Cinema e Argumento

Três atores, três filmes… com Bruno Carmelo

tresbrunocarmeloCrítico de cinema desde 2004, Bruno Carmelo já passou por diversos veículos de comunicação, como AdoroCinema, Papo de Cinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua – Revista Universitária do Audiovisual, além de ser mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III. Ao longo de sua trajetória, também se tornou membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Acompanho o trabalho do Bruno há certo tempo e sabia que viria coisa boa da sua seleção para a coluna. Ele não só contabilizou mais uma menção à Giuletta Masina, tornando-a a atriz mais citada entre os 60 convidados que já passaram por aqui, como selecionou o primeiro trabalho de dublagem citado aqui, no caso, o de Pat Carroll como a inesquecível Ursula de A Pequena Sereia. Confiram abaixo todas as escolhas e comentários!

Giulietta Masina (Noites de Cabíria)
A atriz italiana foi uma das maiores intérpretes da sua geração, capaz de representar a fusão entre o estilo bruto no neo-realismo e as formas mais poéticas de atuação que se abriram ao cinema na Itália. Os livros de História costumam reduzi-la ao rótulo machista de “musa” de Federico Fellini, seu marido. No entanto, Masina também teve participações excelentes em obras de outros realizadores. Noites de Cabíria representou o ápice de sua carreira, não apenas em termos de premiações, mas de composição. A prostituta sonhadora, longe de qualquer idealização de beleza ou sedução, poderia se transformar numa vítima piedosa, excessivamente ingênua. A grande atriz injeta em Cabiria um vigor e uma melancolia impressionantes, mostrando-se excelente tanto nos silêncios quanto nos diálogos, nos instantes sozinha ou cercada de outras prostitutas. O rosto expressivo da artista marcou o imaginário de muitos cinéfilos.

Joanne Woodward (O Preço da Solidão)
A propósito de atrizes trabalhando com seus maridos, Joanne Woodward comprovou o imenso talento para papéis complexos e ingratos ao trabalhar com Paul Newman, enquanto diretor – com o diferencial, neste caso, de que ela sempre conquistou maior reconhecimento popular e crítico, enquanto atriz, do que o marido na função de diretor. Este belíssimo filme, de título muito mais intrigante originalmente do que na pálida tradução brasileira (algo como O Efeito dos Raios Gama nos Cravos-de-Defunto), é inteiramente focado na mulher histriônica e agressiva, considerada pelos vizinhos como a louca da cidade, para o desespero e vergonha das filhas. Ora, o espectador é convidado aos poucos a descobrir o motivo pelo qual se porta com tamanha violência com o meio ao redor. Woodward equilibra o teor da atuação de modo a provocar comoção por uma figura controversa, triste, que expressa um amor abusivo por ser a única maneira que aprendeu a amar. Beatrice é uma das grandes personagens da história do cinema, e a cena em que esta mãe visita a peça da filha na escola, gritando com todos ao redor (“Meu coração está cheio!”) representa um dos instantes mais fortes e dolorosos do cinema norte-americano.

Pat Carroll (A Pequena Sereia)
Assim como a história do cinema valoriza muito mais a imagem do que o som, a apreciação de atores também está mais ligada ao trabalho de corpo do que ao trabalho de voz. Ora, o cinema trouxe atuações brilhantes de voz original, algo indispensável a tantas animações clássicas. Pat Carroll foi uma figura essencial neste processo, e caso as premiações reconhecessem seu devido valor, ela seria listada no panteão de grandes intérpretes do cinema. Em especial, construiu a vilã Ursula, uma das melhores personagens da história do cinema animado, em A Pequena Sereia. Carroll injeta sedução, malícia, agressividade e uma dose inesperada de erotismo (e mesmo homoerotismo) quando o cinema ainda era ingênuo (ou esperto demais) para introduzir tais elementos numa produção familiar sem despertar a ira dos conservadores. Seja cantando ou falando, em tom introvertido ou exaltado, Ursula possui uma variação, uma intensidade e intencionalidade na voz que a situa entre as adversárias mais bem construídas da sétima arte – seja em animação ou live-action. Poor unfortunate souls são aqueles que nunca realmente reconheceram o papel artístico e expressivo da voz de um ator.

Os indicados ao Independent Spirit Awards 2023

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Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo lidera as indicações ao Independent Spirit Awards 2023.

Duas grandes mudanças marcam uma nova fase para o Independent Spirit Awards, prêmio dedicado ao cinema independente dos Estados Unidos desde 1986. A primeira é a criação de categorias neutras de interpretação, condensadas agora em melhor interpretação protagonistamelhor interpretação coadjuvante. E nela já temos um acerto: oito mulheres concorrem por seus papeis principais, dissolvendo um certo receio de que, sem definição de gênero, os homens dominariam a seleção. A segunda causou certo burburinho: de 22,5 milhões de dólares, a Film Independent, entidade realizadora do prêmio, subiu para 30 milhões de dólares o parâmetro de orçamento máximo para habilitar um filme como independente, ou seja, apto para concorrer. Li pela internet que elevar essa régua seria a porta de entrada para descaracterizar o conceito de cinema independente, mas é importante lembrar que o mundo mudou muito nos últimos anos e tudo inflacionou, inclusive a produção de filmes.

Com essas mudanças, entraram em cena produções como Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo TempoTár, liderando a lista de 2023 com oito e sete indicações, respectivamente. Prova de que o Spirit Awards não perdeu de vista suas origens é constatar que há espaço de obra para filmes menores, como o belo Aftersun, que chega aos cinemas brasileiros no dia 1º de dezembro e foi lembrado em diversas categorias. Depois de Yang, de Kogonada, é outro exemplo, tendo emplacado as categorias de melhor filme e direção. Para continuar entre os títulos que já vi, também são mais do que acertadas as indicações para Dale Dickey em performance protagonista por Uma Noite no Lago e até mesmo para Marcel the Shell With the Shoes On em melhor montagem. Sou suspeito para falar porque, desde o ano passado, passei a fazer parte da Film Independent, tendo voto na escolha dos vencedores, mas a lista é realmente boa e equilibrada. Os premiados serão conhecidas no dia 4 de março de 2023.

Confira abaixo a lista completa de indicados:

MELHOR FILME
Até os Ossos
Our Father, the Devil
Tár
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
Women Talking

MELHOR DIREÇÃO
Daniel Kwan e Daniel Scheinert (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
Halina Reijn (Morte Morte Morte)
Kogonada (Depois de Yang)
Todd Field (Tár)
Sarah Polley (Women Talking)

MELHOR PRIMEIRO FILME
Aftersun
Emily the Criminal
The Inspection
Murina
Palm Trees and Power Lines

MELHOR PERFORMANCE PROTAGONISTA
Andrea Riseborough (To Leslie)
Aubrey Plaza (Emily the Criminal)
Cate Blanchett (Tár)
Dale Dickey (Uma Noite no Lago)
Jeremy Pope (The Inspection)
Mia Goth (Pearl)
Michelle Yeoh (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
Paul Mescal (Aftersun)
Regina Hall (Honk for Jesus. Save Your Soul.)
Taylor Russell (Até os Ossos)

MELHOR PERFORMANCE COADJUVANTE
Brian D’Arcy James (The Cathedral)
Brian Tyree Henry (Passagem)
Gabrielle Union (The Inspection)
Jamie Lee Curtis (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
Jonathan Tucker (Palm Trees and Power Lines)
Ke Huy Quan (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)
Mark Rylance (Até os Ossos)
Nina Hoss (Tár)
Theo Rossi (Emily the Criminal)
Trevante Rhodes (Bruiser)

MELHOR PERFORMANCE REVELAÇÃO
Daniel Zolghadri (Funny Pages)
Frankie Corio (Aftersun)
Gracija Filipović (Murina)
Lily McInerny (Palm Trees and Power Lines)
Stephanie Hsu (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo)

MELHOR ROTEIRO
Catherine Called Birdy
Depois de Yang
Tár
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
Women Talking

MELHOR PRIMEIRO ROTEIRO
Emergência
Emily the Criminal
Fire Island
Morte Morte Morte
Palm Trees and Power Lines

MELHOR FOTOGRAFIA
Aftersun
Murina
Neptune Frost
Pearl
Tár

MELHOR MONTAGEM
Aftersun
The Cathedral
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
Marcel the Shell with Shoes On
Tár

MELHOR FILME INTERNACIONAL
Corsage (Áustria)
Joyland (Paquistão)
Leonor Will Never Die (Filipinas)
Return to Seoul (Camboja)
Saint Omer (França)

MELHOR DOCUMENTÁRIO
A House Made of Splinters
All That Breathes
All the Beauty and the Bloodshed
Midwives
Riotsville USA

PRÊMIO JOHN CASSAVETES
The African Desperate
Uma Noite no Lago
The Cathedral
Holy Emy
Something in the Dirt

PRÊMIO ROBERT ALTMAN
Women Talking (vencedor)

Rapidamente: “45 do Segundo Tempo”, “Argentina, 1985”, “O Enfermeiro da Noite” e “Mais Que Amigos”

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45 do Segundo Tempo é uma ode à amizade e traz uma das melhores atuações de Tony Ramos.

45 DO SEGUNDO TEMPO (idem, 2021, de Luiz Villaça): Saiu muito rápido de cartaz e não recebeu a devida atenção esse novo filme de Luiz Villaça que é uma afetuosa ode à amizade. No caso, a de três homens reconectados por circunstâncias da vida após muitos anos de afastamento. A consolidação desse reencontro, no entanto, não se dá de imediato e não é exatamente celebrativa. Ela acontece quando Pedro (Tony Ramos) anuncia seus planos de cometer suicídio, fazendo com que os amigos acabem revendo muitas questões do passado e do presente para que Pedro não cumpra com a intenção. No percurso, claro, todos reavaliarão as suas próprias vidas e as escolhas feitas pelo caminho. Como em todos os filmes de Luiz Villaça, 45 do Segundo Tempo aposta na riqueza das pequenas coisas da vida para emocionar e fazer rir, dando um tom melancólico a uma história que poderia resvalar no dramalhão. É muito generoso o olhar do longa sobre o passar do tempo, principalmente no que se refere à ideia de que nunca é tarde para recomeçar ou tentar recuperar quem desejávamos ser e não nos tornamos. Um tanto clichê, é verdade — e, às vezes, até pueril no humor, como na maior parte envolvendo o padre de Ary França —, mas de fácil identificação e com  as reflexões sempre pertinentes sobre os laços humanos que Villaça já apresentou em outros trabalhos como De Onde Eu Te Vejo. A cereja do bolo é a maravilhosa performance de Tony Ramos, em um papel versátil e de camadas como há muito tempo ele não recebia.

ARGENTINA, 1985 (idem, de Santiago Mitre): Não é por acaso a brincadeira de que só existem filmes argentinos estrelados por Ricardo Darín. À parte o óbvio componente da carreira bastante prolífera trilhada por ele desde sempre, há a frequência com que o ator participa de projetos da curva, como já aconteceu nas parcerias com o cineasta Juan José Campanella em filmes como O Filho da Noiva e O Segredo dos Seus Olhos. Pois agora, dirigido por Santiago Mitre, Darín estrela Argentina, 1985, um excelente longa que segue a tradição do cinema argentino de olhar para os traumas passados da nação com um olhar crítico e bem posicionado. O foco é o julgamento dos crimes cometidos por membros do exército durante a ditatura militar, intercalando com bastidores do processo e diversos pontos pessoais dos personagens envolvidos. Não se trata, entretanto, de um mero filme de tribunal: o que interessa a Santiago Mitre é deixar de lado a previsível exposição dos horrores da ditadura para mostrar como ela, mesmo depois de encerrada, permanece entranhada na sociedade, ainda com muitos demônios por serem exorcizados. Argentina, 1985 leva a discussão política e social para o plano humano, a partir de uma série de personagens que, pela habilidade do roteiro e pelo ótimo elenco, tornam-se próximos do espectador. Em mais de 140 minutos, Mitre cadencia a trama sem perder a plateia em um punhado de nomes ou situações. Em suma, para além de bom cinema, o longa é um registro dos mais importantes para o povo argentino e uma amarga lembrança para nós, brasileiros, que nunca vimos a nossa ditadura e seus fantasmas serem devidamente enterrados.

O ENFERMEIRO DA NOITE (The Good Nurse, 2022, de Tobias Lindholm): Poderia ser o mero cartão de visita para uma entrada em Hollywood, mas o roteirista dinamarquês Tobias Lindholm (A Caça, Druk: Mais Uma Rodada) estreia na cadeira de direção com um filme que, mesmo sem a sua assinatura no roteiro, consegue se esquivar de obviedades e de fórmulas que hoje garantem o êxito de produções envolvendo crimes da vida real. O Enfermeiro da Noite é muito feliz, por exemplo, ao dispensar o ponto de vista de Charlie Cullen (Eddie Redmayne) para colocar a plateia no lugar de outra personagem, a enfermeira Amy Loughren (Jessica Chastain). Isso funciona porque, assim como ela, descobrimos gradativamente quem é Charlie de verdade, ao mesmo tempo em que, antes disso, também já fomos envolvidos por sua delicadeza e generosidade. Para quem não conhece o caso em detalhes — em linhas gerais, Cullen foi condenado pela morte de 29 pacientes, enquanto especialistas acreditam que esse número possa chegar a 400, tornando-o assassino em série mais prolífero dos Estados Unidos —, trata-se de uma decisão que funciona ainda mais, visto que O Enfermeiro da Noite deseja mostrar como pessoas do perfil de Cullen circulam entre nós, sem que pareçam estranhos ou remotamente suspeitos, tese bem reproduzida pela performance de Eddie Redmayne. Inexiste, portanto, toda a cartilha de dramatização da vida íntima ou pregressa do serial killer. Não é algo que funciona com todas as plateias, mas que confere ao filme de Tobias Lindholm uma atmosfera diferenciada em meio à frenética onda de true crimes dramatizados.

MAIS QUE AMIGOS (Bros, 2022, de Nicholas Stoller): Independentemente de, na matemática fria de uma análise, ser uma comédia romântica com desenvolvimento similar ao de incontáveis outras, Mais Que Amigos ganha novos contornos por simplesmente colocar dois homens no centro de uma história leve, afetiva e divertida. Existe uma importante questão de representatividade, mas também de um alcance raro, afinal, é talvez até pioneiro o fato de uma comédia romântica gay chegar a um circuito comercial com tanta abrangência. Aos que, assim como eu, descobriram sua sexualidade sem a oportunidade de vê-la na tela com humor e naturalidade, Mais Que Amigos pode bem ser um verdadeiro presente. O filme toca em questões fundamentais para o público gay, como a insegurança de ser quem se é e o quanto isso ecoa por toda uma vida, especialmente nas relações afetivas e na forma de encarar vários problemas inerentes à vida adulta. O roteiro assinado pelo diretor Nicholas Stoller e pelo protagonista Billy Eichner demonstra habilidade ao percorrer os rumos já conhecidos do formato tradicional de uma comédia romântica e ao personalizá-la para seu público-alvo. É fácil torcer por dois personagens que, distintos em tudo o que se pode imaginar, encontram, somente depois de adultos, as vivências e as descobertas que heterossexuais têm à disposição desde muito cedo. Minha única observação menos elogiosa ao resultado fica com a escalação de Billy Eichner, que acaba sendo apenas… Billy Eichner. Muito provavelmente, seu personagem teria outras camadas a ganhar caso interpretado um ator mais imerso em um personagem e menos em uma persona já tão conhecida.

James Gray volta à infância com “Armageddon Time”, seu filme mais singelo até aqui

Do you think that’s smart?

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Direção: James Gray

Roteiro: James Gray

Elenco: Banks Repeta, Anne Hathaway, Jeremy Strong, Anthony Hopkins, Jaylin Webb, Andrew Polk, Ryan Sell, Tovah Feldshuh, Marcia Haufrecht, Teddy Coluca, Jessica Chastain, Richard Bekins, Dane West, John Diehl, Domenick Lombardozzi

EUA/Brasil, 2022, Drama, 114 minutos

Sinopse: Na Nova York dos anos 1980, antes de Ronald Reagan ser eleito presidente dos Estados Unidos, uma família vive no Queens e precisa passar por um processo profundamente pessoal. Traçando uma trajetória de amadurecimento, o longa aborda a força da família e a busca que atravessa gerações pelo “sonho americano”. (Adoro Cinema)

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Não é nenhuma novidade a meditação de cineastas norte-americanos sobre as suas infâncias em formato de filme autobiográfico. O próprio Steven Spielberg, após décadas de carreira, lançará em breve The Fabelmans, mostrando que esse é um tipo de projeto atemporal, sem hora ou momento exato para ser tirado do papel. Outro nome que se junta à estatística é o de James Gray, que chega agora aos cinemas com o seu Armageddon Time, antes visto na competição oficial do Festival de Cannes deste ano, e que tem como pano de fundo a Nova York dos anos 1980 e a clássica busca pelo chamado “sonho americano”.

James Gray sempre foi um diretor fora da curva, e é exatamente por isso que podemos dizer que Armageddon Time é o seu trabalho mais singelo e linear até aqui. Se levarmos em consideração filmes como Amantes, Era Uma Vez em Nova York e o próprio Ad Astra: Rumo às Estrelas, seu projeto anterior, falta nessa proclamada autobiografia algo mais pungente, ainda que o resultado tenha seu charme em função da melancolia e da nostalgia com que ele revisita as suas memórias, amparado por um ótimo elenco, que traz de Jeremy Strong a Anthony Hopkins, passando por Anne Hathaway e uma ligeira participação de Jessica Chastain.

Um dos componentes centrais da retrospectiva pessoal do cineasta é a relação estabelecida por Paul Graff (Banks Repetta, muito seguro ao não se estremecer frente a tantos atores bons) com a família, principalmente com o seu avô Aaron (Anthony Hopkins), a única pessoa que o jovem parece dar ouvidos de verdade. Entretanto, Gray dá atenção especial à jornada do garoto no ambiente escolar, onde conhecer o colega Johnny (Jaylin Webb), jovem negro que, a partir de um convívio muito próximo, revelará a Paul, entre outras coisas, os significados das palavras injustiça e privilégio.

Como esperado de um diretor como James Gray, a abordagem racial não segue cartilhas, e o fato de ser vista a partir da perspectiva de uma criança dá interessantes contornos aos conflitos. Para Paul, menino branco, judeu e que tem como plano B a possibilidade de ingressar em uma escola particular caso não se adeque ao ensino público, toda e qualquer desventura com o novo amigo não chega a oferecer perigo real devido a sua cor e posição social, algo que ele logo ressignifica quando compreende que Johnny não recebe o mesmo tratamento apenas por ser quem é. Se Paul fará algo ou não com isso é outra história e envolve descobertas de vida que acabarão por moldar o caráter do garoto.

Para olhares menos atentos a observações como essas, Armageddon Time pode parecer um filme qualquer de traços autobiográficos. O tom ameno e contido talvez contribua para essa conclusão, mesmo que o elenco estrelado eleve a encenação das dinâmicas familiares, com destaque para a delicada relação entre Paul e seu avô, interpretado com a sabedoria tão característica de um ator do calibre de Anthony Hopkins. E a verdade é que realmente estamos diante de um longa mais brando, como se Gray estivesse preocupado em zelar pelas suas lembranças, sem a vontade de revisitá-las com outro olhar apenas para fazer um espetáculo cinematográfico ou algo parecido.

Aliás, esperar isso do diretor é quase uma heresia, pois ele nunca foi afeito ao espetáculo pelo espetáculo. Seu olhar para os relacionamentos amorosos em Amantes, por exemplo, não poderia ser mais interiorizado e atmosférico, assim como a técnica foi para fins além da grandiosidade em Ad Astra, ficção-científica de orçamento considerável ambientado em diferentes pontos do sistema solar. Ou seja, a pegada não seria diferente em sua obra mais pessoal, constatação que não chega a compensar 100% o fato de que, mesmo para o padrão James Gray, Armageddon Time tinha potencial, sim, para alçar voos maiores.

“Triângulo da Tristeza” é uma piada divertida e eficiente, ainda que no limite da repetição

In den wolken!

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Direção: Ruben Östlund

Elenco: Harris Dickinson, Charlbi Dean, Dolly De Leon, Vicki Berlin, Woody Harrelson, Zlatko Buric, Alicia Eriksson, Carolina Gynning, Amanda Walker, Sunnyi Melles, Iris Berben, Oliver Ford Davies, Ralph Schicha, Arvin Kananian, Henrik Dorsin

Triangle of Sadness, Suécia/França/Reino Unido/Alemanha/Turquia/Grécia, 2022, Comédia, 147 minutos

Sinopse: Modelos e influenciadores do mundo da moda, Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean) são convidados para um cruzeiro a bordo de um luxuoso iate na companhia de outros tripulantes multimilionários. Tudo termina de forma catastrófica quando eles ficam encalhados em uma ilha deserta, onde a hierarquia de classes sofre uma súbita reviravolta.

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Em sua cena mais catártica, Triângulo da Tristeza coloca dois personagens embriagados e de ideologias opostas para literalmente recitarem piadas sobre comunismo e capitalismo. Gosto de pensar que ela representa muito bem o novo filme do sueco Ruben Östlund, já que, pela primeira vez, o diretor parece ter decidido abandonar o verniz de filme sério ou de arte que sempre aplicou em seus projetos. Os questionamentos em torno da masculinidade em Força Maior e a acidez ao tratar o mundo da arte em The Square eram interessantes, mas bem menos originais ou profundos do que suas celebrações mundiais sugeriram. Já em Triângulo da Tristeza, não há pose ou meias palavras, e isso é muito saudável, pois se alinha com as verdadeiras qualidades e fragilidades de um diretor que agora revela ter até uma vocação mainstream.

Afirmo aqui, sem muito medo de errar, que Triângulo da Tristeza não mudará a opinião de ninguém sobre Östlund, para o bem e para o mal. É bem provável, inclusive, que esse filme potencialize os (des)afetos de cada um em torno do diretor. No caso do Festival de Cannes, é puro amor: em apenas cinco anos, foram duas Palmas de Ouro para Östlund, feito alcançado apenas por um seleto grupo que inclui nomes como Francis Ford Coppola, Ken Loach, Michael Haneke e os irmãos Dardenne. Fico em um meio terno, sem ir ao céu ou ao inferno. O que sempre acho interessante é o alvoroço causado por Östlund, pois as discórdias acabam sendo o combustível de seu nome e de suas obras. Digo que as opiniões sobre ele seguirão as mesmas porque Triângulo da Tristeza chuta o balde ao abraçar um caldeirão de temas efervescentes: diferença de classes, mídias sociais, o mito da beleza, o status do dinheiro… Não há economia na escolha de assuntos.

Além disso, Triângulo da Tristeza tem zero sutileza, encenando de grandes bebedeiras a vômitos incontroláveis, e já começa bastante explicativo, contando ao espectador que o tal triângulo da tristeza se refere à parte do rosto entre as sobrancelhas que os modelos contraem para parecerem sérios ou sensuais em ensaios fotográficos e desfiles. Tudo é ipsis literis, e essa falta de minúcias costuma ser vista como demérito. Mas, afinal, por que o escracho haveria de ser problema para um filme quando vivemos nesse mundo em que governantes parecem saídos de esquetes cômicas e pautas ressurgem como ainda mais força quando pensávamos que elas haviam sido superadas? Só é possível tratar os horrores dos nossos tempos com discrição? O ridículo não seria o registro dessa vida que vivemos e vemos todos os dias na TV?

Nesse sentido, o longa muito se assemelha a filmes como Não Olhe Para Cima e Medida Provisória porque considera a caricatura da vida real um elemento mais do que suficiente para a ficção. Não à toa, estamos falando de filmes que, em suas respectivas dimensões, foram sucesso de público. É por isso que afirmo a vocação mainstream do novo longa de Östlund: ela não se dá somente pelo tom cômico, mas também por essa nossa ampla familiaridade com os ricos patéticos e cafonas da trama, figuras universais em noticiários diários. De fabricantes de granadas a oligarcas russos, o iate de luxo de Triângulo da Tristeza é um amontoado de pessoas que, na situação de naufrágio anunciada já na sinopse, acabam não servindo para nada. Ao tratá-los com deboche, o filme garante que todos se tornem detestavelmente interessantes de acompanhar, efeito semelhante ao que Mike White alcançou no excelente seriado The White Lotus.

Entre o desprezo e o ridículo, Östlund oferece momentos catárticos, como a já famosa cena de jantar que estampa cartazes alternativos do filme. Eles abrem portas para que Triângulo da Tristeza, ao contrário de Força Maior e The Square, se comunique com mais plateias e principalmente nivele as vocações do diretor com aquilo que de fato ele entrega, sem disfarces. No que me toca, acho que o sueco convida o espectador para uma experiência com a qual é difícil rivalizar se houver sintonia com a atmosfera. Até mesmo os momentos escatológicos e as brigas fúteis de gente rica funcionam aqui, muito em função do ótimo elenco, com destaque para a faxineira vivida por Dolly De Leon e para a dinâmica entre Harris Dickinson e Charlbi Dean — ela, por sinal, em seu último trabalho devido a uma morte prematura aos 32 anos de idade.

Acontece que Triângulo da Tristeza não ressoa por muito tempo após a sessão, o que não costuma ser bom sinal. Apesar dos absurdos tão familiares e da assertividade de Östlund em não tentar dar um passo maior do que a perna, o longa carece de certa potência. E tenho lá alguns palpites para as razões desse desencontro. Um deles é a tendência do roteiro em às vezes se importar mais com os temas do que com os personagens, reduzindo coadjuvantes a piadas pontuais, por exemplo. O outro talvez seja mais importante. Com a velocidade que as coisas se movem nos dias de hoje, tendências e ideias têm prazos mais curtos de validade. O que é descoberta logo vira tendência – e, por fim, uma fórmula que precisa ser repensada, recriada, reimaginada. Triângulo da Tristeza não chega a soar como piada velha, mas está nessa linha tênue entre surfar na onda do momento e se tornar uma piada já contada repetidas vezes.

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