“A Primeira Morte de Joana”,
de Cristiane Oliveira
Ainda há algo de novo a ser dito em relação às histórias de ritos de passagem? Do cinema brasileiro ao Hollywoodiano, o chamado coming of age ganhou grande popularidade nos últimos anos e agora parece chegar a um ponto de virada, onde a temática deixa de encantar por si só e o que acaba pesando na balança é a capacidade de cada cineasta mergulhar na temática propondo novos olhares. Não sou um entusiasta de Mulher do Pai, filme anterior da gaúcha Cristiane Oliveira, mas embarquei em A Primeira Morte de Joana, onde ela demonstra uma admirável facilidade em identificar o tipo de história que lhe interessa e em estabelecer uma identidade muito própria como realizadora. Neste caso, Cristiane busca as especificidades e as camadas de um coming of age ambientado em Osório, cidade localizada a 95 quilômetros de distância de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.
A geografia é fundamental para que A Primeira Morte de Joana não seja um relato reiterativo da temática, inclusive no que tange à descoberta da protagonista sobre a sua própria homossexualidade. Não só as dinâmicas conservadoras e reprimidas do povo gaúcho quanto à diversidade se apresentam aqui em tom mais íntimo e familiar como também os elementos da natureza — no caso, os ventos tão característicos de Osório, que abriga a segunda maior usina eólica da América Latina — contribuem para entendermos as transformações internas de Joana (Letícia Kacperski). O ponto de partida também é curioso, pois a protagonista inicia uma jornada de autodescoberta a partir de um segredo familiar: o de que a sua tia-avó faleceu aos 70 anos sem nunca ter namorado alguém. A partir daí, A Primeira Morte de Joana lança um olhar para as relações entre diferentes gerações femininas daquela família.
Capturando com perfeição os costumes e os sentidos da vivência gaúcha contemporânea em uma cidade como Osório, Cristiane Oliveira faz um filme muito honesto e que chega à competição do 49º Festival de Cinema de Gramado após ter passado outros eventos do gênero em países como Índia, Suécia, Alemanha e Estados Unidos. Em contraponto, o fato de A Primeira Morte de Joana ser uma experiência tão redondinha e “com tudo no lugar” traz certo afastamento, como se faltasse uma garra maior em termos criativos, de ritmo e atmosfera. Trata-se da já conhecida sensação de que, mesmo agradável, delicado e com méritos facilmente identificáveis ao longo da projeção, o longa desperta mais envolvimento enquanto estamos em contato com ele, reverberando menos após a chegada dos créditos finais — sensação essa que, claro, depende de espectador para espectador, ainda mais em um filme sobre questão tão íntimas de uma personagem bastante identificável.
“Jesus Kid”, de Aly Muritiba
O que explica um diretor ir de todo o impacto da minissérie O Caso Evandro para um apanhado de descompassos e desarranjos como Jesus Kid? É o tipo de involução surpreendente, inclusive por estarmos diante de um projeto que se propõe a adaptar uma obra do sempre criativo Lourenço Mutarelli. Pois, em Jesus Kid, o baiano Aly Muritiba erra a mão em uma comédia desencontrada, para dizer o mínimo. O que seria ela, afinal? Sátira? Deboche? Pastelão? Nonsense? Difícil saber em qual humor ele quer acertar, e não em um bom sentido. O caos visto em Jesus Kid não é, por exemplo, aquele proposital e metafórico que já vimos neste 49º Festival de Cinema de Gramado com Carro Rei. A confusão aqui é mesmo reflexo de um projeto mal calibrado e sem unidade.
No centro do longa está Eugênio (Paulo Miklos), escritor de western que sê vê em dificuldades quando seu personagem mais famoso, Jesus Kid, começa a ir mal de vendas. Mas eis que aparece uma possível salvação: ele é contratado para escrever o roteiro de um filme. Quem vive Jesus Kid é Sérgio Marone, que adquiriu os direitos de adaptação da obra de Mutarelli e convidou o baiano Aly Muritiba para assumir a direção. Também autor do roteiro, Muritiba fez ajustes no texto original, incorporando à trama piadas e referências relacionadas ao estado político atual do Brasil. Infelizmente, elas não são orgânicas e soam forçadas quando Jesus Kid as adota como muleta. É uma oportunidade perdida porque o longa poderia construir algo muito mais refinado em sua proposta de western contemporâneo e povoado por homens armados e pseudo-vilões.
Na medida em que se perde e se confunde em todas as brincadeiras já um tanto confusas, o filme de Muritiba logo se torna cansativo. As metalinguagens entre literatura e cinema reforçam essa impressão, algo que afeta o próprio elenco. Paulo Miklos, que vem se dedicando cada vez mais ao cinema (em 2019, ele chegou a ganhar o Kikito de melhor ator pelo drama O Homem Cordial, talvez a sua melhor interpretação até aqui), interpreta o protagonista Eugênio tateando qual linha cômica usar o tempo inteiro, mas sem encontrá-la. Enquanto isso, Sérgio Marone, que sempre foi mais galã do que bom ator, funciona até melhor do que o próprio Miklos em diversos momentos, pois seu porte físico, sua estatura de 1,93m e até mesmo seu ar canastrão servem ao propósito desse caubói inusitado. Ou seja, quando se torna possível fazer esse tipo de constatação entre atores de estilos e repertórios opostos, é porque algo está errado. E, em Jesus Kid, não é difícil afirmar que realmente está.
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