimentos suspeitos do homem com quem se casou. Vale não gostar do filme? Claro. Agora, não dar os devidos louros ao trabalho de Hall é outra história…

Por último, mas não menos importante, deixo meus elogios à animação Marcel the Shell With Shoes On, adaptada do curta-metragem de mesmo nome. Não está no mapa o azar desse filme em ter que disputar prêmios no mesmo ano do belo Pinóquio de Guillermo del Toro, pois trata-se de uma pérola com grande luz fora do monopólio Disney/Pixar e representa sempre a subestimada cota de animações não necessariamente para crianças. É impossível não se apaixonar por Marcel, a conchinha de sapatos que deseja reencontrar a família e enxerga o mundo com ingenuidade e deslumbre. O mais legal do filme é isso: ele nos encharca com a pureza de Marcel, convidando o espectador a observar a vida com mais generosidade. Emocionante e divertido, Marcel the Shell With Shoes On ainda é envernizado pelo extraordinário trabalho de dublagem de Jenny Slate e Isabella Rosselllini.

“A Baleia”: Darren Aronofsky aposta em drama mais intimista, mas quem está realmente no comando é Brendan Fraser

I need to know that I have done one right thing with my life.

thewhaleposter

Direção: Darren Aronofsky

Roteiro: Samuel D. Hunter, baseado no espetáculo “The Whale”, de autoria própria

Elenco: Brendan Fraser, Sadie Sink, Hong Chau, Ty Simpkins, Samantha Morton, Sathya Sridharan, Jacey Sink

The Whale, EUA, 2022, Drama, 117 minutos

Sinopse: Charlie (Brendan Fraser) é um professor de inglês recluso, que vive com obesidade severa e luta contra um transtorno de compulsão alimentar,. Ele dá aulas online, mas sempre deixa a webcam desligada, com medo de sua aparência. Apesar de viver sozinho, ele é cuidado pela sua amiga e enfermeira, Liz (Hong Chau), e quer se reconectar com a filha adolescente que abandonou anos atrás, reparando seus erros do passado.

thewhalemovie

Com cerca de 270 kg, Charlie (Brendan Fraser) usa instrumentos para juntar coisas do chão porque já não consegue mais se agachar. Também precisa de equipamentos para conseguir levantar da cama ou tomar banho. Com a pressão na casa dos 23 por 18, sequer consegue dar uma risada, pois imediatamente se engasga, começa a tossir e sente uma pontada no coração. E, mesmo assim, Charlie se recusa a ir ao hospital ou fazer qualquer coisa para amenizar sua situação. A desculpa é a de que se endividaria em hospitais, mas não demora muito para que o espectador perceba que ele não quer fazer nada em relação a isso. Na verdade, o protagonista de A Baleia já desistiu da vida e não faz questão de mover um centímetro sequer para reverter a tragédia anunciada de sua morte.

Não é de hoje que o diretor Darren Aronofsky mergulha na destruição de personagens. Do perturbador Réquiem Para Um até o mais recente e polêmico Mãe!, sua predileção é pela espiral que leva personagens ao fundo do poço ou, pelo menos, a um mundo paralelo à realidade. A Baleia permanece nessa mesma esteira com uma sutil diferença: no filme, Charlie orquestra conscientemente a sua própria destruição. E isso causa um incômodo gigantesco, pois, a cada mordida desesperada que ele dá em pedaços de pizzas ou barras de chocolates, sabemos que isso pode lhe custar a vida — e que, ao contrário de nós, ele não está nem aí. O filme, portanto, se encarregará de ilustrar as razões que levaram o protagonista até ali e o que ele quer deixar (ou não) para as pouquíssimas pessoas da sua vida.

Samuel D. Hunter escreve a adaptação do seu espetáculo homônimo pincelando temas como religião, sexualidade e paternidade, preservando várias dinâmicas teatrais. A Baleia se dá em apenas um único espaço e se encarrega de promover um entra e sai de personagens que irão descortinar detalhes até então desconhecidos pelo espectador. Aronofsky escapa da armadilha de fazer um teatro filmado, ainda que isso não lhe garanta um êxito completo. Difícil saber até que ponto Hunter teve a palavra final sobre o que seria preservado ou não do espetáculo, mas há diversas barrigas na adaptação quanto ao uso de personagens secundários, como a filha vivida por Sadie Sink, que não precisava de tanta presença, até porque o filme pesa a mão na construção da imagem de uma adolescente rebelde.

Os subtextos seguem um caminho semelhante com arestas que poderiam ser tranquilamente aparadas. É o caso de boa parte das aparições de Thomas (Ty Simpkins), um missionário que salva Charlie em um momento crucial e tenta convencê-lo a buscar por algum tipo de redenção. Via de regra, A Baleia é sempre melhor quando o personagem se revela a partir do convívio com pessoas que estão há bastante tempo na sua vida. Nesse sentido, ao contrário da filha, a enfermeira Liz (Hong Chau) é um acerto  no que se refere à dramatização, uma vez que ela se vê em uma delicada encruzilhada: ao mesmo tempo em que quer fazer de tudo para salvar o amigo, também acata a decisão tomada por ele de não sair mais de casa e viver do jeito que está.

Não é errado dizer que se trata do filme mais “intimista” de Darren Aronofsky. Afinal, tudo se dá no apartamento do protagonista em dias banais, com pessoas comuns e sem grandes ambições. A contradição é que Aronofsky nunca foi um diretor necessariamente afeito a esse estilo. Pelo contrário. Na realidade, a ambição — seja ela temática ou de proporções técnicas — é que sempre foi uma marca da sua carreira, e isso parece ser algo do qual ele não abre mão. Isso acaba prejudicando A Baleia, pois o diretor quer engrandecer essa história a cada minuto, inclusive nos momentos em que ela necessita de tons amenos ou a simples articulação entre texto e interpretação. Percebam a trilha sonora de Rob Simonsen: apesar de boa, é usada em demasia, trazendo gravidade e incômodo em sequências que já falam por si só em tais aspectos.

O próprio protagonista basta para que A Baleia tenha o devido impacto, por mais que estejamos diante de um longa-metragem suscetível a diversas polêmicas e problematizações. Enquanto é compreensível que parte do público acuse o filme de gordofobia em função da miserabilidade aplicada à condição do protagonista, vejo tudo como uma questão não tão simplista assim. Quando Charlie pergunta ao missionário se ele acha seu corpo nojento, fica evidente que ele reconhece a maneira com que a sociedade olha para o seu tamanho. Os 270 kg são a representação de alguém que, a partir de uma dolorosa perda pessoal, terminou submerso em depressão, isolamento e ataques de ansiedade. Definitivamente não enxergo a representação de Charlie como um ato de má fé vindo de um roteirista que já passou para uma luta contra desordens alimentares.

O que não funciona tão bem na construção do protagonista é a maneira com que A Baleia o torna um mártir acima do bem e do mal. Com muita generosidade, Charlie perdoa e compreende todas as pessoas, mesmo quando elas não dão razão para isso, em especial a filha que, muitas vezes, beira o insuportável. É uma posição que, de vez em quando, soa artificial, mas que Brendan Fraser compensa amplamente e um pouco mais. Ele nunca parece engessado pelas pesadas (e impecáveis) próteses, que são parte fundamental da sua interpretação. Impressiona como Fraser se comunica através do olhar e dos movimentos físicos tão complicados desse homem sem presente e sem futuro. Ele faz de Charlie um personagem crível, múltiplo e íntimo. É a chance de uma carreira e, a cada momento, o ator parece saber disso. Somente por ele, se não também pelo desconforto propositalmente trabalhado ao longo da projeção, A Baleia já vale a pena.

Rapidamente: “Avatar: O Caminho da Água”, “Blonde”, “Close” e “Top Gun: Maverick”

closebelgium

Eden Dambrine é uma revelação no dilacerante Close, oitavo filme a garantir para a Bélgica uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional

AVATAR: O CAMINHO DA ÁGUA (Avatar: The Way of Water, 2023, de James Cameron): Se há algo em que James Cameron nunca falha é em entregar aquilo o que sempre prometeu. Avatar: O Caminho da Água não foge à regra. É espetáculo vistoso e capaz de preencher a tela, justificando tanto tempo de espera desde o lançamento do filme original em 2009. E não é impacto válido apenas para quem tem a oportunidade de ver na melhor sala possível: aposto boa parte das minhas fichas que essa continuação, assim como todos os filmes de Cameron, preservará sua grandiosidade em qualquer tela. E, digamos, que para por aí, pois O Caminho da Água tem dois problemas centrais, começando pela ausência do fator surpresa. Já conhecemos profundamente a terra de Pandora e sua impressionante estética, algo que Cameron tenta contornar — às vezes acertando, outras não — ao levar os personagens para uma outra localização dentro daquele universo. Sem a efervescência de algo novo em termos de espetáculo, o peso maior recai sobre o roteiro, sempre um calcanhar de Aquiles na filmografia do diretor. E a má notícia é que o texto de O Caminho da Água se revela fraco até mesmo para o padrão James Cameron. Com exceção da baixa de um ou outro personagem e dos comoventes instintos parentais dos protagonistas para proteger seus filhos, essa sequência chove no molhado e termina quase como se nada tivesse acontecido em termos práticos ao longo de mais de três horas, além de se repetir na preguiçosa reciclagem do vilão. No geral, em termos comparativos com o filme anterior, não são bons indícios para uma franquia que Cameron já revelou planejar até um quarto, quinto, sexto ou sétimo longa-metragem…

BLONDE (idem, 2022, de Andrew Dominik): Antes Blonde fosse apenas um projeto ruim desmerecedor do talento a sua protagonista, uma vez que desses temos aos montes, ainda mais quando falamos sobre cinebiografias. A questão com esse filme sobre a vida do ícone Marilyn Monroe é outra: a de mau gosto mesmo. Tendo como base o livro homônimo de Joyce Carol Oates, o diretor Andrew Dominik (O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford) usa um viés assumidamente imaginativo apenas para torturar Marilyn Monroe. Não que a protagonista de clássicos como O Pecado Mora ao Lado e Os Homens Preferem as Loiras tenha tido uma vida fácil. Pelo contrário. Agora, resumi-la a isso é desonrar a lembrança de uma das maiores estrelas já aclamadas em Hollywood. A cruz carregada pela protagonista é tão pesada o tempo inteiro que, em certo ponto, o drama acaba se banalizando. Dominik tem imensas virtudes ao compor imagens — não à toa, a fotografia de Chayse Irvin e a trilha de Nick Cave e Warren Ellis brilham mesmo com todos os problemas amontoados —, mas, neste caso, falta o mínimo de calibragem para abarcar melhor tantas emoções que, por si próprias, já são deveras pesadas. Blonde é longuíssimo e, diante de tanto sofrimento, comete até a proeza de transformar Marilyn Monroe em uma protagonista das mais chatas. Ainda assim, com tudo trabalhando contra, Ana de Armas sobrevive e vai além. Sua performance acerta na meticulosidade de técnica e sensibilidade, expondo nuances e observações que o seu próprio filme parece incapaz de perceber — ou pior, de aceitar como bons caminhos a serem seguidos.

CLOSE (idem, 2022, de Lukas Dhont): Evite a qualquer custo spoilers envolvendo Close, título que marca a oitava indicação da Bélgica ao Oscar de melhor filme internacional. Saber de antemão o núcleo das emoções deste segundo longa-metragem de Lukas Dhont afeta a construção de impacto da jornada nada fácil de uma amizade entre dois jovens garotos. Pelo menos em anos recentes, não tenho lembrança de um coming of age tão doloroso e que confie tanto no espectador para absorver uma situação difícil e incômoda. Se, do ponto de definição, o coming of age é uma história em que determinado personagem sai da infância para adentrar a vida adulta, Close dramatiza esse rito ao se concentrar no que acontece quando alguém é obrigado a administrar emoções complicadíssimas até mesmo para adultos. Na mistura, coloca ainda outro dilema delicado: por que a sociedade cobra tantas respostas e definições em uma fase da vida amplamente marcada pela (auto)descoberta e pela busca do entendimento daquilo que se quer ser, fazer ou sentir? Por que é exigido que uma criança seja de um jeito ou de outro quando nem ela própria começou a pensar em quem deseja se tornar? Assim como no devastador Alabama Monroe, a Bélgica está mais uma vez sob os holofotes mundiais com uma obra difícil de assistir pela franqueza com que mapeia os desdobramentos de uma situação responsável por deixar marcas indeléveis para toda a vida. Na dianteira do elenco, o jovem Eden Dambrine é uma revelação e entrega desempenho incrivelmente maduro. E, para quem gosta de trilhas sonoras, vale prestar atenção nas composições instrumentais de Valentin Hadjadj, todas no equilíbrio certo entre a dor e a beleza.

TOP GUN: MAVERICK (idem, 2022, de Joseph Kosinski): Ninguém imaginava que Top Gun: Maverick pudesse ir tão longe. O sucesso de bilheteria, claro, era esperado, mas o que surpreendeu mesmo foi o amplo reconhecimento da crítica e as suas seis indicações ao Oscar, incluindo as de melhor filme e roteiro adaptado. Além de ser um longa com adrenalina toda vez que aposta na adrenalina das cenas aéreas, Top Gun: Maverick reforça o talento do cineasta Joseph Kosinski em orquestrar a parte técnica, algo perceptível desde a sua estreia na direção de longas-metragens com Tron: O Legado. Diverte e frequentemente empolga de maneira que seu sucesso com o público seja inquestionável. De bandeja, a sequência do longa-metragem original de 1986 termina ao som de Hold My Hand, ótima canção de Lady Gaga também indicada ao Oscar. Ainda assim, é de se estranhar tantas honrarias a ponto de Top Gun: Maverick ter sido considerado o melhor filme do ano pelo National Board of Review. Não é para tanto. Por outro lado, pode ser que uma caraterística da qual eu não compartilho pese bastante na avaliação: a nostalgia. Kosinski preserva intacta uma certa áurea dos anos 1980, compilando referências a personagens e acontecimentos passados, lembranças ainda muito presentes para o protagonista interpretado por Tom Cruise e um punhado de voos incríveis (e potencializados pela evolução técnica do cinema desde os anos 1980). Já para aquele espectador que não tem relação com o filme original ou caiu de paraquedas na continuação, é provável que, dramaticamente falando, tudo soe um pouco datado e (bastante) cafona. Ou seja, como sempre acontece no cinema, tudo é questão de ponto de vista.

“Entre Mulheres” dialoga sobre as interseções, discordâncias e tragédias de um violentado universo feminino

Why does love — the absence of love, the end of love, the need for love — result in so much violence?

wtalkingposter

Direção: Sarah Polley

Roteiro: Sarah Polley, baseado no romance “Women Talking”, de Miriam Toews

Elenco: Jessie Buckley, Rooney Mara, Claire Foy, Ben Whishaw, Judith Ivey, Kate Hallett, Emily Mitchell, Liv McNeil, Sheila McCarthy, Michelle McLeod, Frances McDormand, Kira Guloien, Shayla Brown

Women Talking, EUA, 2022, Drama, 104 minutos

Sinopse: Em 2010, as mulheres de uma comunidade religiosa isolada lutam para conciliar sua realidade com sua fé. (Adoro Cinema)

wtalkingmovie

O título original — Women Talking, ou seja, mulheres falando/conversando, em uma tradução literal — é mais fiel ao que a diretora Sarah Polley encena neste seu quarto longa-metragem, chamado aqui no Brasil de Entre Mulheres. Literalmente, a adaptação do livro homônimo lançado por Miriam Toews em 2018 traz várias personagens que, durante pouco mais de 90 minutos, discutem se devem ou não fugir da comunidade religiosa em que (con)vivem com homens abusadores e violentos, muitas vezes dentro de suas próprias casas. Não é coisa do século passado: apesar dos figurinos e da direção de arte evocarem tempos antigos, Entre Mulheres deixa uma incômoda sensação de que, seja em que época for, o sistema patriarcal segue, de um jeito ou de outro, dolorosamente enraizado em todos os cantos do mundo.

Sarah Polley estreou na direção de longas-metragens aos 27 anos de idade com uma maturidade impressionante. Seu Longe Dela, de 2006, é ímpar na sensibilidade com que fala sobre um tema à época bastante distante daquela jovem cineasta: as transformações trazidas pelo Mal de Alzheimer a um casamento de mais de quatro décadas. Agora, dez anos após ter realizado o pessoalíssimo documentário Histórias Que Contamos, ela demonstra que sua habilidade como narradora segue intacta com Entre Mulheres. Mais do que isso, Polley pega um formato em que é fácil resvalar para a linguagem teatral para colocar na tela um filme dinâmico e que, do ponto de vista temático, discute as violências dirigidas ao universo feminino sem cair em discursos fáceis.

Tudo o que Sarah Polley não quer é, justamente, respostas prontas, aproveitando muito bem personagens em conflito sobre sair ou não da tal comunidade em que vivem. Há aquelas convictas de que, por só conhecerem uma única realidade durante toda uma vida, não conseguirão sobreviver sem os homens. Já uma personagem específica é categórica: ele será capaz de matar para defender as filhas caso continue onde está. Mulheres de diferentes gerações e convicções analisam todos os cenários — e, a partir deles, Polley versa sobre violência, costumes, ideais, as trágicas universalidades que unem as mulheres e, por que não, as discordâncias existentes entre pessoas que teoricamente deveriam estar de acordo em prol de um bem maior.

Entre Mulheres não deixa de ser uma celebração ao diálogo, com toda atenção aos detalhes e às camadas que apenas um olhar feminino poderia conferir a um projeto como esse. Também tem tempo para tecer reflexões com calma porque os homens estão fora de quadro, com exceção do personagem de Ben Whishaw, por razões logo explicadas pelo roteiro. Deixar os homens de fora é uma jogada acertada porque assim Polley outra vez confere atenção prática às mulheres, colocando-as como nosso ponto de referência em relação aos conflitos e suas urgências. Sabemos o que sabemos por causa delas e confiamos em cada palavra quando o roteiro nos insere em todas as conversas como se estivéssemos ali, ouvindo atentamente as idas e vindas de reflexões e argumentos.

Ao mesmo tempo, ser de natureza “palavrosa” não faz de Entre Mulheres um apanhado inchado de observações e personagens. O roteiro mais ambicioso da carreira de Polley até aqui se garante porque é instigante ao deixar o espectador curioso pela resolução. Conseguirão aquelas mulheres chegarem a um acordo? E, se não houver unanimidade, como ficam as que discordam ou que não desejam seguir a maioria? Elas literalmente colocam no papel os prós e os contras de todos os possíveis caminhos e, para além das palavras, ganham vida nas mãos de um grupo extraordinário de atrizes, com direito a uma participação muito pequena de Frances McDormand, também produtora do longa.

De intérpretes já bastante conhecidas do público, como Claire Foy e Ronney Mara, a outras nem tanto, a exemplo de Michelle McLeod e August Winter (a segunda interpretando uma menina que passa a se identificar e a se vestir como um garoto), o elenco se caracteriza por uma colaboração generosa e equivalente entre as atrizes. Meu destaque particular fica com Jessie Buckley, que dá vida à personagem mais espinhosa de todas, daquele tipo que tem resposta para tudo e que caminha por uma linha muito tênue entre praticidade e um senso para lá de individualista. Sua reatividade levanta boa parte dos conflitos e diz mais sobre seus medos e anseios do que ela própria está disposta a admitir.

Por não ter lido o livro original de Miriam Towes — que, por sua vez, toma como inspiração o caso real de uma pequena comunidade boliviana em que nove homens drogavam e abusavam de mulheres locais —, fico sem poder dizer o quanto a adaptação é fiel ou transcende a obra que toma como base. Contudo, isoladamente como cinema, Entre Mulheres é uma excelente pedida para quem, assim como eu, acredita que a concisão de um bom roteiro, um ótimo elenco e uma direção que sabe o que está fazendo rende muito mais do que qualquer pirotecnia. Em uma de suas entrevistas sobre o filme, Sarah Polley apontou como a fotografia de tons dessaturados evoca à ideia de que o universo daquelas mulheres — e os conflitos inerentes a ele — já desapareceu há muitos anos. Otimismo demais diante das tragédias que ainda vemos por aí? Talvez. Mas envernizado por uma esperança que Polley traz com as pequenas grandes qualidades que lhe firmaram como uma cineasta para se acompanhar sempre.

%d blogueiros gostam disto: