49º Festival de Cinema de Gramado #6: “Carro Rei”, de Renata Pinheiro

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Com desempenho visceral, Matheus Nachtergaele é, em Carro Rei, a representação do que existe de melhor nesta fábula singular e provocadora sobre o caos do Brasil.

Confesso que nunca entendi muito bem a aversão de grande parte do público por filmes divisivos, polêmicos e que se situam bem fora da curva. Deve ser porque prefiro amar ou odiar ao extremo uma experiência cinematográfica do que ficar indiferente a ela. Filmes mornos não me interessam, e é por isso mesmo que defendo amplamente Carro Rei, um dos trabalhos mais inusitados e singulares do cinema brasileiro recente. Aturdido, terminei a sessão sem saber muito bem o que achei do filme, inclusive porque muitas referências e leituras me escaparam ao longo da projeção, mas, aos poucos, tudo foi crescendo comigo e logo constatei o porquê: em seu quarto trabalho como diretora de longas, Renata Pinheiro chuta o balde com gosto, sem se preocupar com classificações, expectativas ou pré-conceitos, entregando um trabalho que ressoa e se enriquece muito após a sessão. Tamanha falta de amarras com o convencional e com tudo de mais padronizado que aí está deve ser sempre motivo de celebração.

Do delírio ao techno-extravagante, para citar algumas das definições usadas por público e crítica em exibições internacionais e agora no 49º Festival de Cinema de Gramado, Carro Rei é um caldeirão de infinitas referências e gêneros. Há uma certa fábula em seus primeiros minutos (alguns dos personagens se chamam Uno, Zé Macaco ou Amora, fazendo referência a vários símbolos da trama). Gradativamente, ela abre espaço para alegorias de todos os tipos, além de ter um atmosfera muito presente de aventura e ficção científica. Ao fim, me pareceu mais um filme de terror. Nesta história sobre um menino que descobre ter o poder de se comunicar com carros, a crítica pode se esbaldar em seu hábito (vício?) de fazer associações temáticas com outras obras. As mais citadas até aqui são Christine, o Carro Assassino, de 1983, ou Crash – Estranhos Prazeres, dirigido por David Cronenberg em 1996. No meu caso, faço o diálogo com Holy Motors, aquela deliciosa alucinação de Leos Carax protagonizada por um impressionante Denis Lavant.

À parte as conexões cinematográficas, talvez o lado mais potente de Carro Rei seja aquele em que podemos enxergar todo o caos que o Brasil vem vivendo nos últimos anos, mas não com discursos prontos ou referências óbvias, como aconteceu, por exemplo, em Jesus Kid, outro filme em competição no Festival de Cinema de Gramado de 2021. Mesmo sequências um tanto explícitas, a exemplo daquela em que jovens de uniforme começam a se movimentar como robôs enquanto toca o hino nacional, são potentes por tudo o que significam. Considerando essa em específico, faço coro ao que Renata Pinheiro disse em uma bela entrevista ao portal Mulher no Cinema: por retratar uma juventude que começa a se robotizar e a ser instrumento do sistema ao som dos falsos ideários que tomaram conta da bandeira e do hino nacional, tudo se torna, de certa forma, inesperadamente triste.

Neste conto sobre o caos, conforme define a própria diretora, encontramos elementos que podem muito refletir a identidade brasileira, mas no sentido crítico. Além do fetiche louco por carros que costuma ser o modo com que homens provam seus altos níveis de testosterona, é estimulante ver a reflexão em cima do personagem Zé Macaco vivido por Matheus Nachtergaele em desempenho visceral e de notável harmonia entre um impressionante trabalho físico e o domínio das camadas emocionais de um personagem suscetível a caricaturas. Ele é a perfeita representação dessa população oprimida que, quando vê a oportunidade de deter certo poder e relevância, acaba justamente se tornando o opressor e um símbolo de perigo.  Também coloque na conta o renascimento de ideias totalitárias no Brasil contemporâneo e aquele que é o processo mais amedrontador de Carro Rei e que, em linhas gerais, termina por ser o fio condutor de todo o longa: a forma com que as máquinas evoluem na mesma medida em que os homens involuem ao acharem que estão conquistando o mundo ao aperfeiçoá-las.

Naturalmente, por tentar agrupar uma infinidade de leituras através de diversos gêneros e referências, Renata Pinheiro corre o risco de não alcançar a devida profundidade em certas discussões ou até mesmo de perder a mão frente a tantas ideias. E Carro Rei é mesmo um longa-metragem imperfeito, acertando em algumas reflexões (as citadas até aqui) e errando em outras (a mensagem ecológica previsível, a sensação de não captar tudo no ritmo propositalmente caótico), enquanto também tem suas limitações em outros aspectos, como no próprio elenco, que se engrandece mais pelo desempenho de Nachtergaele do que pelo conjunto de atores. Só que é difícil se ater a esses pormenores quando Renata emoldura o projeto com um trabalho técnico refinadíssimo, onde a trilha de DJ Dolores e o desenho de som assinado por Guile Martins se destacam por uma sinfonia imersiva que carrega o espectador ao longo do filme. Não se trata de uma experiência fácil. Será amada e odiada nas mesmas proporções. Terá suas variações entre o gosto particular de cada um. E sem dúvida oscilará entre o “genial” e o “ridículo” com o público. Uma coisa, no entanto, é certa: com Carro Rei, mais uma vez podemos afirmar que hoje o cinema brasileiro se renova e se reinventa graças ao talento potente dos pernambucanos.

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