Com mais um prêmio de melhor atriz por Tár, Cate Blanchett é a única entre o quarteto de atores da temporada com todas as estatuetas das principais premiações televisionadas até aqui.
O BAFTA começa a ter cara de BAFTA novamente com a lista de vencedores revelada no último domingo (19). Isso quer dizer que os britânicos voltaram a fazer suas próprias escolhas, sem tentar prever o Oscar ou ir para um caminho tão extremo (mas particularmente interessante) comoos tomados em 2021. A prova mais evidente é o surpreendente número de estatuetas atribuídas ao alemão Nada de Novo no Front, incluindo melhor filme, direção e roteiro adaptado, indo muito além dos esperados (e merecidos) prêmios técnicos. A grande performance do longa de Edward Berger entre os britânicos fortalece a sensação de que resultado semelhante pode ser uma tendência para o Oscar em várias categorias.
O BAFTA também rejeitou a previsibilidade entre os coadjuvantes, conferindo as estatuetas para Kerry Condon e Barry Keoghan, ambos de Os Banshees de Inisherin, que desbancaram o favoritismo de Angela Bassett (Pantera Nega: Wakanda Para Sempre) e Ke Huy Quan (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo), respectivamente. Nessa altura do campeonato, somente Cate Blanchett (Tár) segue rumo ao Oscar tendo vencido os principais prêmios televisionados da temporada (Globo de Ouro, Critics’ Choice Awards e BAFTA), faltando apenas o Screen Actors Guild Awards no caminho. O maior tombo sofrido no BAFTA foi o de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, que, após viver excelente momento com a consagração no Critics’ Choice e o prêmio de direção no Directors Guild of America, acabou apenas com o prêmio de melhor montagem.
Confira abaixo a lista de vencedores:
MELHOR FILME: Nada de Novo no Front MELHOR FILME BRITÂNICO: Os Banshees de Inisherin MELHOR DIREÇÃO: Edward Berger (Nada de Novo no Front) MELHOR ATRIZ: Cate Blanchett (Tár) MELHOR ATOR: Austin Butler (Elvis) MELHOR ATRIZ COADJUVANTE: Kerry Condon (Os Banshees de Inisherin) MELHOR ATOR COADJUVANTE: Barry Keoghan (Os Banshees de Inisherin) MELHOR ELENCO: Elvis MELHOR ROTEIRO ORIGINAL: Os Banshees de Inisherin MELHOR ROTEIRO ADAPTADO: Nada de Novo no Front MELHOR FILME EM LINGUA NÃO-INGLESA: Nada de Novo no Front (Alemanha) MELHOR DOCUMENTÁRIO: Navalny MELHOR ANIMAÇÃO: Pinóquio por Guillermo del Toro MELHOR FOTOGRAFIA: Nada de Novo no Front MELHOR TRILHA SONORA: Nada de Novo no Front MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO: Babilônia MELHOR FIGURINO: Elvis MELHOR MONTAGEM: Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo MELHOR MAQUIAGEM E PENTEADOS: Elvis MELHOR SOM: Nada de Novo no Front MELHORES EFEITOS VISUAIS: Avatar: O Caminho da Água MELHOR ESTREIA BRITÂNICA: Charlotte Wells (roteiro e direção de Aftersun) MELHOR CURTA-METRAGEM: The Black Cop MELHOR CURTA-METRAGEM BRITÂNICO: An Irish Goodbye MELHOR CURTA-METRAGEM DE ANIMAÇÃO: The Boy, the Mole, the Fox and the Horse EE RISING STAR: Emma Mackey
I need to know that I have done one right thing with my life.
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Samuel D. Hunter, baseado no espetáculo “The Whale”, de autoria própria
Elenco: Brendan Fraser, Sadie Sink, Hong Chau, Ty Simpkins, Samantha Morton, Sathya Sridharan, Jacey Sink
The Whale, EUA, 2022, Drama, 117 minutos
Sinopse: Charlie (Brendan Fraser) é um professor de inglês recluso, que vive com obesidade severa e luta contra um transtorno de compulsão alimentar,. Ele dá aulas online, mas sempre deixa a webcam desligada, com medo de sua aparência. Apesar de viver sozinho, ele é cuidado pela sua amiga e enfermeira, Liz (Hong Chau), e quer se reconectar com a filha adolescente que abandonou anos atrás, reparando seus erros do passado.
Com cerca de 270 kg, Charlie (Brendan Fraser) usa instrumentos para juntar coisas do chão porque já não consegue mais se agachar. Também precisa de equipamentos para conseguir levantar da cama ou tomar banho. Com a pressão na casa dos 23 por 18, sequer consegue dar uma risada, pois imediatamente se engasga, começa a tossir e sente uma pontada no coração. E, mesmo assim, Charlie se recusa a ir ao hospital ou fazer qualquer coisa para amenizar sua situação. A desculpa é a de que se endividaria em hospitais, mas não demora muito para que o espectador perceba que ele não quer fazer nada em relação a isso. Na verdade, o protagonista de A Baleia já desistiu da vida e não faz questão de mover um centímetro sequer para reverter a tragédia anunciada de sua morte.
Não é de hoje que o diretor Darren Aronofsky mergulha na destruição de personagens. Do perturbador Réquiem Para Um até o mais recente e polêmico Mãe!, sua predileção é pela espiral que leva personagens ao fundo do poço ou, pelo menos, a um mundo paralelo à realidade. A Baleia permanece nessa mesma esteira com uma sutil diferença: no filme, Charlie orquestra conscientemente a sua própria destruição. E isso causa um incômodo gigantesco, pois, a cada mordida desesperada que ele dá em pedaços de pizzas ou barras de chocolates, sabemos que isso pode lhe custar a vida — e que, ao contrário de nós, ele não está nem aí. O filme, portanto, se encarregará de ilustrar as razões que levaram o protagonista até ali e o que ele quer deixar (ou não) para as pouquíssimas pessoas da sua vida.
Samuel D. Hunter escreve a adaptação do seu espetáculo homônimo pincelando temas como religião, sexualidade e paternidade, preservando várias dinâmicas teatrais. A Baleia se dá em apenas um único espaço e se encarrega de promover um entra e sai de personagens que irão descortinar detalhes até então desconhecidos pelo espectador. Aronofsky escapa da armadilha de fazer um teatro filmado, ainda que isso não lhe garanta um êxito completo. Difícil saber até que ponto Hunter teve a palavra final sobre o que seria preservado ou não do espetáculo, mas há diversas barrigas na adaptação quanto ao uso de personagens secundários, como a filha vivida por Sadie Sink, que não precisava de tanta presença, até porque o filme pesa a mão na construção da imagem de uma adolescente rebelde.
Os subtextos seguem um caminho semelhante com arestas que poderiam ser tranquilamente aparadas. É o caso de boa parte das aparições de Thomas (Ty Simpkins), um missionário que salva Charlie em um momento crucial e tenta convencê-lo a buscar por algum tipo de redenção. Via de regra, A Baleia é sempre melhor quando o personagem se revela a partir do convívio com pessoas que estão há bastante tempo na sua vida. Nesse sentido, ao contrário da filha, a enfermeira Liz (Hong Chau) é um acerto no que se refere à dramatização, uma vez que ela se vê em uma delicada encruzilhada: ao mesmo tempo em que quer fazer de tudo para salvar o amigo, também acata a decisão tomada por ele de não sair mais de casa e viver do jeito que está.
Não é errado dizer que se trata do filme mais “intimista” de Darren Aronofsky. Afinal, tudo se dá no apartamento do protagonista em dias banais, com pessoas comuns e sem grandes ambições. A contradição é que Aronofsky nunca foi um diretor necessariamente afeito a esse estilo. Pelo contrário. Na realidade, a ambição — seja ela temática ou de proporções técnicas — é que sempre foi uma marca da sua carreira, e isso parece ser algo do qual ele não abre mão. Isso acaba prejudicando A Baleia, pois o diretor quer engrandecer essa história a cada minuto, inclusive nos momentos em que ela necessita de tons amenos ou a simples articulação entre texto e interpretação. Percebam a trilha sonora de Rob Simonsen: apesar de boa, é usada em demasia, trazendo gravidade e incômodo em sequências que já falam por si só em tais aspectos.
O próprio protagonista basta para que A Baleia tenha o devido impacto, por mais que estejamos diante de um longa-metragem suscetível a diversas polêmicas e problematizações. Enquanto é compreensível que parte do público acuse o filme de gordofobia em função da miserabilidade aplicada à condição do protagonista, vejo tudo como uma questão não tão simplista assim. Quando Charlie pergunta ao missionário se ele acha seu corpo nojento, fica evidente que ele reconhece a maneira com que a sociedade olha para o seu tamanho. Os 270 kg são a representação de alguém que, a partir de uma dolorosa perda pessoal, terminou submerso em depressão, isolamento e ataques de ansiedade. Definitivamente não enxergo a representação de Charlie como um ato de má fé vindo de um roteirista que já passou para uma luta contra desordens alimentares.
O que não funciona tão bem na construção do protagonista é a maneira com que A Baleia o torna um mártir acima do bem e do mal. Com muita generosidade, Charlie perdoa e compreende todas as pessoas, mesmo quando elas não dão razão para isso, em especial a filha que, muitas vezes, beira o insuportável. É uma posição que, de vez em quando, soa artificial, mas que Brendan Fraser compensa amplamente e um pouco mais. Ele nunca parece engessado pelas pesadas (e impecáveis) próteses, que são parte fundamental da sua interpretação. Impressiona como Fraser se comunica através do olhar e dos movimentos físicos tão complicados desse homem sem presente e sem futuro. Ele faz de Charlie um personagem crível, múltiplo e íntimo. É a chance de uma carreira e, a cada momento, o ator parece saber disso. Somente por ele, se não também pelo desconforto propositalmente trabalhado ao longo da projeção, A Baleia já vale a pena.
Eden Dambrine é uma revelação no dilacerante Close, oitavo filme a garantir para a Bélgica uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional
AVATAR: O CAMINHO DA ÁGUA (Avatar: The Way of Water, 2023, de James Cameron): Se há algo em que James Cameron nunca falha é em entregar aquilo o que sempre prometeu. Avatar: O Caminho da Água não foge à regra. É espetáculo vistoso e capaz de preencher a tela, justificando tanto tempo de espera desde o lançamento do filme original em 2009. E não é impacto válido apenas para quem tem a oportunidade de ver na melhor sala possível: aposto boa parte das minhas fichas que essa continuação, assim como todos os filmes de Cameron, preservará sua grandiosidade em qualquer tela. E, digamos, que para por aí, pois O Caminho da Água tem dois problemas centrais, começando pela ausência do fator surpresa. Já conhecemos profundamente a terra de Pandora e sua impressionante estética, algo que Cameron tenta contornar — às vezes acertando, outras não — ao levar os personagens para uma outra localização dentro daquele universo. Sem a efervescência de algo novo em termos de espetáculo, o peso maior recai sobre o roteiro, sempre um calcanhar de Aquiles na filmografia do diretor. E a má notícia é que o texto de O Caminho da Água se revela fraco até mesmo para o padrão James Cameron. Com exceção da baixa de um ou outro personagem e dos comoventes instintos parentais dos protagonistas para proteger seus filhos, essa sequência chove no molhado e termina quase como se nada tivesse acontecido em termos práticos ao longo de mais de três horas, além de se repetir na preguiçosa reciclagem do vilão. No geral, em termos comparativos com o filme anterior, não são bons indícios para uma franquia que Cameron já revelou planejar até um quarto, quinto, sexto ou sétimo longa-metragem…
BLONDE (idem, 2022, de Andrew Dominik): Antes Blonde fosse apenas um projeto ruim desmerecedor do talento a sua protagonista, uma vez que desses temos aos montes, ainda mais quando falamos sobre cinebiografias. A questão com esse filme sobre a vida do ícone Marilyn Monroe é outra: a de mau gosto mesmo. Tendo como base o livro homônimo de Joyce Carol Oates, o diretor Andrew Dominik (O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford) usa um viés assumidamente imaginativo apenas para torturar Marilyn Monroe. Não que a protagonista de clássicos como O Pecado Mora ao Lado e Os Homens Preferem as Loiras tenha tido uma vida fácil. Pelo contrário. Agora, resumi-la a isso é desonrar a lembrança de uma das maiores estrelas já aclamadas em Hollywood. A cruz carregada pela protagonista é tão pesada o tempo inteiro que, em certo ponto, o drama acaba se banalizando. Dominik tem imensas virtudes ao compor imagens — não à toa, a fotografia de Chayse Irvin e a trilha de Nick Cave e Warren Ellis brilham mesmo com todos os problemas amontoados —, mas, neste caso, falta o mínimo de calibragem para abarcar melhor tantas emoções que, por si próprias, já são deveras pesadas. Blonde é longuíssimo e, diante de tanto sofrimento, comete até a proeza de transformar Marilyn Monroe em uma protagonista das mais chatas. Ainda assim, com tudo trabalhando contra, Ana de Armas sobrevive e vai além. Sua performance acerta na meticulosidade de técnica e sensibilidade, expondo nuances e observações que o seu próprio filme parece incapaz de perceber — ou pior, de aceitar como bons caminhos a serem seguidos.
CLOSE (idem, 2022, de Lukas Dhont): Evite a qualquer custo spoilers envolvendo Close, título que marca a oitava indicação da Bélgica ao Oscar de melhor filme internacional. Saber de antemão o núcleo das emoções deste segundo longa-metragem de Lukas Dhont afeta a construção de impacto da jornada nada fácil de uma amizade entre dois jovens garotos. Pelo menos em anos recentes, não tenho lembrança de um coming of age tão doloroso e que confie tanto no espectador para absorver uma situação difícil e incômoda. Se, do ponto de definição, o coming of age é uma história em que determinado personagem sai da infância para adentrar a vida adulta, Close dramatiza esse rito ao se concentrar no que acontece quando alguém é obrigado a administrar emoções complicadíssimas até mesmo para adultos. Na mistura, coloca ainda outro dilema delicado: por que a sociedade cobra tantas respostas e definições em uma fase da vida amplamente marcada pela (auto)descoberta e pela busca do entendimento daquilo que se quer ser, fazer ou sentir? Por que é exigido que uma criança seja de um jeito ou de outro quando nem ela própria começou a pensar em quem deseja se tornar? Assim como no devastador Alabama Monroe, a Bélgica está mais uma vez sob os holofotes mundiais com uma obra difícil de assistir pela franqueza com que mapeia os desdobramentos de uma situação responsável por deixar marcas indeléveis para toda a vida. Na dianteira do elenco, o jovem Eden Dambrine é uma revelação e entrega desempenho incrivelmente maduro. E, para quem gosta de trilhas sonoras, vale prestar atenção nas composições instrumentais de Valentin Hadjadj, todas no equilíbrio certo entre a dor e a beleza.
TOP GUN: MAVERICK (idem, 2022, de Joseph Kosinski): Ninguém imaginava que Top Gun: Maverick pudesse ir tão longe. O sucesso de bilheteria, claro, era esperado, mas o que surpreendeu mesmo foi o amplo reconhecimento da crítica e as suas seis indicações ao Oscar, incluindo as de melhor filme e roteiro adaptado. Além de ser um longa com adrenalina toda vez que aposta na adrenalina das cenas aéreas, Top Gun: Maverick reforça o talento do cineasta Joseph Kosinski em orquestrar a parte técnica, algo perceptível desde a sua estreia na direção de longas-metragens com Tron: O Legado. Diverte e frequentemente empolga de maneira que seu sucesso com o público seja inquestionável. De bandeja, a sequência do longa-metragem original de 1986 termina ao som de Hold My Hand, ótima canção de Lady Gaga também indicada ao Oscar. Ainda assim, é de se estranhar tantas honrarias a ponto de Top Gun: Maverick ter sido considerado o melhor filme do ano pelo National Board of Review. Não é para tanto. Por outro lado, pode ser que uma caraterística da qual eu não compartilho pese bastante na avaliação: a nostalgia. Kosinski preserva intacta uma certa áurea dos anos 1980, compilando referências a personagens e acontecimentos passados, lembranças ainda muito presentes para o protagonista interpretado por Tom Cruise e um punhado de voos incríveis (e potencializados pela evolução técnica do cinema desde os anos 1980). Já para aquele espectador que não tem relação com o filme original ou caiu de paraquedas na continuação, é provável que, dramaticamente falando, tudo soe um pouco datado e (bastante) cafona. Ou seja, como sempre acontece no cinema, tudo é questão de ponto de vista.
Why does love — the absence of love, the end of love, the need for love — result in so much violence?
Direção: Sarah Polley
Roteiro: Sarah Polley, baseado no romance “Women Talking”, de Miriam Toews
Elenco: Jessie Buckley, Rooney Mara, Claire Foy, Ben Whishaw, Judith Ivey, Kate Hallett, Emily Mitchell, Liv McNeil, Sheila McCarthy, Michelle McLeod, Frances McDormand, Kira Guloien, Shayla Brown
Women Talking, EUA, 2022, Drama, 104 minutos
Sinopse: Em 2010, as mulheres de uma comunidade religiosa isolada lutam para conciliar sua realidade com sua fé. (Adoro Cinema)
O título original — Women Talking, ou seja, mulheres falando/conversando, em uma tradução literal — é mais fiel ao que a diretora Sarah Polley encena neste seu quarto longa-metragem, chamado aqui no Brasil de Entre Mulheres. Literalmente, a adaptação do livro homônimo lançado por Miriam Toews em 2018 traz várias personagens que, durante pouco mais de 90 minutos, discutem se devem ou não fugir da comunidade religiosa em que (con)vivem com homens abusadores e violentos, muitas vezes dentro de suas próprias casas. Não é coisa do século passado: apesar dos figurinos e da direção de arte evocarem tempos antigos, Entre Mulheres deixa uma incômoda sensação de que, seja em que época for, o sistema patriarcal segue, de um jeito ou de outro, dolorosamente enraizado em todos os cantos do mundo.
Sarah Polley estreou na direção de longas-metragens aos 27 anos de idade com uma maturidade impressionante. Seu Longe Dela, de 2006, é ímpar na sensibilidade com que fala sobre um tema à época bastante distante daquela jovem cineasta: as transformações trazidas pelo Mal de Alzheimer a um casamento de mais de quatro décadas. Agora, dez anos após ter realizado o pessoalíssimo documentário Histórias Que Contamos, ela demonstra que sua habilidade como narradora segue intacta com Entre Mulheres. Mais do que isso, Polley pega um formato em que é fácil resvalar para a linguagem teatral para colocar na tela um filme dinâmico e que, do ponto de vista temático, discute as violências dirigidas ao universo feminino sem cair em discursos fáceis.
Tudo o que Sarah Polley não quer é, justamente, respostas prontas, aproveitando muito bem personagens em conflito sobre sair ou não da tal comunidade em que vivem. Há aquelas convictas de que, por só conhecerem uma única realidade durante toda uma vida, não conseguirão sobreviver sem os homens. Já uma personagem específica é categórica: ele será capaz de matar para defender as filhas caso continue onde está. Mulheres de diferentes gerações e convicções analisam todos os cenários — e, a partir deles, Polley versa sobre violência, costumes, ideais, as trágicas universalidades que unem as mulheres e, por que não, as discordâncias existentes entre pessoas que teoricamente deveriam estar de acordo em prol de um bem maior.
Entre Mulheres não deixa de ser uma celebração ao diálogo, com toda atenção aos detalhes e às camadas que apenas um olhar feminino poderia conferir a um projeto como esse. Também tem tempo para tecer reflexões com calma porque os homens estão fora de quadro, com exceção do personagem de Ben Whishaw, por razões logo explicadas pelo roteiro. Deixar os homens de fora é uma jogada acertada porque assim Polley outra vez confere atenção prática às mulheres, colocando-as como nosso ponto de referência em relação aos conflitos e suas urgências. Sabemos o que sabemos por causa delas e confiamos em cada palavra quando o roteiro nos insere em todas as conversas como se estivéssemos ali, ouvindo atentamente as idas e vindas de reflexões e argumentos.
Ao mesmo tempo, ser de natureza “palavrosa” não faz de Entre Mulheres um apanhado inchado de observações e personagens. O roteiro mais ambicioso da carreira de Polley até aqui se garante porque é instigante ao deixar o espectador curioso pela resolução. Conseguirão aquelas mulheres chegarem a um acordo? E, se não houver unanimidade, como ficam as que discordam ou que não desejam seguir a maioria? Elas literalmente colocam no papel os prós e os contras de todos os possíveis caminhos e, para além das palavras, ganham vida nas mãos de um grupo extraordinário de atrizes, com direito a uma participação muito pequena de Frances McDormand, também produtora do longa.
De intérpretes já bastante conhecidas do público, como Claire Foy e Ronney Mara, a outras nem tanto, a exemplo de Michelle McLeod e August Winter (a segunda interpretando uma menina que passa a se identificar e a se vestir como um garoto), o elenco se caracteriza por uma colaboração generosa e equivalente entre as atrizes. Meu destaque particular fica com Jessie Buckley, que dá vida à personagem mais espinhosa de todas, daquele tipo que tem resposta para tudo e que caminha por uma linha muito tênue entre praticidade e um senso para lá de individualista. Sua reatividade levanta boa parte dos conflitos e diz mais sobre seus medos e anseios do que ela própria está disposta a admitir.
Por não ter lido o livro original de Miriam Towes — que, por sua vez, toma como inspiração o caso real de uma pequena comunidade boliviana em que nove homens drogavam e abusavam de mulheres locais —, fico sem poder dizer o quanto a adaptação é fiel ou transcende a obra que toma como base. Contudo, isoladamente como cinema, Entre Mulheres é uma excelente pedida para quem, assim como eu, acredita que a concisão de um bom roteiro, um ótimo elenco e uma direção que sabe o que está fazendo rende muito mais do que qualquer pirotecnia. Em uma de suas entrevistas sobre o filme, Sarah Polley apontou como a fotografia de tons dessaturados evoca à ideia de que o universo daquelas mulheres — e os conflitos inerentes a ele — já desapareceu há muitos anos. Otimismo demais diante das tragédias que ainda vemos por aí? Talvez. Mas envernizado por uma esperança que Polley traz com as pequenas grandes qualidades que lhe firmaram como uma cineasta para se acompanhar sempre.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, inclusive no Oscar. Academia concede 11 indicações ao filme da dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert, tornando-o filme mais lembrado da 95ª edição.
De bate-pronto, abaixo deixo registradas algumas (várias) impressões sobre os indicados ao Oscar 2023. Os vencedores serão conhecidos no dia 12 de março.
– Muito feliz com a liderança de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo. Quando assisti pela primeira vez, em junho do ano passado, jamais imaginei que a Academia compraria esse liquidificador de gêneros e ideias;
– Curti também a boa recepção para o alemão Nada de Novo no Front, que rejeita a glamourização da guerra e coloca o espectador no meio de um grande pesadelo nas trincheiras;
– Não reclamo da rejeição ao sul-coreano Decisão de Partir porque não me conectei com o filme em nenhum momento – assim como já tinha acontecido com A Criada, o trabalho anterior do diretor Park Chan-Wook;
– Manifesto minha decepção, no entanto, com o fato da Academia ter dado ao Pinóquio de Guillermo Del Toro somente a indicação em melhor animação. Dá a impressão de que um filme desse gênero só se habilita para outras categorias quando se encaixa na caixinha Disney/Pixar;
– Já estava quase escorrendo uma lágrima por Aftersun estar passando em branco quando anunciaram Paul Mescal em melhor ator. Merecia muito mais, mas, pelo menos, o belo filme de Charlotte Wells está muito bem representado com essa delicada performance;
– Quem também merecia bem mais é Entre Mulheres, da Sarah Polley, que, apesar da indicação a melhor filme e roteiro, deveria ter emplacado, no mínimo, indicações para duas ou três atrizes do elenco;
– Quero o que os membros da Academia beberam quando resolveram indicar Top Gun: Maverick em melhor roteiro adaptado. Mesmo em um ano fraco, é uma indicação completamente sem sentido e absurda;
– Temos apenas um concorrente não-europeu na categoria de melhor filme internacional: o ótimo Argentina, 1985. Fico feliz com uma possível vitória do longa, mas confesso que meu coração fica com o belga Close;
– Triste por ver mais uma vez o Paul Dano ignorado, dessa vez por Os Fabelmans, especialmente quando o Judd Hirsch concorre pelo mesmo filme por uma aparição mínima. Dano já merecia indicação desde os tempos de Pequena Miss Sunshine e Sangue Negro;
– Era para ser o ano em que a Academia indicaria duas atrizes negras na categoria de protagonista: Viola Davis (A Mulher Rei) e Danielle Deadwyller (Till). Ambas ficaram de fora;
– 16 dos 20 atores indicados esse ano estão pela primeira vez concorrendo ao Oscar. Renovação das boas, e sem enxurrada de cinebiografias. Amém!;
– Meu desafeto da temporada é Tár, que provavelmente dará um terceiro Oscar para a Cate Blanchett. Achei o filme interminável, desinteressante e até datado em suas discussões;
– Andrea Riseborough surgiu de última hora na categoria de melhor atriz devido a uma ampla campanha de outros atores nas redes sociais por sua performance em To Leslie. Dizem que isso vai mudar drasticamente a forma como as campanhas são direcionadas, mas campanha por redes sociais me lembram Donald Trump e Jair Bolsonaro, então prefiro não me entusiasmar.
– Por fim, acho que é a primeira vez que acompanho o anúncio dos indicados ao Oscar já tendo conferido todos os indicados a melhor filme. É uma seleção equilibrada e que, ao meu ver, tem filme para todos os gostos. E o mais importante: nenhum constrangimento. Pelo menos pra mim, claro.
Confira abaixo os indicados:
MELHOR FILME Avatar: O Caminho da Água Os Banshees de Inisherin Elvis Entre Mulheres Os Fabelmans Nada de Novo no Front Tár Top Gun: Maverick Triângulo da Tristeza Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
MELHOR DIREÇÃO Daniel Kwan e Daniel Scheinert (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo) Martin McDonagh (Os Banshees de Inisherin) Ruben Östlund (Triângulo da Tristeza) Steven Spielberg (Os Fabelmans) Todd Field (Tár)
MELHOR ATRIZ Ana De Armas (Blonde) Andrea Riseborough (To Leslie) Cate Blanchett (Tár) Michelle Yeoh (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo) Michelle Williams (Os Fabelmans)
MELHOR ATOR Austin Butler (Elvis) Bill Nighy (Living) Brendan Fraser (A Baleia) Colin Farrell (Os Banshees de Inisherin) Paul Mescal (Aftersun)
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE Angela Bassett (Pantera Negra: Wakanda Para Sempre) Hong Chau (A Baleia) Jamie Lee Curtis (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo) Kerry Condon (Os Banshees de Inisherin) Stephanie Hsu (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
MELHOR ATOR COADJUVANTE Barry Keoghan (Os Banshees de Inisherin) Brendan Gleeson (Os Banshees de Inisherin) Brian Tyree Henry (Passagem) Judd Hirsch (Os Fabelmans) Ke Huy Quan (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
MELHOR ROTEIRO ORIGINAL Os Banshees de Inisherin
Os Fabelmans
Tár
Triângulo da Tristeza Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
MELHOR ROTEIRO ADAPTADO Glass Onion: Um Mistério Knives Out Entre Mulheres Living Nada de Novo no Front Top Gun: Maverick
MELHOR FILME INTERNACIONAL Argentina, 1985 (Argentina) Close (Bélgica) EO (Polônia) Nada de Novo no Front (Alemanha) The Quiet Girl (Irlanda)
MELHOR DOCUMENTÁRIO All That Breathes All the Beauty and the Bloodshed A House Made of Splinters Navalny Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft
MELHOR ANIMAÇÃO Gato de Botas 2: O Último Pedido
A Fera do Mar
Marcel the Shell With Shoes On Pinóquio por Guillermo del Toro
Red: Crescer é uma Fera
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO Avatar: O Caminho da Água Babilônia Elvis Os Fabelmans Nada de Novo no Front
MELHOR FOTOGRAFIA Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades Elvis Império da Luz Nada de Novo no Front Tár
MELHOR FIGURINO Babilônia Elvis Pantera Negra: Wakanda Para Sempre Sra. Harris vai a Paris Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
MELHOR MONTAGEM Os Banshees de Inisherin Elvis Tár Top Gun: Maverick Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
MELHOR SOM Avatar: O Caminho da Água Batman Elvis Nada de Novo no Front Top Gun: Maverick
MELHOR TRILHA SONORA Babilônia Os Banshees de Inisherin Os Fabelmans Nada de Novo no Front Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL “Applause” (Tell it Like a Woman) “Hold My Hand” (Top Gun: Maverick) “Lift Me Up” (Pantera Negra: Wakanda Para Sempre) “Naatuu Naatu” (RRR: Revolta, Rebelião, Revolução) “This is Life” (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
MELHOR MAQUIAGEM E PENTEADOS A Baleia Batman Elvis Nada de Novo no Front Pantera Negra: Wakanda Para Sempre
MELHORES EFEITOS VISUAIS Avatar: O Caminho da Água Batman Nada de Novo no Front Pantera Negra: Wakanda Para Sempre Top Gun: Maverick
MELHOR CURTA-METRAGEM An Irish Goodbye Ivalu Night Ride Le Pupille The Red Suitcase
MELHOR CURTA-METRAGEM DE ANIMAÇÃO The Boy, the Mole, the Fox and the Horse The Flying Sailor Ice Merchants An Ostrich Told Me the World is Fake, and I Think I Believe It My Year of Dicks
MELHOR CURTA-METRAGEM DE DOCUMENTÁRIO O Efeito Martha Mitchell The Elephant Whisperers Haulout How Do You Measure a Year? Stranger at the Gate