Cinema e Argumento

Apostas para o Globo de Ouro 2023

O Globo de Ouro volta a ser transmitido na TV após inúmeras polêmicas e boicotes envolvendo a falta de diversidade tanto dos indicados quanto de seus votantes. O abalo sísmico foi tão grande que, no ano passado, a Hollywood Foreign Press Association se viu sem emissora para veicular a cerimônia, revelando seus vencedores apenas pelas redes sociais a partir de um evento fechado e restrito a poucos convidados. O baque surtiu efeito na HFPA, que conseguiu rever algumas regras do estatuto e convocou mais de uma centena de novos votantes para trazer diversidade não apenas para os bastidores, mas também para os filmes selecionados. Contudo, ainda assim, a lista de 2023 se revelou comportada e previsível, o que reforça a ideia de que o problema é sistêmico e cultural, e não apenas circunscrito a problemas que podem ser facilmente resolvidos por medidas imediatas.

Assim como em todos os anos, é difícil prever as principais tendências do Globo de Ouro, já que estamos falando da primeira grande premiação da temporada. Apesar de termos as associações de críticos até aqui, elas apenas nos sugerem quais são os nomes e títulos que, no geral, estarão no páreo em algumas categorias. Vencer é outra história, principalmente com um corpo de votantes que difere muito dos críticos. Dito isso, a expectativa é que Steven Spielberg volte a ser consagrado, dessa vez com o drama Os Fabelmans. Já é hora: lá se vão mais de 20 anos desde que ele recebeu um prêmio de direção, no caso, por O Resgate do Soldado Ryan, em 1999. Mais do que isso, a corrida entre os dramas está morna, o que pode favorecer uma dobradinha do diretor também em melhor filme. Já entre as comédias, teremos uma primeira temperatura da disputa entre Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo TempoOs Banshees de Inisherin, títulos que vêm alternando a liderança de indicações entre os prêmios da temporada.

Abaixo, alguns palpites para a cerimônia de hoje:

CINEMA

MELHOR FILME DE DRAMA: Os Fabelmans / alt: Elvis
MELHOR DIREÇÃO: Steven Spielberg (Os Fabelmans) / alt: Daniel Kwan e Daniel Scheinert (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)

MELHOR ATRIZ EM FILME DE DRAMA: Cate Blanchett (Tár) / alt: Michelle Williams (Os Fabelmans)
MELHOR ATOR EM FILME DE DRAMA: Austin Butler (Elvis) / alt: Brendan Fraser (The Whale)
MELHOR FILME DE COMÉDIA OU MUSICAL: Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo / alt: Os Banshees de Inisherin
MELHOR ATRIZ EM FILME DE COMÉDIA OU MUSICAL: Michelle Yeoh (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo) / alt: Margot Robbie (Babilônia)

MELHOR ATOR EM FILME DE COMÉDIA OU MUSICAL: Colin Farrell (Os Banshees de Inisherin) / alt: Diego Calva (Babilônia)
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE EM FILME DE DRAMA, COMÉDIA OU MUSICAL: Jamie Lee Curtis (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo) / alt: Kerry Condon (Os Banshees de Inisherin)
MELHOR ATOR COADJUVANTE EM FILME DE DRAMA, COMÉDIA OU MUSICAL: Ke Huy Quan (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo) / alt: Brendan Gleeson (Os Banshees de Inisherin)
MELHOR ROTEIRO: Os Banshees de Inisherin / alt: Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
MELHOR FILME EM LÍNGUA NÃO-INGLESA: Decisão de Partir (Coreia do Sul) / alt: Nada de Novo no Front (Alemanha)
MELHOR ANIMAÇÃO: Pinóquio por Guillermo del Toro / alt: Red: Crescer é uma Fera
MELHOR TRILHA SONORA: Babilônia / alt: Pinóquio por Guillermo Del Toro
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL: “Hold My Hand” (Top Gun: Maverick) / alt: “Naatu Naatu” (RRR: Revolta, Rebelião, Revolução)

SÉRIES, MINISSÉRIES, ANTOLOGIAS E FILMES PARA TV

MELHOR SÉRIE DE DRAMA: A Casa do Dragão / alt: Ruptura
MELHOR ATRIZ EM SÉRIE DE DRAMA: Emma D’Arcy (A Casa do Dragão) / alt: Imelda Stauton (The Crown)
MELHOR ATOR EM SÉRIE DE DRAMA: Jeff Bridges (The Old Man) / alt: Kevin Costner (Yellowstone)
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE EM SÉRIE DE DRAMA, COMÉDIA OU MUSICAL: Elizabeth Debicki (The Crown) / alt: Julia Garner (Ozark)
MELHOR ATOR COADJUVANTE EM SÉRIE DE DRAMA, COMÉDIA OU MUSICAL: John Lithgow (The Old Man) / alt: Tyler James Williams (Abbott Elementary)
MELHOR SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL: Abbott Elementary / alt: O Urso
MELHOR ATRIZ EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL: Jean Smart (Hacks) / alt: Jenna Ortega (Wandinha)
MELHOR ATOR EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL: Jeremy Allen White (O Urso) / alt: Bill Hader (Barry)
MELHOR MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV: The White Lotus / alt: Dahmer: Um Canibal Americano
MELHOR ATRIZ EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV: Amanda Seyfried (The Dropout) / alt: Lily James (Pam & Tommy)
MELHOR ATOR EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV: Evan Peters (Dahmer: Um Canibal Americano) / alt: Colin Firth (A Escada)
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV: Jennifer Coolidge (The White Lotus) / alt: Niecy Nash (Dahmer: Um Canibal Americano)
MELHOR ATOR COADJUVANTE EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV: Richard Jenkins (Dahmer: Um Canibal Americano) / alt: F. Murray Abraham (The White Lotus)

Adeus, 2022! (e as melhores cenas do ano)

Cinematograficamente falando, o ano de 2022 reservou excelentes surpresas considerando os títulos lançados comercialmente no Brasil. De documentários fantásticos como Moonage DaydreamVulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft a vários filmes de língua não-inglesa conquistando o mundo (Drive My CarA Pior Pessoa do MundoRRR), não faltaram lindas cenas para se destacar em um balanço final do ano. Tentei, em dez escolhas sem ordem de preferência, selecionar aquelas que mais me comoveram, divertiram e encantaram, o que não foi uma missão fácil. Para quem não assistiu aos filmes mencionados, a lista está livre de spoilers. No mais, desejo a todos vocês, queridos leitores e leitoras, um excelente 2023 — ano que, ao meu ver, já começa mais leve e com vislumbres de esperança, depois de todo o tempo em que o Brasil esteve fora da normalidade e mergulhado em trevas. Feliz ano novo!

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lgrandescenebNancy (Emma Thompson) se (re)conhece frente ao espelho em Boa Sorte, Leo Grande

mycarscenebA encenação de Tio Vânia em Drive My Car

asunscenebPai e filha ao som de Under Pressure em Aftersun

spencerscenebA felicidade imaginada de Diana em Spencer

ayangscenebOs créditos de abertura de A Vida Depois de Yang

argentinascenebO mais detalhado e contundente depoimento no tribunal de Argentina, 1985

naatunaatusceneO número musical de “Naatu Naatu” em RRR: Revolta, Rebelião, Revolução

wpersconscenebO mundo para em A Pior Pessoa do Mundo

eeaaoMãe e filha à beira do bagel em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo

pinocchioscene“O que acontece, acontece. E, depois, nós partimos”
em Pinóquio por Guillermo del Toro

Os indicados ao Globo de Ouro 2023

bansheesglobes

Os Banshees de Inisherin lidera a lista a do Globo de Ouro 2023 com oito indicações.

Desde o ano passado, o Globo de Ouro vem recuperando a racionalidade e escapando de constrangimentos — foi a única premiação televisionada, junto ao Oscar, a não indicar a interpretação vexaminosa de Jared Leto em Casa Gucci, por exemplo —, e a lista de 2023 segue parâmetro semelhante. Entretanto, era esperado um certo divisor de águas para a seleção deste ano, visto que a Hollywood Foreign Press Association, em uma iniciativa inédita, convocou mais de uma centena de novos novos profissionais para integrar o corpo de votantes, focando em perfis que valorizassem a diversidade. A iniciativa não surtiu muito efeito, como na categoria de direção, que, após dois anos, voltou a não incluir mulheres entre os cinco finalistas, mesmo com Sarah Polley dando sopa por Entre Mulheres.

Velhos hábitos seguem em cena, a exemplo da indicação de Baz Luhrmann como melhor diretor por Elvis, resultado exclusivo de uma campanha dedicada extensiva do estúdio para emplacar o filme na temporada de premiações — sem esse grande trabalho de publicidade, dificilmente Luhrmann emplacaria uma lembrança na categoria. Tendo esse cenário em vista, indicações interessantes como as de Dolly De Leon em melhor atriz coadjuvante por Triângulo da Tristeza e a de Ana de Armas em melhor atriz, sobrevivendo ao justo bombardeio de más críticas direcionados a Blonde, ficam pequenas diante de uma lista extremamente comportada e circunscrita à famosa zona de conforto.

O que o Globo de Ouro 2023 sinaliza é que Os Banshees de Inisherin e Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo chegam com força total na temporada, enquanto títulos como Os Fabelmans, Avatar: O Caminho da Água e Tár confirmam seus esperados destaques. Outro filme beneficiado pela lista é Top Gun: Maverick, que chegou a ser eleito o melhor filme do ano pelo prestigiado National Board of Review e agora emplaca uma indicação como melhor filme de drama do Globo de Ouro 2023. Vale acompanhar de perto como eles irão performar daqui para frente. A cerimônia de premiação acontece no próximo dia 10 de janeiro.

Confira abaixo a lista de indicados:

CINEMA

MELHOR FILME DE DRAMA
Avatar: O Caminho da Água
Elvis
Os Fabelmans
Tár
Top Gun: Maverick

MELHOR DIREÇÃO
Baz Luhrmann (Elvis)
Daniel Kwan e Daniel Scheinert (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
James Cameron (Avatar: O Caminho da Água)
Martin McDonagh (Os Banshees de Inisherin)
Steven Spielberg (Os Fabelmans)

MELHOR ATRIZ EM FILME DE DRAMA
Ana de Armas (Blonde)
Cate Blanchett (Tár)
Michelle Williams (Os Fabelmans)
Olivia Colman (Império da Luz)
Viola Davis (A Mulher Rei)

MELHOR ATOR EM FILME DE DRAMA
Austin Butler (Elvis)
Bill Nighy (Living)
Brendan Fraser (The Whale)
Hugh Jackman (The Son)
Jeremy Pope (The Inspection)

MELHOR FILME DE COMÉDIA OU MUSICAL
Babilônia
Os Banshees de Inisherin
Glass Onion: Um Mistério Knives Out
Triângulo da Tristeza
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo

MELHOR ATRIZ EM FILME DE COMÉDIA OU MUSICAL
Anya Taylor-Joy (O Menu)
Emma Thompson (Boa Sorte, Leo Grande)
Lesley Manville (Sra. Harris Vai a Paris)
Margot Robbie (Babilônia)
Michelle Yeoh (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)

MELHOR ATOR EM FILME DE COMÉDIA OU MUSICAL
Adam Driver (Ruído Branco)
Colin Farrell (Os Banshees de Inisherin)
Diego Calva (Babilônia)
Daniel Craig (Glass Onion: Um Mistério Knives Out)
Ralph Fiennes (O Menu)

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE EM FILME DE DRAMA, COMÉDIA OU MUSICAL
Angela Bassett (Pantera Negra: Wakanda Para Sempre)
Carey Mulligan (Ela Disse)
Dolly de Leon (Triângulo da Tristeza)
Jamie Lee Curtis (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
Kerry Condon (Os Banshees de Inisherin)

MELHOR ATOR COADJUVANTE EM FILME DE DRAMA, COMÉDIA OU MUSICAL
Barry Keoghan (Os Banshees de Inisherin)
Brad Pitt (Babilônia)
Brendan Gleeson (Os Banshees de Inisherin)
Eddie Redmayne (O Enfermeiro da Noite)
Ke Huy Quan (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)

MELHOR ROTEIRO
Os Banshees de Inisherin
Entre Mulheres
Os Fabelmans
Tár
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo

MELHOR FILME EM LÍNGUA NÃO-INGLESA
Argentina, 1985 (Argentina)
Close (Bélgica)
Decisão de Partir (Coreia do Sul)
Nada de Novo no Front (Alemanha)
RRR: Revolta, Rebelião, Revolução (Índia)

MELHOR ANIMAÇÃO
Gato de Botas 2: O Último Pedido

Inu-oh
Marcel the Shell with Shoes On
Pinóquio por Guillermo Del Toro
Red: Crescer é uma Fera

MELHOR TRILHA SONORA
Babilônia
Os Banshees de Inisherin
Entre Mulheres
Os Fabelmans
Pinóquio por Guillermo Del Toro

MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
“Carolina” (Um Lugar Bem Longe Daqui)
“Ciao Papa” (Pinóquio por Guillermo Del Toro)
“Hold My Hand” (Top Gun: Maverick)
“Lift Me Up” (Pantera Negra: Wakanda Para Sempre)
“Naatu Naatu” (RRR: Revolta, Rebelião, Revolução)

SÉRIES, MINISSÉRIES, ANTOLOGIAS E FILMES PARA TV

MELHOR SÉRIE DE DRAMA
Better Call Saul
A Casa do Dragão
The Crown
Ozark
Ruptura

MELHOR ATRIZ EM SÉRIE DE DRAMA
Emma D’Arcy (A Casa do Dragão)
Hilary Swank (Alasca: Em Busca da Notícia)
Imelda Stauton (The Crown)
Laura Linney (Ozark)
Zendaya (Euphoria)

MELHOR ATOR EM SÉRIE DE DRAMA
Adam Scott (Ruptura)
Bob Odenkirk (Better Call Saul)
Diego Luna (Andor)
Jeff Bridges (The Old Man)
Kevin Costner (Yellowstone)

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE EM SÉRIE DE DRAMA, COMÉDIA OU MUSICAL
Elizabeth Debicki (The Crown)
Hannah Einbinder (Hacks)
Janelle James (Abbott Elementary)
Julia Garner (Ozark)
Sheryl Lee Ralph (Abbott Elementary)

MELHOR ATOR COADJUVANTE EM SÉRIE DE DRAMA, COMÉDIA OU MUSICAL
Henry Winkler (Barry)
John Lithgow (The Old Man)
John Turturro (Ruptura)
Jonathan Pryce (The Crown)
Tyler James Williams (Abbott Elementary)

MELHOR SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Abbott Elementary
Hacks
Only Murders in the Building
O Urso
Wandinha

MELHOR ATRIZ EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Jean Smart (Hacks)
Jenna Ortega (Wandinha)
Kaley Cuoco (The Flight Attendant)
Quinta Brunson (Abbott Elementary)
Selena Gomez (Only Murders in the Building)

MELHOR ATOR EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Bill Hader (Barry)
Donald Glover (Atlanta)
Jeremy Allen White (O Urso)
Martin Short (Only Murders in the Building)
Steve Martin (Only Murders in the Building)

MELHOR MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV
Black Bird
Dahmer: Um Canibal Americano
The Dropout
Pam & Tommy
The White Lotus

MELHOR ATRIZ EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV
Amanda Seyfried (The Dropout)
Jessica Chastain (George & Tammy)
Julia Garner (Inventando Anna)
Julia Roberts (Gaslit)
Lily James (Pam & Tommy)

MELHOR ATOR EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV
Andrew Garfield (Em Nome do Céu)
Colin Firth (A Escada)
Evan Peters (Dahmer: Um Canibal Americano)
Sebastian Stan (Pam & Tommy)
Taron Egerton (Black Bird)

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV
Aubrey Plaza (The White Lotus)
Claire Danes (A Nova Vida de Toby)
Daisy Edgar-Jones (Em Nome do Céu)
Jennifer Coolidge (The White Lotus)
Niecy Nash (Dahmer: Um Canibal Americano)

MELHOR ATOR COADJUVANTE EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU FILME PARA TV
Domhnall Gleeson (O Paciente)
F. Murray Abraham (The White Lotus)
Paul Walter Hauser (Black Bird)
Richard Jenkins (Dahmer: Um Canibal Americano)
Seth Rogen (Pam & Tommy)

“Aftersun”, uma melancólica meditação sobre as lembranças que colecionamos e como elas acabam nos (re)definindo

I think it’s nice that we share the same sky.

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Direção: Charlotte Wells

Roteiro: Charlotte Wells

Elenco: Frankie Corio, Paul Mescal, Celia Rowlson-Hall, Sally Messham, Ayse Parlak, Sophia Lamanova, Brooklyn Toulson, Spike Fearn, Kayleigh Coleman, Harry Perdios, Ruby Thompson, Ethan Smith, Onur Eksioglu, Cafer Karahan

Reino Unido/Estados Unidos, 2022, Drama, 102 minutos

Sinopse: Sophie reflete sobre a alegria e a melancolia das férias que ela tirou com seu pai 20 anos antes. Memórias reais e imaginárias preenchem as lacunas enquanto ela tenta reconciliar o pai que conheceu com o homem que desconhecia.

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* Atenção! O texto abaixo contém spoilers envolvendo detalhes centrais do filme.

Nossas memórias não são termômetros tão confiáveis porque dependem de onde estamos agora e, principalmente, do sentido que passamos a atribuir às coisas quando tomamos alguma perspectiva. Talvez aquele relacionamento repleto de momentos felizes tenha suas lembranças distorcidas porque resultou em uma dolorosa separação. Um período difícil de anos anteriores de repente é visto de forma positiva na medida em que acabou proporcionando uma série de aprendizados. Ou, então, aquelas ensolaradas férias de infância ganham, com o passar dos anos, um ar pesado e triste, em função de tudo o que aprendemos com as dores trazidas pela vida adulta. A tônica de Aftersun, longa-metragem de estreia de Charlotte Wells, é justamente essa: abordar o tempo como ferramenta indispensável no processo de ressignificar sentimentos, percepções e vivências.

Tudo parte de uma perspectiva presente — a protagonista adulta está revisitando as gravações de um período de férias na Turquia com o pai —, mas Aftersun se situa no passado, convidando o espectador a preencher as lacunas do que está acontecendo, especialmente daquilo que uma pequena Sophie (Frankie Corio) ainda não enxerga em função da idade e só passará a entender quando se tornar adulta. Para tanto, a diretora se vale de uma narrativa cotidiana e sem grandes acontecimentos dramáticos. O que importa aqui é atmosfera. E que atmosfera! Desde os primeiros minutos percebemos o filme envolto em um certo incômodo que não condiz com os momentos supostamente felizes entre pai e filha. No final das contas, por que a alegria parece tão triste?

Wells nos torna íntimos dos personagens a partir das circunstâncias mais banais. Entre uma e outra situação, como um passeio de barco ou um banho de lama, ela revela, com muita discrição, detalhes munidos de discretos significados: os pais da protagonista são separados, Calum (Paul Mescal) se diz surpreso de ter conseguido completar 30 anos e os livros que ele leva para a viagem têm como tema a meditação. Dar pequenas pinceladas em detrimento da encenação de grandes dramas faz muito sentido para aquilo que Aftersun emula com maestria em atmosfera: o estado de depressão de Calum, que busca esconder sua condição para cumprir o esperado papel de um pai diante da filha durante em um período de férias.

Ainda que Sophie perceba mais coisas do que Calum imagina, ele, inevitavelmente, faz de tudo para manter as aparências, represando angústias e tristezas que, assim como a própria protagonista em sua versão adulta, jamais saberemos quais são. Essa barreira invisível entre os personagens não impede o roteiro de iluminar a relação dos dois. Há uma cumplicidade palpável ali, representada em cenas banalíssimas e, por isso mesmo, tão próximas da vida real. A delicadeza de Aftersun também se estende à jornada individual de Sophie, situada naquela fase da vida em que uma criança começa a se descolar dos pais para, aos poucos, começar a construir sozinha a sua identidade individual.

Parte da dor que a Sophie adulta sente vem dessa impossibilidade de ter ajudado seu pai. Não por vontade própria, e sim pelos limites da vida: sendo uma criança, ela jamais poderia imaginar ou compreender o que realmente estava se passando dentro do homem que lhe deu à vida e que, presume-se, ela viu pela última vez no corredor de um aeroporto ao final das férias. E, anterior a isso, talvez ainda mais cruel seja a ideia de nunca ter conhecido de verdade um pai que agora, sendo compreendido a partir de memórias ressignificadas, diz-lhe tanto sobre a vida e suas dificuldades. Tantas divagações são possíveis porque Aftersun nos inunda com algo cada vez mais em falta: empatia. É fácil fazer o exercício de se colocar tanto no lugar da protagonista quanto no de Calum, ambos interpretados com humanidade ímpar por Frankie Corio e Paul Mescal.

Nos minutos finais, a diretora sai um pouco do realismo com o intuito de entrelaçar passado e presente em uma das cenas mais bonitas do ano. Desafio alguém a não levá-la na memória. Falo da sequência ao som de Under Pressure, do Queen, capaz de sintetizar o universo inteiro do filme. A banda do saudoso Freddie Mercury que me perdoe, mas não conseguirei mais ouvir a canção do mesmo jeito, tamanha a emoção. Há de se tirar o chapéu para essa estreia de Charlotte Wells em longas-metragens, e fico feliz em ver que, até aqui, a produção tem sido reconhecida por público e crítica como merece. Que essa rara sensibilidade em conjugar imersão e emoção possa ser vista em outros trabalhos da diretora. E acho que vai, pois, se ela já começou assim, com um dos retratos mais verdadeiros sobre a depressão, mal posso esperar pelo que vem por aí.

Nem suspense, nem terror, “Até os Ossos” é experiência que causa estranhamento — e dos bons

Let’s be people.

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Direção: Luca Guadagnino

Roteiro: David Kajganich, baseado no romance “Bones and All”, de Camille DeAngelis

Elenco: Taylor Russell, Timothée Chalamet, Mark Rylance, Michael Stuhlbarg, Chloë Sevigny, Kendle Coffey, André Holland, Ellie Parker, Madeleine Hall, Christine Dye, Sean Bridgers, Anna Cobb, David Gordon Green, Jake Horowitz, Jessica Harper

Bones and All, EUA/Itália, Drama, 130 minutos

Sinopse: O amor floresce entre uma jovem à margem da sociedade (Taylor Russell) e um vagabundo marginalizado (Timothée Chalamet) enquanto eles embarcam em uma odisseia de três mil milhas pelas estradas secundárias da América. No entanto, apesar de seus melhores esforços, todos os caminhos levam de volta a seus passados ​​aterrorizantes e a uma posição final que determinará se o amor deles pode sobreviver às diferenças.

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Não se engane: o diretor Luca Guadagnino (Me Chame Pelo Seu Nome, Um Mergulho no Passado) traz múltiplas visões e metáforas para a questão do canibalismo, mas, em momento algum, Até os Ossos pode ser rotulado como um filme de terror ou como uma produção ao estilo da minissérie Dahmer: Um Canibal Americano. Inclusive, mesmo nas partes em que poderia se entregar ao gore ou ao apelo gráfico, Guadagnino deixa a materialização do tema quase fora de quadro. Para ele, o ponto central são as angústias e questões existenciais de personagens que, por serem canibais, não encontram um lugar ao mundo, uma clara alusão à maneira com que a sociedade relega as minorias e os “diferentes”.

É importante entender a negligência com o canibalismo: mesmo depois de tantos anos, trata-se de um assunto raramente discutido. Pouco se sabe sobre a sua real origem e suas implicações psicológicas, assim como não existe na legislação uma lei específica que caracterize o canibalismo como crime (os casos já julgados foram, na verdade, enquadrados como homicídio ou destruição de cadáver). É um tabu que costuma despertar a curiosidade alheia — não à toa, a já citada Dahmer se tornou, em poucos dias, a segunda série mais assistida da história da Netflix —, mas que na prática, fica relegada a um certo limbo para o qual ninguém quer olhar.

Até os Ossos está interessado no terreno dessas indefinições, ao mesmo tempo em que toma cuidado para não ser um estudo sobre canibais, muito menos uma romantização. A partir da jornada de Maren (Taylor Russell), o filme nos coloca na pele de uma garota que há anos vive de cidade em cidade fugindo com o pai porque, sempre em determinado ponto, já não consegue controlar seus impulsos em público. Quando é abandonada até mesmo por seu progenitor, Maren, então, parte em busca da mãe que nunca conheceu e, ao longo do caminho, surpreende-se ao, pela primeira vez, encontrar outros como ela. Todos seres humanos subterrâneos, invisíveis e incapazes de viver dentro de qualquer normalidade.

Tanto Até os Ossos rejeita a romantização do canibalismo que a palavra em si sequer é mencionada — eles são “comedores” (eaters, em inglês), termo unanimemente usado por esses personagens em diferentes pontos dos Estados Unidos. A discussão verdadeira discussão se dá em torno de como lidar com ela na prática: enquanto Maren deseja encontrar uma maneira de se alimentar sem precisar cometer crimes, outros acabam matando por puro instinto, algo que a assombra do ponto de vista ético e emocional, mesmo quando uma dessas pessoas é Lee (Timothée Chalamet), um comedor forasteiro que terá papel crucial em sua jornada.

De todos os encontros pelo caminho, esse é, sem dúvida, o que marca a garota – e também o próprio Lee, que, lutando contra seus próprios demônios, aceita a ideia de cair na estrada para ajudar Maren na busca pela mãe. A partir daí, Até os Ossos passa a ser também um road movie, centrado no relacionamento entre esses dois indivíduos que se reconhecem no não-pertencimento e nas suas tragédias pessoais em comum. Se Maren é a “heroína” em busca de algum sentido, Lee é o jovem punk e autocentrado que aos poucos baixa a guarda quando se percebe aceito e compreendido. São dois desabrochares que Guadagnino trabalha com habilidade para acrescenta outro gênero à mistura: o coming of age.

Como um road movie, Até os Ossos aproveita bem os diferentes estados (físicos e emocionais) pelos quais os protagonistas passam. Para além das relações possíveis de serem estabelecidas com a vida real a partir da natureza dos personagens, a trama originada do romance homônimo de Camille DeAngelis ganha nuances com a fotografia muito discreta e eficiente de Arseni Khachaturan, que mescla o estado de espírito dos protagonistas com as cidades cruzadas pelos personagens, e com a trilha sonora assinada pelos sempre formidáveis Trent Reznor e Atticus Ross, em um trabalho de estilo bem diferente do que costumam apresentar no cinema. Outro ponto alto é a participação de figuras muito peculiares, como os personagens de Mark Rylance e Michael Stuhlbarg, que causam sensações das mais estranhas, perigosas e desconfortáveis.

Rylance e Stuhlbarg são importantes porque reacendem um certo senso de urgência presente na arrancada e que acaba amortecido quando nasce o romance central. A paixão entre Lee e Maren funciona porque Taylor Russell e Timothée Chalamet são ótimos atores, mas é inegável que, com ela, o filme se torna mais plano em termos de atmosfera. Se o canibalismo era ou não a melhor das metáforas para tudo o que Guadagnino quer abordar — a luta para simplesmente existir, a busca por um lar, o papel do autoconhecimento no movimento de amar outra pessoa, etc. — é outra discussão, principalmente porque ela vai do paladar de cada um diante de um tema tão complicado e polêmico. No meu caso, ainda que com algumas ressalvas, Até os Ossos causou estranhamento imediato… E dos bons.

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