49º Festival de Cinema de Gramado #5: “O Novelo”, de Claudia Pinheiro

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Com elenco em estado de graça, O Novelo é um belo retrato familiar sobre abandono paterno e sobre a forma com que as pessoas lidam com um mesmo peso de diferentes modos.

Costumo dizer que, para mim, os filmes mais fascinantes são aqueles sobre pessoas comuns, rotinas identificáveis e sentimentos que, de uma forma ou de outra, marcam a nossa existência. Encontrar delicadeza e grandiosidade neste “gênero” é mais difícil do que se imagina e, por isso mesmo, filmes como O Novelo são tão especiais. Baseado no espetáculo homônimo lançado em 2010, o longa de Claudia Pinheiro convoca Nanna de Castro, autora do texto original, para também assinar o roteiro da versão cinematográfica. A dificuldade que muitos encontram de transpor seu próprio texto para o cinema, especialmente no que se refere à busca pelo ritmo e o estilo cinematográfico, não é um problema para Nanna. E para Claudia também não. Juntas, elas preservam traços da natureza teatral de O Novelo ao mesmo tempo em que conferem uma forma cinematográfica onde o afeto, a verossimilhança e a conexão com os personagens emolduram o resultado final.

O ponto de partida adotado por O Novelo já mostra o compromisso dos envolvidos em buscar a humanidade, o diferente e o lado simples das coisas. Em foco, estão cinco irmãos negros que, nunca marginalizados ou estereotipados, carregam um mesmo peso: o abandono do pai durante a infância. Já adultos, cada um seguiu seu rumo e lidou com a ausência paterna de maneiras diferentes, até o dia em que são confrontados com a notícia de que um homem hospitalizado pode ser o pai que eles nunca mais viram. O olhar feminino na direção e no roteiro confere a esse conflito uma delicadeza ímpar: do convívio entre os irmãos até a ideia de um possível acerto de contas com o pai, Cláudia e Nanna lançam um olhar questionador para a questão da masculinidade, mostrando-a por meio de diferentes prismas. Aqui, os homens choram, são inseguros, enfrentam problemas, carregam mágoas, lutam contra vícios e até mesmo têm sua heterossexualidade questionada sem que isso seja o fim do mundo. E por que não haveria de ser assim, já que são exemplos que, dadas as proporções e circunstância, realmente acontecem no íntimo de cada homem ao longo da vida?

Ainda no plano da desconstrução, é muito bonito como O Novelo ressignifica as narrativas negras ao colocar os personagens não em posição de vulnerabilidade social ou algo do gênero. As perspectivas viciadas e os estereótipos tão comuns, principalmente no que tange produções dirigidas por cineastas brancos que acreditam entender as dimensões da negritude, são recusadas pelo filme, que se concentra nas dinâmicas familiares sem que a raça carregue pré-conceitos. Isso é muito bonito porque O Novelo, apesar de ecoar os efeitos do abandono paterno, se debruça nas personalidades de cada um dos personagens e no momento em que eles se veem obrigados a encarar o passado e a compartilhar entre si o modo com que lidam com ele. Em complemento, é acertadíssima a estrutura de adotar um recorte específico para a trama, o que contribui diretamente para a construção da dinâmica dos personagens. Por acompanhá-los em um espaço de tempo específico, vamos pouco a pouco descobrindo suas identidades em cada detalhe do cotidiano, tornando nosso entendimento em relação a elas muito mais humano, orgânico e crível.

Por mais que, de início, seja complicado se situar entre tantos personagens e também entre as idades e vindas que o filme dá com eles — algumas muito bem sucedidas em função da nostalgia e da presença sempre marcante de Isabél Zuaa, outros nem tanto pela redundância —, é questão de tempo para estarmos familiarizados com todos. Além dos méritos de Claudia e Nanna, é fundamental reconhecer ainda o grande trabalho do elenco, onde cada ator, sem exceção, está muito bem em cena. A generosidade é tocante: jamais um tenta se sobressair mais do que o outro, por mais interessantes que determinados personagens possam ser, e isso endossa a generosidade ímpar de O Novelo e sua unidade dramatúrgica admirável. E como se não bastasse ser um pequeno grande filme, o roteiro também reserva uma excelente reflexão para o final — e que talvez até merecesse mais espaço no roteiro. Afinal quais são as ilusões que precisamos vender ou comprar para seguir em frente? Mentiras sinceras interessam? É um arremate interessantíssimo para um relato que, até ali, já era rico por si só ao ser tão prismático na costura feita de personagens múltiplos e circunscritos em um mesmo drama.

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