Cinema e Argumento

Rapidamente: “Cadê Você, Bernadette?”, “Coringa”, “Entre Facas e Segredos” e “O Irlandês”

Quando um grande elenco faz a diferença: eficiente por si só, Entre Facas e Segredos só ganha pontos com os excelentes atores reunidos em cena.

CADÊ VOCÊ, BERNADETTE? (Where’d You Go, Bernadette, 2019, de Richard Linklater): Desde que foi amplamente premiado com Boyhood: Da Infância à Juventude, o diretor Richard Linklater tem apresentado projetos medianos e que pouco endossam o seu talento como o delicado contador de histórias que já nos entregou títulos como a trilogia Antes do Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e Antes da Meia-Noite. Pois Cadê Você, Bernadette? é mais um exemplo da fase pouco inspirada que o diretor vem vivendo. Nem mesmo Cate Blanchett, limitada a interpretar uma versão genérica de sua marcante personagem em Blue Jasmine, consegue tirar o filme do marasmo. Tomando como base o livro homônimo de Maria Semple, Linklater conta a história de uma arquiteta que decide sumir para recuperar algum tipo de juízo ou esperança, abandonando um ideal de vida que não quer mais seguir. A premissa poderia render momentos interessantes, especialmente para Blanchett, mas Cadê Você, Bernadette? é banalíssimo e desperdiça todas as transformações internas da protagonista em uma viagem entediante que, desenvolvida com diálogos clichês e rasteiramente sentimentais, traz as conclusões mais manjadas possíveis para os conflitos de uma personagem que o filme insiste em desperdiçar.

CORINGA (Joker, 2019, de Todd Phillips): Maior especialista em neurocriminologia do mundo, o britânico Adrian Raine disse, em entrevista à revista Vanity Fair, que Coringa faz “uma representação surpreendentemente precisa do tipo de contexto e circunstâncias sociais que, quando combinadas, criam um assassino”. Entre os estudos fundamentados de Raine e a percepção da legião de críticos e espectadores que resolveram problematizar o filme por ele supostamente glamourizar a violência de modo irresponsável, faço coro à opinião de Raine, inclusive porque não acho que compreender a construção de uma mente criminosa seja sinônimo de celebrá-la. À parte as polêmicas que desviam a atenção da excelente experiência que é Coringa, não se revela nada justo, por exemplo, diminuir toda a força da interpretação de Joaquin Phoenix, que se distancia das celebradas personificações de Jack Nicholson e Heath Ledger parar compôr uma figura crível, cujas vivências resumem muito bem a era nada empática que vivemos. Brutal e nada apelativo, o longa é uma intensa imersão no mundo dos desassistidos, atmosfera também reverberada por uma excepcional parte técnica, com destaque para a fotografia de Lawrence Sher e para a trilha sonora de Hildur Guðnadóttir. Isso sem falar no fato de Coringa jamais se enquadra nas caixinhas de filmes baseados em HQ’s. Há aqui uma personalidade própria que deveria ser exercitada com mais frequência pelos blockbusters hollywoodianos.

ENTRE FACAS E SEGREDOS (Knives Out, 2019, de Rian Johnson): Nem mesmo a refilmagem de O Assassinato no Expresso do Oriente, que adaptou à risca o clássico homônimo de Agatha Christie em 2017, conseguiu chegar perto de capturar o senso de suspense e entretenimento da escritora como Entre Facas e Segredos, que, a partir de um roteiro inteiramente original do diretor Rian Johnson (Looper: Assassinos do Futuro, Star Wars: Os Últimos Jedi e Ozymandias, o melhor episódio de todas as cinco temporadas do seriado Breaking Bad), administrou com pique e envolvimento o tradicional mistério do “quem matou?”. A grata surpresa é que Entre Facas e Segredos avança na fórmula e, a partir de importantes revelações, desdobra uma série de comentários sociais e novas dinâmicas entre os personagens. Também faz toda a diferença o número de talentos reunidos no elenco: de Christopher Plummer a Michael Shannon, passando por Toni Collette, Jamie Lee Curtis e a revelação Ana de Armas, o filme se torna ainda mais prazeroso por conta dos atores, que estão divertidíssimos como um clã familiar de tipos muito específicos. A leitura social do longa não é tão robusta quanto a de outros títulos marcantes deste ano (ParasitaBacurau), o que não tira o brilho de uma proposta que deve ser sempre valorizada: a de que é saudável ver qualquer filme, seja ele de “mero” entretenimento ou não, convocando o espectador a refletir sobre os problemas e as contradições do nosso mundo.

O IRLANDÊS (The Irishman, 2019, de Martin Scorsese): Com o domínio e o talento de sempre, Martin Scorsese tem em O Irlandês aquele que é possivelmente o seu trabalho mais pessoal. Agora interessado no peso, nos arrependimentos e nas frustrações trazidas por uma vida errática e clandestina, Scorsese olha para a máfia com pesar, e para isso conta com amigos de longa data, como Robert De Niro e Joe Pesci, além de novas parcerias que sabe-se lá como nunca aconteceram antes (Al Pacino). A tão comentada duração do filme (189 minutos) não chega a ser um problema, mas sim o fato do roteiro escrito por Steven Zaillian, com base no livro “I Heard You Paint Houses”, de Charles Brandt, ser menos ambicioso do que a direção de Scorsese. As próprias interpretações, em muitos casos, são mais interessantes do que a história, com Joe Pesci e, especialmente, Al Pacino roubando a cena. De Niro tem uma cena grandiosa em detalhes ao final do filme (aquela em que, após um acontecimento fatídico, atende uma ligação ao chegar em casa), mas, no geral, não se equipara aos colegas de cena, já que é o mais prejudicado pelo uso de efeitos visuais, maquiagem e lentes de contato. Scorsese filma, claro, com imensa classe, o que leva seus fãs ao delírio. Já para outros espectadores que, assim como eu, não se envolvem tanto com o cinema do diretor, O Irlandês talvez seja menos imponente do que suas circunstâncias sugerem.

“O Juízo”, um suspense genérico e deslocado na recente safra do cinema brasileiro

Você já se perguntou por que nada em sua vida dá certo?

Direção: Andrucha Waddington

Roteiro: Fernanda Torres

Elenco: Felipe Camargo, Joaquim Torres Waddington, Carol Castro, Criolo, Kênia Bárbara, Fernando Eiras, Fernanda Montenegro, Lima Duarte

Brasil, 2019, Suspense, 90 minutos

Sinopse: Augusto Menezes (Felipe Camargo) muda-se com a mulher Tereza (Carol Castro) e o filho, Marinho (Joaquim Torres Waddington), para uma fazenda abandonada, herdada do avô, na esperança de colocar a vida nos trilhos. A propriedade, no entanto, carrega o carma da traição ao escravo Couraça (Criolo), que busca ao longo dos séculos a vingança contra a família de Augusto.

Todo contexto envolvendo a idealização de um filme pode ser fator crucial para definir a reação do público com o que é colocado na tela. Afinal, nada acontece no vácuo, nem mesmo o cinema. Podemos analisar O Juízo a partir dessa premissa: estreando nos cinemas em uma era onde o audiovisual brasileiro viu seus chamados filmes de gênero ressurgirem de maneira empoderada, o longa dirigido por Andrucha Waddington empalidece, por exemplo, perante As Boas Maneiras, O Animal Cordial e Mormaço, três títulos recentes que discutiram cicatrizes sociais de nosso país com identidade, bravura e inventividade.

Não tem a ver necessariamente com o nível de excelência alcançado por cada obra, mas sim com o contexto, como já mencionado. Em meio a essa nova corrente de longas de suspense/terror, O Juízo em nada se parece com os seus pares. Claro que isso poderia ser interpretado como um elogio caso o resultado não se assemelhasse, na verdade, com produções de 20 ou 30 anos atrás que não envelheceram bem e adotam fórmulas bastante ultrapassadas, sem tratar clichês em tom de homenagem ou com certa brincadeira.

As pitadas de frustração começam na premissa que ainda insiste em colocar uma família afundada em conflitos no meio do mato, isolada de toda a sociedade e de qualquer meio de comunicação. Lá, coisas estranhas começam a acontecer, espíritos surgem, barulhos passam a vir da floresta e os personagens, inevitavelmente, serão afetados por tudo isso, testemunhando, aos poucos, o desdobramento de um relato envolvendo conturbados episódios de seus antepassados. Tudo da forma como você supõe, entregue do jeitinho convencional que você já viu muitas vezes.

Era de se esperar astúcia maior de O Juízo porque o roteiro é escrito por Fernanda Torres, que, além de ser uma atriz de mão cheia, tornou-se uma autora genial nos últimos anos (seus dois romances, Fim A Glória e Seu Cortejo de Horrores, são obras-primas cercadas de fluidez, criatividade e esperteza) e já havia co-assinado o roteiro de Redentor, uma produção que escapava de ideias formulaicas. Uma teoria para justificar tamanha insipidez talvez seja a de que O Juízo estivesse engavetado há anos, sendo realizado somente agora com certo atraso, sem acompanhar a atual linguagem do cinema brasileiro.

Realizado em família, o filme tem o privilégio de contar com Fernanda Montenegro em um papel coadjuvante. Ela faz o que pode com uma personagem que cai na vala comum: uma médium que, em determinado momento, chega a dizer para um médico que ele precisa acreditar no poder da fé para tratar traumas hereditários, fazendo uma pequena menção ao clássico conflito entre ciência e fé. É um mero detalhe, mas também um elemento que exemplifica bem as abordagens tão antigas quanto o mundo que moldam a trama.

Marido de Fernanda Torres, o cineasta Andrucha Waddington trouxe ainda o filho do casal para integrar o trio de protagonistas. Joaquim Torres Waddington, assim como seus companheiros de tela Felipe Camargo e Carol Castro, navegam no suspense de O Juízo com visível envolvimento, mesmo que a direção de Andrucha não ajude no tema de casa. Tudo leva a crer, no entanto, que o problema esteja no casamento com o texto da vez, pois Andrucha já havia feito um ótimo trabalho com toques de suspense em Gêmeas, longa realizado em 1999 com base em uma obra do mestre Nelson Rodrigues.

Em breves 90 minutos, O Juízo mergulha em traumas transmitidos de geração para geração, fé, (in)sanidade, escravidão e incomunicabilidade, ancorado em um ajuste de contas do fantasma Couraça (Criolo) com a linhagem familiar que um dia lhe causou uma grande perda. A espinha dorsal do suspense, enfim, falha igualmente em surtir efeito. Ao não se apresentar como reflexão social ou como um relato lúcido o bastante para explorar as vertentes do gênero, o conflito central se esvai e, ocasionalmente, sequer desperta interesse. E o descaso, como sempre, é um dos piores sentimentos que qualquer filme pode despertar na plateia.

“Parasita”: fascinante mistura de gêneros ilustra questões sociais marcantes dos nossos tempos

Direção: Bong Joon-ho

Roteiro: Bong Joon-ho e Han Jin Won

Elenco: Kang-ho Song, Sun-kyun Lee, Yeo-jeong Jo, Woo-sik Choi, Hye-jin Jang, So-dam Park, Ji-so Jung, Ji-hye Lee, JaeWook Park, Myeong-hoon Park, Seo-joon Park, Keun-rok Park

Gisaengchung, Coréia do Sul, 2019, Drama/Comédia/Suspense, 132 minutos

Sinopse: Toda a família de Ki-taek está desempregada, vivendo num porão sujo e apertado. Uma obra do acaso faz com que o filho adolescente da família comece a dar aulas de inglês à garota de uma família rica. Fascinados com a vida luxuosa destas pessoas, pai, mãe, filho e filha bolam um plano para se infiltrarem também na família burguesa, um a um. No entanto, os segredos e mentiras necessários à ascensão social custarão caro a todos. (Adoro Cinema)

A possibilidade de viajar o mundo é um dos maiores fascínios proporcionados pelos filmes que assistimos. Navegando por obras de diversas nacionalidades, podemos desbravar novas culturas, conhecer diferentes linguagens e descobrir a maneira como cada lugar registra, através do cinema, a sua própria existência. Tão maravilhoso quanto isso é perceber como, uma vez que outra, apesar dos idiomas, dos quilômetros e das vivências que nos separam, compartilhamos muitas coisas, até mesmo angústias e conflitos. Nesse sentido, poucas ferramentas conseguem ser tão poderosas quanto a sétima arte, algo que é possível constatar em uma involuntária quadrilogia de filmes recentes que, em língua não-inglesa, evidencia problemas equivalentes em diversos cantos do mundo, como as brutais diferenças entre classes, a reivindicação por algum tipo de humanidade e as dores dos desassistidos pela vida, pela sociedade e pelos governantes.

Vem do Brasil, aliás, um dos exemplares dessa quadrilogia tão representativa: Bacurau, que levou o Prêmio do Júri do Festival de Cannes e versa sobre uma cidade nordestina diante da ameaça de sumir do mapa. Antes disso, o Japão e o Líbano nos entregaram, respectivamente, Assunto de Família e Cafarnaum, dois longas que, entre a delicadeza e a visceralidade, lançaram luz sobre a duríssima jornada de pessoas sem perspectivas de vida. E, agora, chegamos ao impactante Parasita, da Coreia do Sul, que ganhou a Palma de Ouro do último Festival de Cannes em uma escolha unânime do júri presidido pelo cineasta Alejandro González-Iñárritu. Acumulando elogios por onde passa, tornando-se, inclusive, um grande sucesso de público nos Estados Unidos, onde obras de língua não-inglesa raramente performam com certa popularidade, Parasita ostenta um consenso justíssimo ao observar as disparidades no convívio entre famílias de classes distintas, saltando de um gênero a outro com maestria e elevando a já reconhecida carreira de Bong Joon-Ho (Mother, O Hospedeiro, Okja, Expresso do Amanhã) a um novo (e emblemático) patamar de excelência.

São claras e inteligentes as fronteiras de gênero entrelaçadas por Parasita. Desconhecendo a trama, é possível supor que, a partir do primeiro terço, trata-se de uma curiosa e instigante comédia. Passada a apresentação dos personagens e a conclusão do conflito inicial, Bong Joon-ho, que assina o roteiro ao lado de Han Jin Won, leva o espectador para um eufórico suspense de becos aparentemente sem saída. Por fim, o ciclo se completa com um peso dramático que ressignifica a comédia e o suspense trabalhados até ali. O caldeirão de gêneros apresentado em Parasita funciona porque Bong Joon-ho, claro, é um expert nessa mistura (para quem ainda não conferiu qualquer outro filme assinado por ele, vale a busca para constatar tal talento), e o diretor se esbalda em cada abordagem: a comédia é esperta e apropriada para a fase introdutória do filme, o suspense não é nada óbvio e consegue promover uma grande virada na trama, e o drama amarra todas as pontas com um misto de delicadeza e profundidade. Tudo sem fazer com que Parasita pareça ter vários filmes dentro de um.

A matéria-prima para qualquer um dos gêneros trabalhados por Bon Joon-ho é, sem dúvida, a contemporânea sequência de reflexões sociais que atravessa o filme do início ao fim. Interpretando a família pobre como animais que precisam se esconder ou ser exterminados (a casa sendo dedetizada logo no início, a família embaixo da mesa da sala, a forma como a mãe fala que todos devem se esconder como baratas quando a família rica chegar), Parasita ilustra contrastes sociais com um roteiro impecável. Toda ação tem uma consequência, cada detalhe ganha um significado posterior e até mesmo algumas das revelações da trama são plantadas muito discretamente entre um diálogo e outro, sem que o espectador perceba. E não é pouca coisa, uma vez que temos quase uma dezena de personagens interagindo em um mesmo ambiente, o que gera um considerável número de dinâmicas diferentes.

A imensa casa onde a ação do longa se desdobra é também um personagem à parte. Tanto o casarão pode representar a ascensão financeira e social que uma família pobre tanto almeja quanto pode ser desprovida de qualquer idealização material para se tornar o secreto reduto de uma dolorosa distância familiar. Bong Joon-ho distribui acontecimentos e personagens por uma quantidade infinita quantidade de cômodos com um elegante trabalho de mise-en-scène que define praticamente toda a ação do filme, assim como o comportamento e as decisões tomadas pelos personagens (vale também registrar, claro, o excepcional trabalho de elenco, onde há unidade e destaques pontuais). Com cada elemento orquestrado no devido esmero, Parasita agrega as mais distintas plateias, tornando-se grandioso no detalhe, e hiper relevante em tudo aquilo que, assim como tantos outros filmes recentes, acaba registrando sobre cicatrizes sociais e universais.

“A Vida Invisível”: refinado melodrama de Karim Aïnouz traz uma perspectiva íntima e feminina para a labiríntica jornada de duas irmãs

Você não sabe a falta que você me faz…

Direção: Karim Aïnouz

Roteiro: Inés Bortagaray, Karim Aïnouz e Murilo Hauser, baseado no romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha

Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier, Maria Manoella, António Fonseca, Nikolas Antunes, Fernanda Montenegro, Gillray Coutinho, Cristina Pereira, Bárbara Santos

Brasil/Alemanha, 2019, Drama, 139 minutos

Sinopse: Rio de Janeiro, década de 1940. Eurídice (Carol Duarte) é uma jovem talentosa, mas bastante introvertida. Guida (Julia Stockler) é sua irmã mais velha, e o oposto de seu temperamento em relação ao convívio social. Ambas vivem em um rígido regime patriarcal, o que faz com que trilhem caminhos distintos: Guida decide fugir de casa com o namorado, enquanto Eurídice se esforça para se tornar uma musicista, ao mesmo tempo em que precisa lidar com as responsabilidades da vida adulta e um casamento sem amor com Antenor (Gregório Duvivier). (Adoro Cinema)

Em vários materiais promocionais, A Vida Invisível se define como “um melodrama tropical de Karim Aïnouz”. É sensacional que a obra se (re)conheça de tal maneira e que já deixe muito claro para o espectador qual a tônica trabalhada na tela, pois os conflitos são desfiados a partir de situações muito clássicas, quase novelescas, o que pode ser interpretado de maneira pejorativa porque quem prima pela criatividade e não vê beleza na simplicidade. Criar um melodrama consistente e de elementos refinados é um trabalho dificílimo que o cineasta Karim Aïnouz, munido de toda a experiência acumulada em projetos como Madame Satã, O Céu de Suely e Praia do Futuro, domina com destreza. Através dessa perspectiva, A Vida Invisível se apresenta como uma obra delicada e universal que, marcada pela passagem do tempo, conduz o espectador a um labirinto de desencontros entre duas irmãs no Rio de Janeiro dos anos 1940.

Grande vencedor da mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes em 2019, o longa tem como núcleo dramático a relação entre personagens de personalidades muito distintas. Eurídice (Carol Duarte) é uma aspirante a pianista que, retraída, segue as regras da família e das tradições da época, tentando encontrar algum propósito de vida em meio a tantas repressões. Já Guida (Julia Stockler), a irmã mais velha, busca a autorrealização fazendo o que quer, mesmo que isso lhe custe a relação com a família e especialmente com o pai, um padeiro português que comanda as mulheres de sua vida (incluindo a esposa) com as doses de machismo e autoritarismo tão comuns à época. De tudo isso, A Vida Invisível poderia extrair uma linguagem televisiva e previsível, mas o roteiro escrito por Inés Bortagaray, Karim Aïnouz e Murilo Hauser, com base no romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, deixa de lado a afetação para buscar a sutileza. 

Um exemplo desse acerto é o emocionante ponto de equilíbrio que o filme encontra ao lidar com a questão da passagem do tempo. Narrando paralelamente a vida das duas irmãs, a história envolve o espectador com reflexões inerentes a todos nós, como as relações que não remendamos, as palavras que não dizemos, as oportunidades que nos são tiradas, os erros que não consertamos e como, inevitavelmente, o tempo passa e acaba nos cobrando tudo isso. Karim, que sempre foi um diretor de relatos difíceis, talvez pela primeira vez se veja na posição de encontrar o belo em personagens e situações mais “comuns”. E o faz inspirado pela delicadeza: com duas excelentes protagonistas em cena e um Rio de Janeiro que está longe de flertar com sua versão cartão-postal, o diretor promove uma viagem muito íntima, feminina e familiar rumo a sentimentos e circunstâncias que não são extraordinários, mas que são palpáveis a todo ser humano.

A odisseia intimista de A Vida Invisível ganha brilho extra ao abordar tão bem o universo feminino e ao questionar as condições da mulher na sociedade. Tanto Eurídice quanto Guida buscam o domínio de seus próprios destinos ou pelo menos de alguma parcela daquilo que pode trazer alguma felicidade, mesmo enfrentando figuras masculinas que, no filme, são propositalmente caricatas e a comédia é sempre uma excelente ferramenta para tecer críticas ou ridicularizar determinadas leituras, como acontece com o patético marido de Eurídice, vivido por Gregório Duvivier. Como um retrato específico, mas também muito amplo das angústias femininas, A Vida Invisível é um refinado melodrama que faz bonito com as mais simples ferramentas do cinema, e ainda nos brinda com uma comovente participação de Fernanda Montenegro, que, como sempre, preenche a tela apenas com um gesto ou olhar. Não há como duvidar: apesar das adversidades, a nossa produção audiovisual tem realmente vivido tempos preciosos.

Rapidamente: “Ad Astra”, “El Camino”, “Era Uma Vez em… Hollywood” e “A Lavanderia”

Meryl Streep em A Lavanderia: novo filme de Steven Soderbergh replica o espírito e as fórmulas de A Grande Aposta e Vice, títulos recentes assinados pelo diretor Adam McKay.

AD ASTRA: RUMO ÀS ESTRELAS (Ad Astra, 2019, de James Gray): É recomendável dar uma pesquisada na filmografia de James Gray (Os Donos da NoiteAmantesEra Uma Vez em Nova York) antes de embarcar em Ad Astra: Rumo às Estrelas. A partir dela, já é possível concluir que essa nova ficção científica estrelada por Brad Pitt não seguirá formatos óbvios e muito menos uma cartilha comercial do gênero. E é isso mesmo o que acontece: contemplativo, Ad Astra é uma experiência sensorial mais preocupada na viagem interior de um homem designado a ir atrás do próprio pai em outro planeta do que nas curiosidades ou nas possíveis adrenalinas envolvendo uma saga no espaço sideral. Munido da belíssima trilha de Max Richter e da excelente fotografia de Hoyte Van Hoytema, James Gray conduz o filme em baixa fervura e com com um toque íntimo que, especialmente no terço final da história, confere uma delicada potência emotiva à jornada do protagonista. Sendo assim, por mais que tenha uma interrogação central, o roteiro de Ad Astra não tem como objetivo desencadear um suspense ou explorar os mistérios do universo. Sua vocação é investigar os meandros de uma relação paterna mal resolvida e lacunar, algo definitivamente alinhado à identidade de Gray como realizador. Não é o tipo de filme que conquistará multidões, mas, como um ponto fora da curva em um gênero amplamente explorado nos últimos anos, Ad Astra alcança o sempre bem-vindo efeito de reverberar além da sessão.

EL CAMINO: A BREAKING BAD MOVIE (idem, 2019, de Vince Gilligan): Há de se compreender a imensa vontade do público em querer voltar ao universo da premiada série Breaking Bad. Contudo, El Camino, o filme dirigido por Vince Gilligan que avança um tantinho na história do programa, jamais se justifica — e pior: sequer está entre os momentos inspirados do seriado, que teve seu último episódio exibido em setembro de 2013. Em linhas gerais, o filme é apenas a encenação de uma nova via crucis para Jesse Pinkman, o trágico personagem vivido sempre com muita garra por Aaron Paul. Vá lá, muitos reencontros são bem-vindos, e há uma infinidade de referências nostálgicas a elementos e outros personagens da série. Entretanto, como extensão ou complemento ao universo de Breaking Bad, El Camino é uma decepção sem fim: além de ter um roteiro repleto de furos (é inadmissível que Jesse, perseguido nacionalmente pela polícia, hospede-se na casa de amigos traficantes já investigados um punhado de vezes sem que ninguém o procure lá), El Camino não tem clima ou muito menos menos uma trama que acrescente camadas desconhecidas de Jesse Pinkman. Nem como entretenimento funciona: repetitivo, o longa é uma sucessão de cenas de tensão que seguem a mesmíssima fórmula, apontando para uma falta de inspiração e cuidado que jamais poderíamos prever em um roteiro de Vince Gilligan. Apesar da nova investida, o desfecho que seguirá forte na memória é, sem dúvida alguma, o que vimos lá em 2013 no episódio Felina, e não El Camino, que tem tudo para não resistir ao tempo.

ERA UMA VEZ EM… HOLLYWOOD (Once Upon a Time… in Hollywood, 2019, de Quentin Tarantino): Mais um trabalho de excessos assinado por Quentin Tarantino, Era Uma Vez em… Hollywood reforça a falta de objetividade que tem acometido o diretor nos últimos anos. Assim como em Os Oito Odiados, ele leva cerca de três horas para contar uma história que poderia durar muito menos. É clara a dedicação em criar uma atmosfera mais calorosa e nostálgica, mas a marcha é tão lenta que não consegue levar o espectador para muito além das homenagens afetuosas ao cinema que o diretor presta com tanta propriedade aqui (e que podem tanto deliciar os apaixonados por cinema quanto entediar as plateias mais populares que acompanham a filmografia de Tarantino). No sentido de não fazer muita coisa com o imenso tempo que toma do espectador, a mais prejudicada é Margot Robbie, resumida a irradiar tela com sua beleza bem fotografada (ela não dispõe de texto suficiente ou outras munições para expandir sua personagem). Entre ecos de outros filmes de cineasta (a reimaginação de acontecimentos reais como em Bastardos Inglórios) e o tradicional clímax sanguinolento, macarrônico e de tom elevado, Era Uma Vez em… Hollywood tem em Leonardo DiCaprio e Brad Pitt as suas melhores qualidades. Inspirados e assertivos nas facetas de papéis muito diferentes, eles são o sopro de energia em um longa maçante, excessivo e por vezes interminável. A conclusão segue a mesma: um pouco de objetividade só faria bem a esse icônico cineasta que hoje está viciado em inchaços narrativos.

A LAVANDERIA (The Laundromat, 2019, de Steven Soderbergh): É inevitável tecer comparações entre A Lavanderia e o estilo que o diretor Adam McKay passou a adotar nos últimos anos em títulos como A Grande ApostaVice. Novamente, temos um tema super complicado (para não dizer desinteressante) tratado com um tom cômico, crítico e com certas opções narrativas cujo objetivo é facilitar o entendimento da trama para o espectador mais leigo. O prolífero Steven Soderbergh, que já chegou a vencer um Oscar de melhor direção por Traffic, aborda, dessa vez, os desdobramentos do Panama Papers, um dos maiores escândalos de vazamento de dados da história, quando milhões de documentos revelaram um amplo esquema de ocultamento de fortunas e lavagem de dinheiro em diversos paraísos fiscais ao redor do mundo. Para tanto, ele opta se apoiar descaradamente na fórmula de A Grande Aposta Vice, entregando uma experiência requentada, quase sem personalidade, onde nem mesmo o elenco de luxo encabeçado por Meryl Streep, Gary Oldman e Antonio Banderas consegue trazer certo frescor. Isso é um tanto inaceitável mesmo quando lembramos de Soderbergh em seus momentos menos interessantes, já que ele sempre errou experimentando e não copiando. Há uma crítica contundente e importante na cena final, protagonizada por Meryl Streep em seu melhor momento no filme, mas é pouco para uma obra que, ao contrário dos trabalhos que tenta emular, não cria uma ponte efetiva entre o espectador e a difícil trama que tenta traduzir de forma irreverente.