Cinema e Argumento

Rapidamente: “Belfast”, “Mães Paralelas”, “The Novice” e “Summer of Soul”

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Isabelle Fuhrman tem desempenho excepcional no drama The Novice, que recebeu cinco indicações ao Independent Spirit Awards.

BELFAST (idem, 2021, de Kenneth Branagh): Com uma carreira mais interessante como ator do que como diretor, Kenneth Branagh, após 22 títulos atrás das câmeras, não escapou à tentação de realizar um filme autobiográfico. E, deixando de lado a discussão sobre a repetição de fórmulas habituais, Belfast é, no geral, um relato bastante desarranjado. Causa estranhamento como, mesmo adotando, em tese, o ponto de vista do jovem protagonista Buddy (Jude Hill), as memórias do diretor não parecem ter um fio condutor. Ora Belfast se empenha em tentar construir nossa conexão com as angústias da infância do protagonista, ora parece dar mais importância do que deveria a personagens orbitantes. O fator histórico da Irlanda dos anos 1960 pouco contribui para essa perspectiva pulverizada, já que acontecimentos reais são encenados e discutidos quase como um pot-pourri, embaralhados por uma montagem sem fluidez assinada por Úna Ní Dhonghaíle. Com este cenário, as generalidades de Belfast se evidenciam: não só Branagh é pouco inventivo como diretor, adotando, por exemplo, uma previsível fotografia em preto e branco que se revela mais um capricho estético do que uma ferramenta narrativa, como parece fazer um longa para si mesmo ao juntar lembranças pessoais sem que elas se entrelacem com alguma unidade ou universalidade. Belfast representa um tipo de filme que dificilmente sairá de moda — as sete indicações em categorias importantes do Oscar deste ano são uma prova disso —, mas, como sempre, novas ideias não fariam mal a ninguém.

MÃES PARALELAS (Madres Paralelas, 2021, de Pedro Almodóvar): De imediato, pensei que Dor e Glória ainda exercia uma impressão muito forte em mim, elevando minhas expectativas, mas, conforme os dias após a sessão de Mães Paralelas foram passando, a minha reação ao novo filme de Pedro Almodóvar continuava a diminuir. Não consigo encontrar nele o grande filme visto muito por muitas pessoas, muito em função de uma trama que, disposta a abarcar várias discussões, termina desfocada e com impacto reduzido. Falta consistência na linha narrativa de um filme em que até o conflito principal entre as duas mães já foi tema de novela da Globo assinada por Manoel Carlos, o que não seria um problema se o longa não levasse a trama tão a sério e se Almodóvar estivesse naquela deliciosa fervura melodramática tão representativa de seu cinema. Ao invés disso, parece haver em Mães Paralelas uma certa autocópia do diretor que já rendeu outros títulos irregulares, como Abraços Partidos e Julieta, além da introdução de elementos sem grande aderência ao filme como um todo, a exemplo das discussões políticas em cima de traumas da Guerra Civil Espanhola. Vencedora do prêmio de melhor atriz no último Festival de Veneza, Penélope Cruz acaba sendo a grande liga de Mães Paralelas. Ela há muito tempo já se tornou a musa definitiva do diretor (já são sete filme juntos desde Carne Trêmula, em 1997) e, apesar da carreira prolífera, continua a ter seus melhores momentos quando dirigida por ele e é a razão dos melhores momentos de Mães Paralelas.

THE NOVICE (idem, 2021, de Lauren Hadaway): À parte o tema da busca pela perfeição, The Novice é muito diferente de Whiplash, filme com o qual tem sido comparado. Enquanto no filme Damien Chazelle tínhamos um protagonista que chegava ao limite influenciado por um professor hiper exigente, em The Novice acompanhamos uma personagem policiada exaustivamente apenas por ela mesma. E é aí que está a grande sacada deste potente filme de Lauren Hadaway: a angústia presente na atmosfera do filme é resultado do constante estado de autocobrança de uma garota obcecada em ser a melhor da sua equipe de remo. Partindo desse enfoque, Hadaway faz observações muito pertinentes e vai contra o tão perpetuado discurso de que, para alcançar o sucesso, você deve trabalhar enquanto os outros dormem. A perfeição buscada por Alex (Isabelle Fuhrman), sem que nem ela própria saiba exatamente a razão, é vista aqui como um problema, sem glamourizações, quase como um retrato perfeito desses tempos em que querem tanto vender a cultura da chamada alta performance — cultura essa que, no frigir dos ovos, acaba fazendo com que toda uma geração sucumba à síndrome de burnout. Sensorial, The Novice tem uma trilha extraordinária assinada por Alex Weston, responsável por, assim como outros aspectos técnicos, envolver o espectador na mente inquieta e angustiada da protagonista. No entanto, é no desempenho de Isabelle Fuhrman que tudo literalmente toma corpo: seu trabalho físico é impressionante, e isso tem pouco a ver com a dedicação ao remo: através da linguagem corporal, Fuhrman traduz, no suor, nos músculos e no sangue, tudo aquilo que sua personagem não consegue verbalizar, refletir ou admitir para os outros e para ela própria. É interpretação das grandes.

SUMMER OF SOUL (…OU, QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PODIA SER TELEVISIONADA) [Summer of Soul (…Or, When the Revolution Could Not Be Televised), 2021, de Questlove]: Fazia tempo que não me deparava com um documentário tão cativante e potente quanto este Summer of Soul, uma verdadeira reparação das mais importantes. Nele, um pedacinho de História (com H maiúsculo mesmo) é recuperado e, por fim, devidamente reparado. Trata-se do verão em que aconteceu o Harlem Cultural Festival, em Nova York, no ano de 1969. O evento foi ofuscado por ter acontecido na mesma época de Woodstock, mas há outra razão por trás desse descaso histórico: o festival era dedicado à celebração da música e da cultura afro-americanas. Mais de 50 anos depois, Summer of Soul recupera imagens raras desse grande evento, convidando, inclusive, pessoas que nele estiveram e que apenas agora, após tanto tempo, relembram, através de imagens antes nunca usadas publicamente, a emoção de um festival tão importantes para ela — e que o mundo racista em que vivemos fez questão de atirar ao esquecimento. A emoção dessa (re)descoberta é palpável nos entrevistados, e não por menos: de Nina Simone a Stevie Wonder, passando por B.B. King e Mahalia Jackson, as performances musicais do Harlem Cultural Festival eram carregas de potência, seja pela plateia presente ou por tudo que aquele momento significava — e significa mais de meio século depois. É inspirador ver o cinema fazendo justiça através de um filme que mistura música, ritmo e sensibilidade com grande maestria.

“Batman”: grande renovação ou uma retomada dos elementos que marcaram os melhores momentos do Homem-Morcego?

Let’s play a game. Just me and you.

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Direção: Matt Reeves

Roteiro: Matt Reeves e Peter Craig, baseados no personagem criado por Bill Finger e Bob Kane

Elenco: Robert Pattinson, Jeffrey Wright, Paul Dano, Zoë Kravitz, Colin Farrell, John Turturro, Andy Serkis, Peter Sarsgaard, Barry Keoghan, Max Carver, Charlie Carver, Rupert Penry-Jones, Alex Ferns, Jayme Lawson

The Batman, EUA, 2022, Ação, 175 minutos

Sinopse: Com apenas alguns aliados de confiança entre a rede corrupta de funcionários e figuras importantes da cidade, Batman (Robert Pattinson) se estabeleceu como a única personificação da vingança em Gotham City. Mas, em uma de suas investigações, acaba envolvendo o Comissário Gordon e ele mesmo em um jogo de gato e rato ao investigar uma série de maquinações sádicas e trilhas de pistas enigmáticas arquitetadas por Charada (Paul Dano). A investigação o leva a descobrir uma onda de corrupção que envolve até mesmo o nome de sua família, pondo em risco sua própria integridade e as memórias que tinha sobre seu pai, Thomas Wayne.

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Há determinados super-heróis que sobrevivem aos anos e que, levando em consideração o atual cenário, parecem fadados a receber incontáveis releituras de tempos em tempos. É o caso de Batman, que já foi gótico, estapafúrdio, realista e um mero caça-níquel. De Adam West a Ben Affleck, incluindo até mesmo uma versão em LEGO dublada por Will Arnett, o Homem-Morcego já foi interpretado no cinema por quase uma dezena de atores e dirigido por cineastas dos mais variados estilos, o que sempre me leva à seguinte pergunta toda vez que leio a notícia de que teremos um novo projeto do herói: ainda há algo de realmente novo a ser dito sobre o mascarado de Gotham City?

A resposta, na verdade, nunca será definitiva, pois ela varia em relevância de espectador para espectador. Os fãs com certeza dirão que, sim, sempre dá para explorar novos prismas de um personagem tão versátil e repleto de materiais de origem quanto Batman. Já quem não tem muito afinidade com o mundo dos quadrinhos ou dos super-heróis leva outros elementos em consideração: aqueles mais cinematográficos, oxigenados e experimentais. Como fico no segundo caso, fui para a sessão de Batman sem muitos estímulos, não só porque a péssima fase estrelada por Ben Affleck ainda é muito fresca na memória, mas também porque, ao fim da projeção, o filme de Matt Reeves me pareceu menos revolucionário do que apontam as comovidas e já esperadas reações ao resultado.

Por mais que Reeves, um sólido realizador de blockbusters, como os dois últimos Planeta dos Macacos, apresente aqui a sua visão muito própria do super-herói, não deixa de existir aquele déjà-vu de estarmos vendo de novo a introdução de um novo Batman, de uma nova Mulher-Gato, de um novo Charada, de um novo Pinguim, etc. Os eternos recomeços de franquias terminam por banalizar bastante a experiência com certos universos, e foi exatamente assim que me senti durante boa parte desta versão estrelada por Robert Pattinson. O público que consegue apertar o reset junto, realmente o faz sem concessões, pois é até estranho constatar como são amplamente elogiadas e até tidas como inovadoras algumas características de Batman que já davam as caras, de um jeito ou de outro, em versões anteriores.

Não é desmerecer as escolhas feitas por Reeves, que, como um todo, aproveitam as melhores facetas dos protagonistas, e sim refrescar a memória: tratar, por exemplo, o tom realista, a Gotham sombria e a atenção aos personagens em substituição à ação desenfreada como epifanias é basicamente esquecer o que Christopher Nolan fez, principalmente, em Batman Begins e em Batman: O Cavaleiro das Trevas. Sendo mais específico ainda: como é possível festejar a tensão física/sensual entre Batman (Robert Pattinson) e Selina Kyle (Zoë Kravitz) sem lembrar de tudo o que Michelle Pfeiffer fez como Mulher-Gato, ainda que em um projeto com tons diferentes dos abordados aqui? Reeves fez certo em abraçar tudo isso, mas, ao contrário do que sugere a polvorosa mundial, ele não inventou a roda.

A fonte de inspiração de Batman é, claro, filmes de David Fincher como Se7en e Zodíaco no que tange o tom investigativo e, por que não, a imensa duração de quase três horas. Um pouco de sutileza na reverência não faria mal ao resultado, ainda que tais referências tragam surpresas bastante agradáveis a esse reboot. Reeves é feliz, entre outras coisas, ao não explorar pela milésima vez o assassinato dos pais de Bruce Wayne e na total supressão de elementos cartunescos, permitindo que personagens como Pinguim (Colin Farell) tenham seus pés bem firmados no mundo real. Quando vê Gotham City pela ótica da investigação, dos personagens e dos demônios internos do protagonista, Batman inevitavelmente se torna mais envolvente do ponto de vista emocional.

Se o filme segue a nova moda de tornar todo blockbuster o mais escuro possível para imediatamente trazer seriedade ao visual, como se filmes de cores vibrantes ou saturadas como Mad Max: Estrada da Fúria não o fossem, por outro lado, o background dado a alguns personagens atenua essa prática visual. A melancolia do Bruce Wayne de Robert Pattinson, que, passa pelo menos dois terços do filme com o rosto mascarado, casa perfeitamente com as sombras de Gotham. O mesmo se aplica para Zoë Kravitz, cuja personagem tem boas motivações em jogo e é um excelente complemento a essa visão desesperançosa do protagonista para uma cidade nada convidativa.

Ainda na zona dos atores, Batman sabe a importância de trazer bons nomes para o projeto e dar o devido destaque a cada um deles. Nem todos personagens são essenciais à trama, o que não diminui o prazer de ver um filme de tamanha dimensão compreendendo que nomes como Paul Dano, Jeffrey Wright, Peter Sarsgaard, entre outros, não devem estar em cena apenas como curiosidade ou participações especiais. Batman é um trabalho de elenco, mesmo que Reeves, aqui e ali, não resista em dar a possibilidade para que um ou outro ator tenha sua cena isolada de brilho em detrimento do roteiro, especialmente no caso de Paul Dano, que, se não fosse o ator maravilhoso que é, teria transformado sua primeira cena frente a frente com Robert Pattinson em uma egotrip impulsionada pela vontade do longa em ecoar a vibe Coringa de Heath Ledger e Joaquin Phoenix.

Após as bobeiras dos filmes estrelados por Ben Affleck, a DC estava precisando de um filme como Batman, que pende mais para o realismo das obras de Christopher Nolan do que para o entretenimento sem muito compromisso com a qualidade. Se Reeves partiu de um briefing como esse, a modelagem está bem evidente na tela. Da fabulosa trilha de Michael Giacchino que remete ao trabalho de Hans Zimmer e James Newton Howard na trilogia de Nolan a um conceito de ação menos fantasioso, Batman reverenciando elementos marcantes de alguns dos melhores tempos do Homem-Morcego. Paralelamente, contudo, fica a sensação de uma renovação que não divide tantas águas assim. Para um primeiro filme, o resultado é mais do que satisfatório. Agora, colocá-lo à altura de clássicos noir e de diretores consagrados como William Friedkin… Aí já é outra história. Precisamos ver o que Reeves fará daqui em diante para realmente entender o que pode ser considerado como real renovação ou não.

Rapidamente: “A Crônica Francesa”, “King Richard”, “Não Olhe Para Cima” e “No Ritmo do Coração”

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Indicado em três categorias do Oscar 2022, incluindo melhor filme, No Ritmo do Coração comove por sua simplicidade e pelas emoções genuínas atribuídas aos personagens.

A CRÔNICA FRANCESA (The French Dispatch, 2021, de Wes Anderson): Se Christopher Nolan realizou Tenet, Wes Anderson fez A Crônica Francesa. Ou seja, dois célebres diretores tornando-se caricaturas deles próprios com filmes em que exploram à exaustão e de forma consciente os elementos que os alçaram ao sucesso. Tenho lá meus altos (O Fantástico Sr. Raposo, Moonrise Kingdom, O Grande Hotel Budapeste) e baixos (Viagem a Darjeeling, A Vida Marinha) com a filmografia de Anderson, mas poucas vezes o vi fazendo algo tão abarrotado de personagens, atores, histórias, ideias, cores, elementos cênicos, etc. É um filme hiperbólico até mesmo para os padrões do diretor, que acaba se perdendo em um emaranhado de possibilidades, embolando um projeto já de estrutura potencialmente dispersa. Para completar, tudo é ensaiado em excesso, tanto ponto de vista técnico, que costuma ser uma obsessão milimétrica do cineasta, quanto da parte do próprio elenco. Como talentosos intérpretes, Benicio Del Toro, Léa Seydoux e Frances McDormand conferem personalidade às suas respectivas tramas e são o destaque de um elenco extenso onde certos atores aparecem apenas para dar o ar da graça, muitas vezes quase como figurantes. Ainda assim, eles também sintetizam o problema de excessos de A Crônica Francesa. Várias das características citadas aqui sempre marcaram o estilo de Wes Anderson e, inclusive, tornaram-no quem ele é. A questão é essa tomada de consciência que torna tudo tão prejudicial, revelando a certeza de que a verdadeira inspiração deve vir naturalmente, e não de forma calculada ou sob encomenda.

KING RICHARD: CRIANDO CAMPEÃS (King Richard, 2021, de Reinaldo Marcus Green): Típica cinebiografia motivacional, King Richard endeusa Richard Williams (Will Smith) como o grande responsável pela carreira triunfante das tenistas Venus (Saniyya Sidney) e Serena Williams (Demi Singleton). Sim, ele teve papel preponderante neste processo, mas pintá-lo como um maioral tem lá seus problemas, a começar pela constatação de que, na vida real, Richard estava longe de ser a grande figura apresentada pelo filme, tendo, inclusive, abandonado os cinco primeiros filhos de seu casamento. E não se trata apenas de questões orbitantes ao projeto: dentro do próprio King Richard fica difícil simpatizar com uma história que explora muito mal as vontades, os dilemas e as complexidades das meninas destinadas a se tornaram estrelas. Não faria mal o roteiro sair um pouco do umbigo de Richard para mostrar a visão das garotas, especialmente quando a história se arrasta para chegar até o final. Prova disso é King Richard registrar suas melhores passagens quando mostra, por exemplo, Venus em conflito sobre assinar ou não um contrário milionário de exclusividade com a Nike ou ela própria lidando com uma importante partida que será decisiva na sua carreira. Enquanto isso, o protagonista é quase unidimensional e responsável por propagar um discurso tradicional do american way of living, mas já defasado frente a tantas questões debatidas nos dias de hoje: o de que todo e qualquer sacrifício é aceitável para se alcançar o sucesso. É uma mensagem reverenciada em demasia por um longa dirigido sem nenhuma inspiração e pouco capaz de ir além da superfície em discussões pertinentes no que tange família, sucesso e destino.

NÃO OLHE PARA CIMA (Don’t Look Up, 2021, de Adam McKay): Poucos previram que esta comédia dirigida por Adam McKay se tornaria um hit, muito menos um dos filmes mais vistos de toda a trajetória da Netflix. Espécie de um novo “isso é muito Black Mirror” da plataforma, Não Olhe Para Cima dá razões de sobra para justificar tamanho sucesso, a começar pela sátira muito clara e acessível que faz um apanhado de absurdos vividos no Brasil em termos sociais e políticos. Talvez lhe falte certo timing, visto que o resultado tem mais proximidade com a era Trump do que com a era Biden, o que não o impede de preservar sua atualidade porque o lastro deixado por governos problemáticos (para dizer o mínimo) é muito grande. Isso quando ainda não são uma realidade pulsante, como neste nosso Brasil de Jair Bolsonaro. Há quem critique Não Olhe Para Cima por ser escancarado demais e sem sutilezas, como se a realidade já não o fosse, mas essa é uma ideia abraçada sem restrições pelo filme. Ponto positivo, portanto. O que não me empolga no roteiro escrito pelo próprio McKay é ele se apoiar demais em acontecimentos da vida real para formular seus conflitos, sem ter ideias próprias, digamos assim. No desenrolar da trama, vemos apenas uma dramatização de fatos e leituras já amplamente presentes na vida real. Do ponto de vista cômico, isso basta até certo ponto, mas, dados os 140 minutos de duração, não chega a conferir a musculatura necessária para suas ambições e para o elenco estelar reunido aqui. São os atores que seguram as pontas quando, como um todo, Não Olhe Para Cima eventualmente perde parte do seu gás. Abraçado e repelido pelo público nas mesmas proporções, o filme, no frigir dos ovos, não vai nem ao céu nem ao inferno.

NO RITMO DO CORAÇÃO (CODA, 2021, de Sian Heder): Sem ter conferido o francês A Família Bélier, tudo foi novo para mim em No Ritmo do Coração, refilmagem do longa de 2014 assinado por Eric Lartigau. Não sei até que ponto isso contribuiu para a minha relação com os personagens, mas foi muito fácil se conectar com a jornada de Ruby (Emilia Jones, excelente), a única pessoa ouvinte de uma família de surdos. Valorizo muito essa conexão porque No Ritmo do Coração trilha caminhos previsíveis sem impedir a história de envolver e comover com grande naturalidade. Ao compreendermos o quanto a paixão pela música será um nó a ser desatado na vida de uma menina cuja vida se resume aos pais devido à dependência que eles nutrem por ela, os pequenos momentos acabam ganhando significados ainda mais afetivos, seja pelos dilemas muito críveis de uma protagonista iluminada ou pelos anseios de uma família que nos ganha pouco a pouco. Os conflitos de No Ritmo do Coração comovem porque são construídos em cima do afeto, o que talvez complique ainda mais as coisas, já que é sempre complicado questionar e enfrentar aqueles que mais amamos. E, quando o longa toma a simplicidade como conceito e recruta um elenco em estado de graça, com direito performances tocantes de Troy Kotsur e Marlee Matlin, a emoção se potencializa em qualquer momento corriqueiro. Não há apelação aqui, e sim uma grande dose de compreensão e generosidade, algo que, com o passar da vida, acaba tendo um significado muito maior do que qualquer situação mirabolante ou devastadora.

“Licorice Pizza” revela o lado solar, afetivo e muito pessoal de Paul Thomas Anderson

You’re always thinking things, you thinker!

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Direção: Paul Thomas Anderson

Roteiro: Paul Thomas Anderson

Elenco: Cooper Hoffman, Alana Haim, Sean Penn, Bradley Cooper, Benny Safdie, Tom Waits, Will Angarola, Griff Giacchino, James Kelley, Milo Herschlag, John Michael Higgins, Yumi Mizui, Skyler Gisondo, Christine Ebersole, Greg Goetzman

EUA, 2021, Comédia, 133 minutos

Sinopse: Licorice Pizza é a história de Alana Kane (Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman) crescendo, correndo e se apaixonando no Vale de San Fernando, 1973. Os dois iniciam vários negócios, flertam, fingem que não se importam um com o outro e, inevitavelmente, se apaixonam por outras pessoas para evitar se apaixonar um pelo outro. Mas há um detalhe entre os dois: ela tem 25 e ele 15. (Adoro Cinema)

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Gary (Cooper Hoffman) tem certeza de que ama Alana (Alana Haim) desde o primeiro minuto em que a vê. Mais do que isso, sai da primeira conversa com ela acreditando que o destino dos dois é o matrimônio. Detalhe: Gary tem apenas 15 anos, dez a menos que Alana, e não é levado a sério por sua mais nova paixão. Licorice Pizza poderia ser a clássica história de um amor não correspondido que, ao final, dá certo após uma longa jornada de altas e baixos, mas quem está atrás das câmeras é Paul Thomas Anderson, diretor de obras-primas do cinema contemporâneo e do meu coração, como Boogie Nights, Magnólia, Sangue Negro, O Mestre e Trama Fantasma. Um cineasta com um currículo como esse jamais se limitaria ao óbvio.

Licorice Pizza não deixa de ser uma guinada na carreira de Anderson, diretor comumente denso e inquieto que, neste filme, dá lugar a um contador de histórias solar, leve e afetivo, como nunca havíamos visto. Para tanto, ele não perde traços tão característicos seus, exemplificados já na primeira cena, um longo plano-sequência ao som de Nina Simone que ilustra com grande habilidade as personalidades muito peculiares de dois protagonistas livres de estereótipos. Do lado pop explorado com louvor em Boogie Nights às camadas tortuosas de uma vida vivida a dois em Trama Fantasma, é fácil reconhecer Anderson em Licorice Pizza, mesmo que com um estilo diferente do habitual.

A composição do casal protagonista se destaca de imediato, uma vez que Gary e Alana são abraçados com todas as suas imperfeições e contradições, várias delas não muito agradáveis. Ainda que mais velha, Alana parece se equivaler a Gary neste jogo de morde e assopra que revela dois jovens confusos sobre eles próprios como dupla e como indivíduos no mundo. Gary, por exemplo, parece ter a ânsia de canalizar várias ideias e vontades, levando-o ao mundo do empreendedorismo de colchões de água ou de máquinas de pinball. Alana, por outro lado, chega aos 25 anos sem o desejo de ir para a faculdade e tampouco sem saber o que fará da vida. Não é exatamente o caso de afirmar que opostos se atraem, mas há algo de magnético nessa dinâmica de duas pessoas contrárias em vários sentidos.

Ao permitir que os protagonistas sejam vistos sem qualquer julgamento, Licorice Pizza constrói uma atmosfera bastante pé no chão para um filme trabalhado na nostalgia. Aqui, a Califórnia dos anos 1970 é claramente vista sob uma perspectiva muito pessoal e afetiva de Anderson, quase como um livro de memórias em que Gary e Alana passeiam por diferentes sentimentos, trabalhos, cenários familiares e conflitos sendo quem realmente são, mesmo quando tentam se encaixar em algum tipo de normalidade, como na parte em que Alana passa a atuar nos bastidores de uma campanha política. A estrutura quase episódica contribui para testemunharmos o passar do tempo e a maneira com que os dois reagem a ele.

Se Licorice Pizza lida muito bem com seus dois protagonistas em qualquer circunstância, o mesmo não pode ser dito de outros personagens escolhidos para orbitar a história. O problema começa quando o William de Sean Penn entra em cena, desviando quase toda a atenção para o aproveitamento desse personagem. A participação é relativamente longa e, logo descobrimos, um recurso a ser replicado dali em diante: após Sean Penn, também entram em cena personagens vividos por Bradley Cooper e Bennie Safdie, ocupando uma parcela de tempo grande demais e que seria melhor aproveitada com os protagonistas. É por essa barrigas fáceis de identificar que o roteiro se estica além da conta quando, na verdade, tinha tudo para ser mais polido e assertivo.

Outro fator que pode ampliar essa percepção depende do repertório e da identificação de cada espectador. É o de Licorice Pizza ter um diretor assumidamente familiar e enamorado com o recorte de tempo e espaço trabalhado. Anderson faz um filme que toca em cheio na nostalgia de quem viveu tudo aquilo — e, em boa parte, ele consegue fazer com que a plateia também tenha esse sentimento —, mas as referências e citações internas parecem ser elementos importantes para que determinadas piadas, por exemplo, ganhem a devida graça e revelem sua esperteza. Neste coming of age bastante pessoal, com escolhas fora do habitual, bem interpretado por dois protagonistas e embalado por uma seleção maravilhosa de músicas, o ponto final da costura pode estar, portanto, nessa conexão afetiva e nostálgica que regula a maneira como cada um reage ao longa.

“Pequena Mamãe” é a mais nova pérola de uma infalível Céline Sciamma

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Direção: Céline Sciamma

Roteiro: Céline Sciamma

Elenco: Joséphine Sanz, Gabrielle Sanz, Nina Meurisse, Stéphane Varupenne, Margot Abascal, Florès Cardo, Josée Schuller, Guylène Péan

França, 2021, Drama, 75 minutos

Sinopse: Nelly acaba de perder sua avó e está ajudando o pais a limpar a casa de infância de sua mãe. Ela explora a casa e o bosque ao redor. Um dia, ela conhece uma garota de sua idade construindo uma casa na árvore.

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Ainda estamos por ver algo minimamente decepcionante da cineasta francesa Céline Sciamma. Claro que sou suspeito para falar porque tenho grande admiração por seu estilo delicado, naturalista e, por vezes, imaginativo, mas Pequena Mamãe, filme assinado por ela e exibido no último Festival de Berlim reafirma essa sensação. Após o emblemático Retrato de Uma Jovem em Chamas, Sciamma volta a um tema bastante recorrente na sua filmografia: a infância, agora sob a perspectiva do luto. No centro da história, está Nelly (Josephine Sanz), uma menina de oito anos que acaba de perder a avó e tenta lidar com essa despedida através do vínculo com sua mãe. Simples na essência. Surpreendente nos detalhes.

Assim como em Tomboy, onde discutiu identidade de gênero, e no roteiro de Minha Vida de Abobrinha, em que abordou orfandade e abandono, a diretora olha para a vida adulta por meio das possibilidades e das imaginações presentes na vida infantil. E trata-se de um formato muito difícil de administrar, visto que é muito comum encontrar filmes que tratam crianças como mini-adultos ou, então, como personagens que só expressam suas angústias e contradições através de comportamentos que testam a paciência e os ouvidos da plateia. Sciamma passa longe disso, e o faz com inteligência, debruçando-se com delicadeza sobre os verdadeiros traços que orbitam essa faixa etária e fazendo com que eles sejam complexos sem perder a identidade inerente a personagens com curtas trajetórias de vida.

No caso de Pequena Mamãe, o luto fornece elementos para compreendermos a pequena Nelly, tanto na sua jornada individual quanto na relação estabelecida com uma mãe de função muito mais complexa do que aparenta. Ao abordar sentimentos decorrentes das perdas, Sciamma aproveita para explorar também o amor, a inocência e os interessantes prismas com que os pequenos enxergam o mundo. E não estamos falando de qualquer criança: a Marion de Petite Maman é especial, quase mágica, e o fato de ela eventualmente parecer um tanto mais madura do que o esperado para a sua idade é plenamente justificado com o desenrolar da trama.

Temos, portanto, um longa-metragem melancólico que encontra maturidade não na ideia de uma infância pura e simples, mas nas remanescências dela, particularmente nas de nós próprios. Feito de camadas desdobradas de maneira quase imperceptível, Pequena Mamãe pode ser uma ghost story, o retrato de um rito de passagem, uma fábula, um conto sobre como se (re)conhecer no luto e uma mistura disso tudo, o que não é problema algum para uma contadora de histórias como Sciamma. Ela cria a atmosfera ideal para que o filme se complemente e não se pulverize com suas tantas possibilidades de interpretação.

Em que pese um ponto de virada construído sem maiores surpresas, Pequena Mamãe é o caso de filme que alcança o subestimado e dificílimo feito de ser conciso em tudo que se propõe, a começar pela própria duração de meros 72 minutos. Há, no projeto, um universo rico e repleto de leituras poucas vezes encontradas em obras que acreditam na ideia de que quanto mais tudo — tempo, elenco, técnica — melhor. Com Sciamma, tudo flui naturalmente em uma experiência breve e plena em sua objetividade. Do ponto de vista formal e emotivo, a cineasta, com apenas cinco longas no currículo, já é mesmo uma grande e, até aqui, infalível referência. Estou desde já ansioso por seu próximo projeto.