46º Festival de Cinema de Gramado #6: Crítica | “Mormaço”, de Marina Meliande

De Roterdã para Gramado: Mormaço, de Marina Meliande, alterna entre o realismo e a alegoria para falar sobre a truculência e a exaustão nas grandes cidades.

Mormaço é um ponto fora da curva. Exibido no Festival de Roterdã deste ano, o drama dirigido por Marina Meliande consegue o feito estranhamente fascinante lembrar outros filmes ao mesmo tempo em que tem uma identidade particular. Tematicamente, é sobre como as grandes cidades são capazes de engolir e transformar seus habitantes, seja em termos literais ou metafóricos. Da perspectiva estrutural, temos duas obras em uma: a primeira é um drama que, para o bem e para o mal, lembra Aquarius no sentido de relatar a vida de pessoas que recusam a ceder suas moradias para projetos políticos ou capitalistas, enquanto a segunda pula do plano realista para a completa alegoria. Evocando, mas jamais emulando filmes cujos ecos surgem apenas como coincidência (o roteiro começou a ser escrito em 2012), Mormaço é, especialmente na primeira parte, fragilizado pela semelhança temática com outras obras, elevando-se, por outro lado, com assustadora vitalidade na segunda, quando garimpa conturbados horrores da nossa sociedade ao mesmo tempo em que promove um angustiante exercício de estilo.

Ao mostrar o apodrecimento de uma vida urbana que se corrompe por interesses e se utiliza da truculência para oprimir os menos favorecidos, o filme apresenta a perspectiva de Ana (Marina Provenzzano), uma jovem defensora pública que trabalha em prol dos moradores da Vila Autódromo, uma das comunidades ameaçadas de remoção para as obras de construção do Parque Olímpico do Rio. Ela, uma mulher independente que mora sozinha em um apartamento da capital carioca, acredita na luta a ponto de permitir que todo o processo, incluindo as derrotas que se revelam inevitáveis, atinjam o seu estado físico e emocional. Meliande, que faz jus a sua assumida intenção de conduzir a história sem nenhuma panfletagem, suscita um discurso claro e contundente através de olhares pouco usuais, como o feminino, aqui simbolizado nessa personagem representante de uma geração cuja exaustão é diretamente definida por uma cidade impiedosa em suas dimensões, exigências e injustiças. 

Até certo ponto, Mormaço apresenta seu universo e seu posicionamento com uma condução mais clássica. O jogo se inverte depois, quando Meliande recupera angústias diárias de uma população oprimida e sem voz para fazer fazer do relato uma experiência aterrorizante. Imersiva, a segunda metade de Mormaço cresce minuto a minuto, mergulhando o espectador em um pesadelo social muitíssimo bem traduzido pela excepcional parte técnica. Mais maduro e eficaz do que 90% das obras que chegam aos cinemas e que assumem ou flertam com a natureza do horror, o projeto causa estranheza ao transformar um filme em outro. A vitória, por outro lado, está na unidade temática: Mormaço é firme em suas convicções, e ainda mais fascinante quando as transporta para a experimentação, decisão responsável por engrandecer um filme que, no realismo ou na alegoria, fala muito sobre as doenças do nosso país que pouco têm a ver com diagnósticos médicos.

3 comentários em “46º Festival de Cinema de Gramado #6: Crítica | “Mormaço”, de Marina Meliande

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