47º Festival de Cinema de Gramado #3: “O Homem Cordial”, de Iberê Carvalho

Paulo Mikos em O Homem Cordial: ex-Titã tem no filme de Iberê Carvalho a melhor interpretação de sua carreira.

Se tomássemos como parâmetro somente o afetuoso O Último Cine Drive-In, seria um tanto difícil prever que o diretor Iberê Carvalho tivesse um repertório tão vertiginoso quanto o apresentado agora em O Homem Cordial, filme que faz sua estreia nacional na competição do 47º Festival de Cinema de Gramado. À parte o problema do título, que causa imediata confusão com o recente O Animal Cordial, dirigido por Gabriela Amaral Almeida, o novo longa-metragem de Iberê arrasta o espectador noite adentro em uma odisseia que descortina nossas cicatrizes político-sociais e cria um verdadeiro redemoinho a partir de todas nossas intolerâncias, preconceitos e negligências. Como uma investigação sensorial desse cenário, O Homem Cordial é uma experiência angustiante que usa a trajetória pontual de um personagem para trazer uma perspectiva inevitavelmente pessimista do que temos nos tornado de uns anos para cá.

Seguindo os modelos de todo filme ambientado à noite, quase em tempo real e com um personagem enfrentando uma conturbada jornada pelas ruas de uma cidade, O Homem Cordial será eternamente associado a Depois de Horas, de Martin Scorsese. Entretanto, o filme de Iberê Carvalho é mesmo sobre o Brasil, e essa sua especificidade lhe confere personalidade diante dos títulos que apenas tentam emular uma fórmula. O roteiro, escrito pelo diretor em parceria com o uruguaio Pablo Stoll, acompanha a noite de retorno aos palcos de uma famosa banda de rock do anos 80, quando viraliza na internet um vídeo que envolve Aurélio Sá (Paulo Miklos), vocalista e líder da banda, na morte de um policial militar. Miklos, que de fato foi vocalista de uma icônica banda de rock brasileira (os Titãs), tem trilhado carreira no cinema, e seu trabalho aqui talvez possa ser considerado o ponto alto dessa trajetória: com vitalidade e naturalidade, ele segura muito bem um protagonista que tem a câmera grudada em seu rosto praticamente a projeção inteira, o que é um desafio e tanto até para o melhor dos atores.

Inclusive, a técnica de O Homem Cordial tem grande contribuição nos sentimentos claustrofóbicos e eletrizantes trazidos pelo filme. Dessa mistura, é possível tirar dois destaques: a fotografia de Pablo Baião e a montagem de Nina Galanternick, fundamentais para a construção da atmosfera de um filme praticamente todo ambientado à noite. A vertigem de violência, seja ela física, verbal ou emocional, combina com o tom soturno da obra, que, a partir da superexposição nas redes sociais e da compulsão de uma sociedade que precisa registrar e denunciar tudo pela câmera de um celular, fala sobre como muitas vezes ela acaba distorcendo situações e desviando as discussões que realmente importam. O mosaico é completo: racismo, política, abuso de poder, direitos humanos, violência policial, diferença de classes… Não há o que escape de O Homem Cordial em uma radiografia muitas vezes incômoda de se acompanhar e que é desenvolvida a cada esquina dobrada pelo protagonista.

A firmeza de Iberê em não deixar que O Homem Cordial se torne um filme disperso em tantas leituras é grande, ainda que isso não livre o resultado de certos prejuízos, especialmente estruturais: na medida em que abre demais o leque da jornada de seu protagonista, o longa de certa forma o perde de vista para se dedicar a cenas que pesam a mão mais no discurso do que propriamente na construção da história. Exemplo disso é a longa sequência envolvendo Aurélio e um grupo de policiais, onde o comandante da operação representa, com certa caricatura, toda a violência de um sistema preconceituoso, intolerante e racista que já estava sendo contemplado pontualmente por várias passagens do filme. O Homem Cordial retoma as rédeas perto de seu encerramento, quando retrocede para encenar um fato crucial da história, e aí sim volta a abraçar sua força maior de ver o mundo através de um recorte específico. Quando busca sua voz por esse meio, Iberê Carvalho sempre faz o seu filme subir um degrau, mexendo com o espectador sem recorrer à mera explanação.

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