50º Festival de Cinema de Gramado #7: “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte

Um hábito que gosto de praticar em festivais é o de tentar antecipar o mínimo possível sobre os filmes em competição, o que inclui um certo desapego de discursos e sinopses, mesmo quando eles fazem parte de cada uma das sessões. No caso de O Pastor e o Guerrilheiro, entretanto, fui seduzido pelas linhas gerais que o longa de José Eduardo Belmonte usa para se apresentar. Diz a sinopse: “Na virada do milênio, Juliana, filha ilegítima de um coronel que comete suicídio, descobre que seu pai foi torturador durante a ditadura militar no Brasil”. É uma síntese assertiva para a personagem citada, mas equivocada ao não contextualizar o quanto a estrutura depende muito mais do pastor e do guerrilheiro citados no título da obra.
Ainda que seja a personagem responsável por articular as diferentes linhas temporais de O Pastor e o Guerrilheiro, a Juliana de Júlia Dalávia é a figura menos encorpada do roteiro, quando, na verdade, poderia muito bem ser a mais complexa, dado o seu interessante conflito com a identidade torturadora do pai militar. Em dúvida sobre aceitar ou não uma herança que é de seu direito, ela embarca em uma jornada de importantes (auto)descobertas quando entra em contato com um livro sobre a Guerrilha do Araguaia. O livro existe na vida real sob a assinatura do potiguar Glênio Sá, e é adaptado pontualmente para o filme como base para insights e não com o objetivo de ser uma ficcionalização literal das experiências na guerrilha e na prisão narradas pelo autor.
São três narrativas a serem equilibradas: a de Juliana, em 1999, com o livro em mãos; a de João (Johnny Massaro) aprisionado na Guerrilha do Araguaia; e a de Zaqueu (César Mello) em sua vida evangélica após os dias encarcerado por engano com João. Elas vão além do número de personagens e das distintas épocas porque, já na superfície, o roteiro assinado por Josefina Trotta abarca, entre outros temas, os levantes estudantis nos anos 1960, os horrores da tortura, a adesão à luta armada, as promessas de virada do milênio, os diálogos intergeracionais e até mesmo complexidades e discussões pouco levantadas sobre a tão caricaturada vida evangélica.
Por acompanhar tantos personagens e momentos diferentes, O Pastor e o Guerrilheiro precisa equilibrar a questão temporal, uma missão sempre difícil. E é aí que está o elo mais frágil do filme de Belmonte, mesmo que a duração de quase duas horas dê o respiro necessário para a organização. Ao invés de dar fluidez ao resultado, a montagem por vezes sobrecarrega a trama, seja por não alcançar uma boa sinergia entre os três tempos ou por revelar subtramas pouco funcionais, como a da avó vivida por Cássia Kis, personagem que, no frigir dos ovos, está ali apenas para colocar a personagem de Julia Dalávia em um conflito moral sobre a herança do pai, sem maiores aprofundamentos sobre quem é esta figura na vida na vida da jovem.
Acaba que, ironicamente, O Pastor e o Guerrilheiro funciona melhor com suas partes isoladas, a começar pela que envolve o pastor Zaqueu, interpretado com grande vigor por Cesar de Mello e muito bem aproveitado pelo roteiro, que lhe entrega discursos longos e funcionais. Sem deixar com que Zaqueu se transforme no arquétipo do evangélico oportunista que se popularizou, com certa razão, no audiovisual brasileiro, Mello busca as vocações e contradições de um homem situado em várias encruzilhadas, do reencontro com o seu passado ao diálogo com o filho que deseja levar a religião a um outro público (no caso, o da televisão).
Já no retrato de João durante a Guerrilha do Araguaia, a concentração está na longa e sofrida prisão do personagem, incorporado por um Johnny Massaro que vem trilhando uma carreira das mais interessantes e que aqui diversifica seu repertório com um consistente trabalho corporal. Não é necessariamente um relato inovador sobre a tortura, mas ganha impacto nas mãos do ator. Intercalando essas três linhas temporais, O Pastor e o Guerrilheiro tem vários altos e baixos, além de algumas barrigas. A boa notícia é que, apesar das irregularidades, há comentários pertinentes e eficientes do filme sobre os nossos dias atuais. Contrapondo o presente dos personagens a ecos de seus passados, Belmonte clama para que nunca percamos a nossa capacidade de vislumbrar o futuro, principalmente se tivermos a capacidade de aprender com o que já passou.
50º Festival de Cinema de Gramado #6: “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho

O Brasil é um país tão desigual em oportunidades e privilégios que Noites Alienígenas chega à competição do 50º Festival de Cinema de Gramado com o título de primeiro longa-metragem do Acre a ser produzido para os cinemas com financiamento de edital — no caso, o BO (Baixo Orçamento) do hoje extinto Ministério da Cultura. Se, por um lado, é lamentável que, em pleno 2022, ainda tenhamos que noticiar primeiros marcos como esse, por outro, é entusiasmante se deparar com o cinema vigoroso de um estado brasileiro cronicamente esquecido pelo país.
Adentrando os limites incertos entre cidade e floresta, Noites Alienígenas parte do livro homônimo assinado pelo diretor Sérgio de Carvalho em 2011. Para levar o filme às telas, Carvalho assume que atualizou muita coisa, tendo em vista os rumos tomados pelo país nos últimos anos, com destaque para o expressivo aumento de facções criminosas no Acre. Saem da trama, portanto, as discussões sobre dependência química, por exemplo, para pertinentes articulações sobre a entrada cada vez mais naturalizada da juventude no mundo no crime.
Os comentários político-sociais do roteiro impactam e incomodam porque representam uma verdade tragédia social. Afinal, como pode ser banalizado o fato de que jovens, majoritariamente negros e indígenas, vivam a primavera de suas vidas tomados pelo instinto de matar para não morrer? Noites Alienígenas tem uma bandeira em evidência, ao passo em que ilustra suas causas com jornadas pessoais e, por isso mesmo, tão doloridas. E não se trata apenas dos próprios jovens que o filme acompanha, mas também das mães e de outras pessoas minimamente humanizadas e inconformadas com o que se apresenta.
A figura mais emblemática de tamanho desolamento é, sem dúvida, Beatriz (Joana Gatis, excelente), que entra em cena cheia de vida e que, ao fim, desaba em prantos. Vale, contudo, citar Alê, o traficante-chefe vivido pelo grande Chico Díaz, um personagem longe de qualquer caricatura e genuinamente preocupado com a condição daqueles jovens, mesmo que ele próprio seja parte da engrenagem e compreenda sua incapacidade de promover uma real mudança em destinos já pré-determinados. Díaz abre o filme com um longo plano-sequência em que canta até Raul Seixas e é estupendo em sua versatilidade e entendimento de personagem.
Nem sempre o diálogo com o realismo mágico funciona em Noites Alienígenas, além de estarmos diante de uma obra que leva bastante tempo para encontrar e reunir suas potências em uma grande unidade. No entanto, quando Sérgio de Carvalho começa a convergir as resoluções das histórias paralelas que acabam por se conectar, o filme se encontra e emana a força de um estado brasileiro com muito a dizer no audiovisual. Honrando as mães que perdem seus filhos e os jovens com vidas abreviadas, Noites Alienígenas clama para que o Brasil se (re)conheça, culminando em uma cena final emocionante e arrasadora.
50º Festival de Cinema de Gramado #5: “O Clube dos Anjos”, de Angelo Defanti

O diretor Angelo Defanti recebeu dois votos de confiança muito importantes para realizar O Clube dos Anjos, longa que faz sua estreia nacional no 50º Festival de Cinema de Gramado. O primeiro veio do escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo, autor da obra homônima que serve como base para o roteiro. Mais do que o sinal verde para a adaptação, Verissimo concordou com Defanti que, para transpor o livro às telas, o diretor deveria fazer as mudanças necessárias de acordo com sua visão artística, sem a ideia de tentar se manter religiosamente fiel ao livro lançado em 1998.
Já o segundo voto de confiança veio de ninguém menos do que Sara Silveira, produtora sempre afeita a revelar novas e promissoras vozes do cinema nacional. Ter o aval de Verissimo e Sara foi crucial para a realização do filme criativo, fluido e nada convencional que Defanti apresenta agora. De imediato, um dos méritos que saltam aos olhos é a capacidade do diretor de misturar diferentes referências sem perder de vista a linguagem cinematográfica. A partir do momento em que recebe a liberdade para desenvolver as suas próprias ideias para uma obra literária, Defanti coloca algumas pitadas teatrais no projeto, ao mesmo tempo em que sofistica narrativamente o uso de elementos audiovisuais como som e trilha sonora.
Essa mistura deve ser reconhecida porque seria fácil tornar o longa um espetáculo filmado. No centro da trama, estão os diferentes jantares entre sete amigos tão diferentes quanto semelhantes em seus fracassos. Os mesmos rituais se repetem com frequência, mas O Clube dos Anjos sabe oxigená-los com criatividade e, principalmente, com o olhar tragicômico lançado aos personagens. A sabedoria do roteiro está em não transformar os sete homens apenas em personagem medíocres que desejam estar no controle até da própria morte. O que temos em cena são homens erráticos e frustrados, explorados inclusive em suas facetas controversas e equivocadas.
Eles são todos interpretados por um elenco de primeira ponta e composto por atores de diferentes instintos. Vale destacar duas das melhores presenças: Matheus Nachtergaele, como o misterioso chef Lucidio, e Otávio Müller, como o protagonista Daniel. Vindo de uma performance potente em Carro Rei, Nachtergaele acerta em cheio nas reticências de um personagem nunca descortinado ao espectador, enquanto Müller se torna cada vez mais especialista na personificação de homens mundanos e, assim como o próprio filme, tragicômicos. Apesar dos destaques, é inegavelmente um trabalho coletivo e de grande sinergia entre os numerosos atores.
Um diretor menos vocacionado ao posto poderia apenas ligar a câmera e deixar o elenco fazer a sua mágica, até porque não é todo dia que tantos intérpretes bons se encontram em estado de graça, mas Defanti, em seu primeiro longa-metragem, reconhece os votos de confiança que lhe foram dados e coloca na tela o rigor, a fluidez e a inspiração necessária que lhe firmam como um realizador a ser acompanhado de perto. Indo mais além, digo que não é com frequência que encontramos, inclusive em cineastas experientes, alguém que consiga fazer de tudo um pouco, da boa adaptação de um universo literário específico a um esmero da linguagem cinematográfica com vislumbres teatrais.
50º Festival de Cinema de Gramado #4: “A Mãe”, de Cristiano Burlan

Durante a programação de debates do 50º Festival de Cinema de Gramado, uma espectadora contou ao diretor Cristiano Burlan que A Mãe a deixou sem lágrimas, mas com o coração apertado. Faço coro a ela porque o longa estrelado por Marcélia sobre uma vendedora ambulante que busca a verdade sobre a morte de seu filho rejeita abertamente as lágrimas para mergulhar na angústia de uma situação complicadíssima vivida por essa mulher. Não bastasse a morte do filho e o fato de o corpo não ter sido encontrado, tudo indica que ela se deu pelas mãos da polícia militar, revelando feridas ainda pouco discutidas pela sociedade brasileira.
Tematicamente, A Mãe é um prato cheio para uma série de debates. Burlan, que escreveu o roteiro ao lado de Ana Carolina Marinho, tece toda a narrativa a partir da busca incessante de Maria (Marcélia Cartaxo) pela verdade ao mesmo tempo em que deixa observações muito evidentes, como a de que a polícia militar não está ausente nas favelas e periferias, mas, na verdade, presente até demais, criminalizando vidas e vivências que deveriam ser discutidas antes de tudo. Adotar um certo tom documental contribui para a atmosfera realista de denúncia, de forma que A Mãe passe longe de se tornar a dramatização protocolar de uma causa.
A supressão das lágrimas potencializa o desconforto de um longa-metragem bastante consciente de sua natureza já trágica por natureza. O assassinato, a pobreza, o luto e a solidão, aliás, estão suficientemente representados no rosto sempre muito expressivo de Marcélia Cartaxo. Recém saída de sua performance já inesquecível em Pacarrete, ela muda de tom após ter vivido a bailarina repleta de sons e cores do filme de Allan Deberton. É impressionante como Cartaxo, tão miúda na vida real, sempre preenche a tela com sua força e versatilidade. Ela catapulta A Mãe com o grande talento que lhe é característico, ainda mais em um papel que rejeita o desespero estrondoso para oscilar entre o desamparo e a bravura.
Ao retratar um Brasil doído para o qual tantos fecham os olhos, Burlan coloca Maria em um local de total colapso social para mostrar que, sim, ali há vida, pessoas e sentimentos. A simples cena em que ele mostra duas versões de Maria estendendo roupas — uma sozinha e outra acompanhada do filho — é um excelente exemplo de como, vez ou outra, A Mãe poderia dar mais pinceladas criativas, sem que elas se configurassem como distração ou maneirismo. Mas isso já é adentrar o terreno da divagação. O que fica, ao fim e ao cabo, é a certeira disciplina de um projeto econômico no melhor sentido da palavra e que ressoa, justamente, por deixar no espectador o amargo desconforto de viver, por uma hora e meia, o incômodo provocado por presenças ausentes.
Festival de Cinema de Gramado #3: “Marte Um”, de Gabriel Martins

Acabei não conseguindo escrever sobre Marte Um durante o último Festival de Sundance, mas a seleção para o Festival de Cinema de Gramado adiantou esse texto que ficara engavetado — o que não tem nada a ver com a qualidade do filme, bem pelo contrário. Na verdade, é muito afetuoso o retrato que o diretor Gabriel Martins (No Coração do Mundo) apresenta de uma família humilde e que sempre termina por encontrar o amor mesmo em todas as limitações e diferenças, sejam aquelas entre eles próprios ou com o mundo. Ou seja, o bem mais valioso de Marte Um é, por assim dizer, o interesse de Gabriel pela generosidade e pela conexão, um binômio sempre urgente e necessário.
O roteiro, também escrito pelo diretor, tem uma predileção inicial por narrativas múltiplas, montando um mosaico de forma gradativa, sem maior pressa. Isso funciona porque desdobra os personagens com atenção e intimidade, e também tem seus problemas porque nem todos os coadjuvante orbitantes ao personagem da vez funcionam, abrindo espaço para composições um tanto rasas ou descartáveis. Com isso, Marte Um também abre margem para traços mais novelescos, abraçados de maneira aparentemente consciente pelo diretor. Entretanto, a situação muda de cenário toda vez que o filme se dedica a abordar coletivamente os dramas daquela família, como um único núcleo.
Talvez esse ponto virada da minha relação com Marte Um se dê na cena em que Tércia (Rejane Faria) se vê no centro de uma daquelas pegadinhas ensaiadas para a televisão. Ao acreditar que está amaldiçoada diante de tantos azares na vida, ela visivelmente anseia por alguma fuga ou algum alento em seus dias. E essa busca por alguma alternativa parece ser um desejo — consciente ou não — de todos os membros da família Martins. Ainda há, por exemplo, o pai Wellington (Carlos Francisco), responsável por projetar no filho sonhos futebolísticos que, no fundo, muito provavelmente ele gostaria de ter realizado para si próprio. Por outro lado, Deivinho (Cícero Lucas) não tem qualquer interesse em ser um jogador. O que ele quer é se tornar astrofísico e participar de uma missão bilionária para colonizar Marte em 2030, na representação mais literal de um já citado sentimento de fuga.
As eventuais colisões ou intersecções dos sonhos e das vontades desses personagens se engrandecem mais nesse convívio do que quando os acompanhamos separadamente — e isso não deixa de estar intrinsicamente ligado ao fato de que Marte Um tem uma de suas maiores forças em um elenco precioso. Além de ter bons atores aproveitando uma sinergia palpável desde o primeiro momento, o filme tem grande equilíbrio no destaque proporcional dado a eles. Uma vez que todos, sem exceção, são figuras interessantes e verossímeis, isso é um ganho dos grandes. Meu destaque particular, entretanto, fica para a delicada relação entre Deivinho e sua irmã Eunice, dois filhos unidos por uma compreensão mútua do que são e sonham.
O simbolismo de Marte Um ter um personagem negro que se permite sonhar a carreira de astronauta é um belo contraste com o início do próprio filme, quando somos remontados ao dia 28 de outubro de 2018 e, mais especificamente, ao momento em que Jair Messias Bolsonaro se torna presidente do Brasil. A política do longa de Gabriel Martins não está na discussão verbal sobre política. Ela mora em representações corriqueiras e poderosas como essa. Como em O Novelo, outro filme exibido recentemente no Festival de Cinema de Gramado, temos, em Marte Um, um filme que aborda a representatividade negra por meio de um relato familiar cuja complexidade está nas diferenças do dia a dia, mas também cuja beleza está na generosidade e na empatia, duas forças que, no Brasil atual, revelam-se mais políticas do que nunca.