Os meses de janeiro e fevereiro trazem consigo uma série de filmes a serem conferidos em função da temporada de premiações. No meu caso, o volume acaba sendo um tantinho maior, pois, como membro da Film Independent, tenho acesso a screeners de diversos títulos indicados ao Independent Spirit Awards e que, infelizmente, muitas vezes sequer chegam ao Brasil. Lamento muito o descaso com a distribuição dessas obras porque considero o cinema independente dos Estados Unidos mais criativo e instigante do que o mainstream. Faço aqui, portanto, um apanhado dos indicados ao Spirit Awards que consegui ver na leva deste ano – e digo “consegui” porque, na correria da vida, não dei conta de tudo. Por já terem crítica publicada aqui no blog ou por serem obras já amplamente abordadas e discutidas nesta temporada. São elas: Tár, Até os Ossos, Aftersun, Entre Mulheres, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, Pearl, Depois de Yang e Uma Noite no Lago. Mesmo com tantas de fora, há títulos de sobra para serem comentados.

Lily McInerny (à frente) é uma revelação em Palm Trees and Power Lines
Começo por aquele que nem sequer o circuito comercial dos Estados Unidos chegou a lançar até agora: Our Father, the Devil. O caso desse longa é curioso porque ele concorre na categoria de melhor filme sem ter qualquer outra indicação nas demais categorias. Tendo rodado apenas festivais e ainda sem previsão de estreia, trata-se de uma obra instigante até certo ponto e bastante anticlimática quando se aproxima do desfecho. Gosto muito da interpretação de Babetida Sadjo como essa mulher atormentada pela chegada de um homem religioso no lar de idosos em que trabalha. A atmosfera que toma conta de Marie é de trauma e medo. Para o espectador, existe também a camada do mistério, já que o tal homem diz nunca ter conhecido a protagonista. O que há ali, então, de tão aterrorizante para ela? Até revelar quais são os fantasmas pairando em cena, o filme é muito bem sucedido na forma como intriga o espectador. Após, esvazia sua eficiência. A revelação não é das mais imprevisíveis, mesmo que discuta um tema sempre incômodo, o que enfraquece a expectativa construída no desenrolar da trama. E, em casos de trabalhos como Our Father, the Devil, sabemos como o resultado final depende bastante do desfecho.
Palm Trees and Power Lines também carrega sensação parecida. Na história, Lea se apaixona por um homem mais velho que parece a solução para os seus problemas com jovens imaturos de sua idade. Sabemos, no entanto, que algo de bom não sairá dali e que Tom (Jonathan Tucker) talvez tenha outras intenções no relacionamento. Assim como Our Father, the Devil, Power Trees and Power Lines tem uma excelente performance de sua protagonista, a revelação Lily McInerny. Temos certo desconforto ao acompanhar a história da personagem porque sabemos que ela está emocionalmente (e genuinamente) enredada pela nova nova paixão e que ninguém será capaz abrir seus olhos. A expectativa criada não é necessariamente compensada pelas respostas dadas, mas a diferença é que Power Trees and Power Lines, em seu minuto final, deixa uma provocação que tem tudo a ver com o conjunto, causando na plateia aquele tipo de divisão tão produtiva para debates.
Por falar em provocação, não há como deixar de fora Morte Morte Morte. A divergência em torno da explicação do tradicional “quem matou?” está longe de ser unânime, talvez porque desafie até mesmo a lógica do espectador que usa mil engrenagens para tentar prever o final. Fico do lado dos satisfeitos porque a diretora Halina Reijn leva até às últimas consequências o retrato de uma geração hiper conectada e que se julga mais esperta do que realmente é. O elenco é entrosado — com destaque para a Rachel Sennott de Shiva Baby — e a diversão é garantida. Envolvimento também não falta em Emily the Criminal, estrelado por Aubrey Plaza, que vive excelente momento na carreira com a segunda temporada de The White Lotus e com essa sua indicação ao Spirit Awards. Como uma mulher que tenta refazer a vida após passar um tempo na prisão, ela transita entre o drama e o suspense quando sua personagem se vê envolvida em um negócio escuso que e capaz de colocá-la em maus lençóis. Tudo isso faz com que a protagonista seja abordada como uma vítima. Pelo contrário. Emily nunca baixa a cabeça para ninguém e mata no peito tudo o que é consequência das suas ações e más decisões, algo que Aubrey Plaza tira de letra.

Gabrielle Union e Jeremy Pope, ambos indicados ao Spirit Awards por The Inspection
Em The Inspection, Ellis (Jeremy Pope) é outro que segura uma barra das grandes quando tem sua homossexualidade descoberta pelos colegas de exército. Não bastasse a situação constrangedora do momento, o protagonista passa a viver um tremendo pesadelo. Entre chacotas e até violências físicas, vive novamente, em diferente escala, toda rejeição já experimentada com a sua duríssima mãe (Gabrielle Union, ótima). É louvável o domínio do diretor Elegance Bratton sob o tema e pela forma como decide retratá-lo, pois The Inspection não descamba para a mera tortura do protagonista e evita embelezar seu sofrimento. O que temos aqui é a história de um jovem tentando se encontrar por caminhos tortos e tomando decisões que, no frigir dos ovos, revelam apenas alguém que quer ser visto e aceito. É aí que Ellis, interpretado com garra por Jeremy Pope, encontrará algum tipo de força, ainda que desoladora por ser sob o preço de tanta dor.
A partir de circunstâncias do dia a dia, To Leslie e Passagem abordam jornadas bastante pessoais. O primeiro, já marcado por uma indicação merecida e sem precedentes para Andrea Riseborough ao Oscar de melhor atriz, lança olhar para uma situação de doer: a de uma mulher premiada que, por vícios e equívocos, perde todo o dinheiro recebido em um prêmio de loteria. Sua vida está ladeira abaixo, a ponto de ser abandonada por um filho exausto de lidar com sua incapacidade de abandonar para sempre o álcool e de até eventualmente dormir na rua. To Leslie pode parecer um filme muito simples, mas percebam a generosidade com que o diretor Michael Morris olha para sua protagonista, sem tornar To Leslie um exercício de comiseração. Sem falar, claro, da maravilhosa performance de Andrea Riseborough, em um papel irresistível para o meu gosto pessoal.
Já Passagem dá à Jennifer Lawrence o tipo de papel que marcou sua descoberta com Inverno da Alma e que acabou sendo preterido – ou não ofertado – pela atriz após a temporada de superexposição sob a batuta de David O. Russell e com a trilogia Jogos Vorazes. Lawrence é sutil na pele de uma jovem que recém chegada da Guerra do Afeganistão quase sem poder andar ou responder por si própria. Surpreendentemente, Lynsey quer se recuperar para voltar à guerra, decisão que revela uma protagonista em conflito com a sua vida atual e pregressa. A situação muda um pouco de cenário quando ela conhece James (Brian Tyree Henry, indicado ao Oscar com justiça), um homem tão cheio de fantasmas e problemas quanto ela. Passagem dispensa o teor romântico entre os dois e acerta ao encenar uma história bastante discreta sobre o poder transformador da compreensão entre duas pessoas que se reconhecem na dor.

Regina Hall é o ponto alto da comédia Honk for Jesus. Save Your Soul.
Mudando da água para o vinho, chego à comédia Honk for Jesus. Save Your Sol., consideravelmente rejeitada por público e crítica. Não faço coro à rejeição porque me diverti muito mesmo admitindo que não há frescor no modo como a diretora Adamma Ebo aplica o formato de documentário falso, o famoso mockumentary, à história de um casal evangélico que tenta reerguer seu império e reputação com os fiéis após o marido ter sido preso sob alegações de assédio sexual. Considero importante a existência de abordagens cômicas para temas espinhosos, e que por, convenções e interesses, são dados como intocáveis, bem a exemplo das fortunas acumuladas por igrejas diante da exploração de seus fiéis. Há escracho do início ao fim Honk for Jesus. Save Your Soul., inclusive na interpretação dos protagonistas Sterling K. Brown e Regina Hall. Ela é um caso à parte como a esposa ao mesmo tempo devota ao marido e sempre silenciosamente alerta aos movimentos suspeitos do homem com quem se casou. Vale não gostar do filme? Claro. Agora, não dar os devidos louros ao trabalho de Hall é outra história…
Por último, mas não menos importante, deixo meus elogios à animação Marcel the Shell With Shoes On, adaptada do curta-metragem de mesmo nome. Não está no mapa o azar desse filme em ter que disputar prêmios no mesmo ano do belo Pinóquio de Guillermo del Toro, pois trata-se de uma pérola com grande luz fora do monopólio Disney/Pixar e representa sempre a subestimada cota de animações não necessariamente para crianças. É impossível não se apaixonar por Marcel, a conchinha de sapatos que deseja reencontrar a família e enxerga o mundo com ingenuidade e deslumbre. O mais legal do filme é isso: ele nos encharca com a pureza de Marcel, convidando o espectador a observar a vida com mais generosidade. Emocionante e divertido, Marcel the Shell With Shoes On ainda é envernizado pelo extraordinário trabalho de dublagem de Jenny Slate e Isabella Rosselllini.
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