Três atores, três filmes… com Daniel Rodrigues

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Quem mergulha fundo na singular discografia de um grande compositor como Philip Glass só pode ser boa pessoa, e o Daniel Rodrigues, convidado da vez aqui na coluna, não foge à regra. Ao longo dos anos, nós nos conectamos, entre outras coisas, por meio dessa admiração em comum por Glass, mas a verdade é que, nos caminhos do Jornalismo e da crítica de cinema, sempre aprendi muito com a sensibilidade do Daniel (e vocês também poderão constatá-la nas grandes atuações escolhidas por ele logo abaixo). Estamos diante de um profissional múltiplo: jornalista, crítico de cinema, radialista, escritor, blogueiro… Há 13 anos, coedita o blog cultural Clyblog e, desde 2017, apresenta o programa Música da Cabeça da Rádio Elétrica. Como escritor, é autor do livro “Anarquia na passarela: a influência do movimento punk nas coleções de moda”, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura em 2013. Passeando pelos universos de Giuletta Masina, Leonardo Villar e Marlon Brando, Daniel esbanja, agora aqui no blog, o seu grande conhecimento e apreço pelos filmes. Aproveitem!

Giulietta Masina (A Estrada da Vida)
A Estrada da Vida é sem dúvida um dos grandes filmes de Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poética e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme O Amor (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulietta Masina na linha de frente, A Estrada da Vida seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulietta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

Leonardo Villar (O Pagador de Promessas e A Hora e a Vez de Augusto Matraga)
Sempre quando falo sobre grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulietta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de cinco anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de O Pagador de Promessas, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). E na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre A Hora e a Vez de Augusto Matraga, certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados, não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são – até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual – desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

Marlon Brando (O Poderoso Chefão)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de Little Wing? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em O Poderoso Chefão. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que quase se esquece que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

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