Um hábito que gosto de praticar em festivais é o de tentar antecipar o mínimo possível sobre os filmes em competição, o que inclui um certo desapego de discursos e sinopses, mesmo quando eles fazem parte de cada uma das sessões. No caso de O Pastor e o Guerrilheiro, entretanto, fui seduzido pelas linhas gerais que o longa de José Eduardo Belmonte usa para se apresentar. Diz a sinopse: “Na virada do milênio, Juliana, filha ilegítima de um coronel que comete suicídio, descobre que seu pai foi torturador durante a ditadura militar no Brasil”. É uma síntese assertiva para a personagem citada, mas equivocada ao não contextualizar o quanto a estrutura depende muito mais do pastor e do guerrilheiro citados no título da obra.
Ainda que seja a personagem responsável por articular as diferentes linhas temporais de O Pastor e o Guerrilheiro, a Juliana de Júlia Dalávia é a figura menos encorpada do roteiro, quando, na verdade, poderia muito bem ser a mais complexa, dado o seu interessante conflito com a identidade torturadora do pai militar. Em dúvida sobre aceitar ou não uma herança que é de seu direito, ela embarca em uma jornada de importantes (auto)descobertas quando entra em contato com um livro sobre a Guerrilha do Araguaia. O livro existe na vida real sob a assinatura do potiguar Glênio Sá, e é adaptado pontualmente para o filme como base para insights e não com o objetivo de ser uma ficcionalização literal das experiências na guerrilha e na prisão narradas pelo autor.
São três narrativas a serem equilibradas: a de Juliana, em 1999, com o livro em mãos; a de João (Johnny Massaro) aprisionado na Guerrilha do Araguaia; e a de Zaqueu (César Mello) em sua vida evangélica após os dias encarcerado por engano com João. Elas vão além do número de personagens e das distintas épocas porque, já na superfície, o roteiro assinado por Josefina Trotta abarca, entre outros temas, os levantes estudantis nos anos 1960, os horrores da tortura, a adesão à luta armada, as promessas de virada do milênio, os diálogos intergeracionais e até mesmo complexidades e discussões pouco levantadas sobre a tão caricaturada vida evangélica.
Por acompanhar tantos personagens e momentos diferentes, O Pastor e o Guerrilheiro precisa equilibrar a questão temporal, uma missão sempre difícil. E é aí que está o elo mais frágil do filme de Belmonte, mesmo que a duração de quase duas horas dê o respiro necessário para a organização. Ao invés de dar fluidez ao resultado, a montagem por vezes sobrecarrega a trama, seja por não alcançar uma boa sinergia entre os três tempos ou por revelar subtramas pouco funcionais, como a da avó vivida por Cássia Kis, personagem que, no frigir dos ovos, está ali apenas para colocar a personagem de Julia Dalávia em um conflito moral sobre a herança do pai, sem maiores aprofundamentos sobre quem é esta figura na vida na vida da jovem.
Acaba que, ironicamente, O Pastor e o Guerrilheiro funciona melhor com suas partes isoladas, a começar pela que envolve o pastor Zaqueu, interpretado com grande vigor por Cesar de Mello e muito bem aproveitado pelo roteiro, que lhe entrega discursos longos e funcionais. Sem deixar com que Zaqueu se transforme no arquétipo do evangélico oportunista que se popularizou, com certa razão, no audiovisual brasileiro, Mello busca as vocações e contradições de um homem situado em várias encruzilhadas, do reencontro com o seu passado ao diálogo com o filho que deseja levar a religião a um outro público (no caso, o da televisão).
Já no retrato de João durante a Guerrilha do Araguaia, a concentração está na longa e sofrida prisão do personagem, incorporado por um Johnny Massaro que vem trilhando uma carreira das mais interessantes e que aqui diversifica seu repertório com um consistente trabalho corporal. Não é necessariamente um relato inovador sobre a tortura, mas ganha impacto nas mãos do ator. Intercalando essas três linhas temporais, O Pastor e o Guerrilheiro tem vários altos e baixos, além de algumas barrigas. A boa notícia é que, apesar das irregularidades, há comentários pertinentes e eficientes do filme sobre os nossos dias atuais. Contrapondo o presente dos personagens a ecos de seus passados, Belmonte clama para que nunca percamos a nossa capacidade de vislumbrar o futuro, principalmente se tivermos a capacidade de aprender com o que já passou.
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