Acabei não conseguindo escrever sobre Marte Um durante o último Festival de Sundance, mas a seleção para o Festival de Cinema de Gramado adiantou esse texto que ficara engavetado — o que não tem nada a ver com a qualidade do filme, bem pelo contrário. Na verdade, é muito afetuoso o retrato que o diretor Gabriel Martins (No Coração do Mundo) apresenta de uma família humilde e que sempre termina por encontrar o amor mesmo em todas as limitações e diferenças, sejam aquelas entre eles próprios ou com o mundo. Ou seja, o bem mais valioso de Marte Um é, por assim dizer, o interesse de Gabriel pela generosidade e pela conexão, um binômio sempre urgente e necessário.
O roteiro, também escrito pelo diretor, tem uma predileção inicial por narrativas múltiplas, montando um mosaico de forma gradativa, sem maior pressa. Isso funciona porque desdobra os personagens com atenção e intimidade, e também tem seus problemas porque nem todos os coadjuvante orbitantes ao personagem da vez funcionam, abrindo espaço para composições um tanto rasas ou descartáveis. Com isso, Marte Um também abre margem para traços mais novelescos, abraçados de maneira aparentemente consciente pelo diretor. Entretanto, a situação muda de cenário toda vez que o filme se dedica a abordar coletivamente os dramas daquela família, como um único núcleo.
Talvez esse ponto virada da minha relação com Marte Um se dê na cena em que Tércia (Rejane Faria) se vê no centro de uma daquelas pegadinhas ensaiadas para a televisão. Ao acreditar que está amaldiçoada diante de tantos azares na vida, ela visivelmente anseia por alguma fuga ou algum alento em seus dias. E essa busca por alguma alternativa parece ser um desejo — consciente ou não — de todos os membros da família Martins. Ainda há, por exemplo, o pai Wellington (Carlos Francisco), responsável por projetar no filho sonhos futebolísticos que, no fundo, muito provavelmente ele gostaria de ter realizado para si próprio. Por outro lado, Deivinho (Cícero Lucas) não tem qualquer interesse em ser um jogador. O que ele quer é se tornar astrofísico e participar de uma missão bilionária para colonizar Marte em 2030, na representação mais literal de um já citado sentimento de fuga.
As eventuais colisões ou intersecções dos sonhos e das vontades desses personagens se engrandecem mais nesse convívio do que quando os acompanhamos separadamente — e isso não deixa de estar intrinsicamente ligado ao fato de que Marte Um tem uma de suas maiores forças em um elenco precioso. Além de ter bons atores aproveitando uma sinergia palpável desde o primeiro momento, o filme tem grande equilíbrio no destaque proporcional dado a eles. Uma vez que todos, sem exceção, são figuras interessantes e verossímeis, isso é um ganho dos grandes. Meu destaque particular, entretanto, fica para a delicada relação entre Deivinho e sua irmã Eunice, dois filhos unidos por uma compreensão mútua do que são e sonham.
O simbolismo de Marte Um ter um personagem negro que se permite sonhar a carreira de astronauta é um belo contraste com o início do próprio filme, quando somos remontados ao dia 28 de outubro de 2018 e, mais especificamente, ao momento em que Jair Messias Bolsonaro se torna presidente do Brasil. A política do longa de Gabriel Martins não está na discussão verbal sobre política. Ela mora em representações corriqueiras e poderosas como essa. Como em O Novelo, outro filme exibido recentemente no Festival de Cinema de Gramado, temos, em Marte Um, um filme que aborda a representatividade negra por meio de um relato familiar cuja complexidade está nas diferenças do dia a dia, mas também cuja beleza está na generosidade e na empatia, duas forças que, no Brasil atual, revelam-se mais políticas do que nunca.
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