
Carro Rei, de Renata Pinho, é o terceiro longa-metragem pernambucano a vencer o Festival de Cinema de Gramado nos últimos dez anos. Foto: Edison Vara/Pressphoto.
Pelo segundo ano consecutivo, o Festival de Cinema de Gramado se viu obrigado a acontecer em um formato televisivo e online, atendendo de forma responsável aos efeitos da pandemia da Covid-19. Um tanto mais desgastado do que o ano passado em diversos sentidos, o Festival tomou forma sem a garra que poderia se esperar para um evento que, em 2022, comemora nada menos do que 50 anos de existência, o que inclui desde modificações bastante complicadas na grade horária (antes exibida às 20h no Canal Brasil, a programação saltou para às 21h30, levando os filmes madrugada adentro) até percalços recorrentes na concepção técnica e artística de transmissões ao vivo e das próprias premiações. Foi uma edição menor e novamente realizada em tempos de exceção, mas que não se mostrou tão presente como a do ano passado, também concebida no mesmo formato. Que, em 2022, possamos celebrar o cinquentenário de Gramado presencialmente!
Responsável por tentar traduzir em prêmios o melhor de uma seleção de longas-metragens irregular, o júri formado por Catarina Apolonio, Carol Castro, Fabricio Boliveira, Ana Paula Mendes e Tabajara Ruas acertou em cheio ao consagrar o pernambucano Carro Rei, de Renata Pinheiro, como o melhor filme da 49ª edição. Trata-se da terceira vez, em menos de uma década, que o cinema pernambucano se consagra na Serra Gaúcha: em 2019, a coprodução King Kong em Asunción levou a melhor, e Tatuagem foi o grande vencedor do ano de 2013. Mistura visceral de diversos gêneros e referências, Carro Rei também levou os prêmios de melhor desenho de som, trilha sonora, direção de arte e uma menção honrosa para o maravilhoso desempenho de Matheus Nachtergaele. É talvez o filme mais peculiar a vencer Gramado em muitos anos e também o tipo de experiência que ficará para a posteridade.
Outro aspecto bacana e muito sintomático da premiação é o de que a trinca de melhor filme — júri oficial, popular e da crítica — foi toda entregue a filmes dirigidos por mulheres. E, de fato, elas dirigiram, em maior e menor escala, os melhores longas desta edição: o júri oficial ficou com Carro Rei, enquanto o júri popular escolheu O Novelo, de Claudia Pinheiro. Já a crítica especializada consagrou A Primeira Morte de Joana, de Cristiane Oliveira. Por outro lado, é de se estranhar que a comédia Jesus Kid, de Aly Muritiba, tenha conquistado prêmios bastante importantes como o de direção e roteiro, tanto por essa constatação de um claro domínio feminino quanto pelo fato de ser mesmo uma produção de gosto duvidoso. E outra: como um filme que é o melhor em duas categorias centrais não se consagra na categoria principal? Sem dúvida, trata-se de uma dupla incoerência entre as escolhas do júri.
Além do meu apreço pela vitória de Carro Rei, gosto do amplo reconhecimento dado ao elenco de O Novelo, da participação especial de Isabel Zuaa aos atores jovens. Entre os protagonistas adultos e masculinos do filme, o prêmio de melhor ator coube a Nando Cunha, uma verdadeira surpresa considerando que o longa de Claudia Pinheiro tem vários personagens principais e que outros dois grandes atores eram franco favoritos: Matheus Nachtergaele (Carro Rei), que acabou ficando com uma menção honrosa, e Chico Díaz, cujo Homem Onça levou apenas um prêmio muito justo de atriz coadjuvante para Bianca Byington. Quanto aos prêmios técnicos, boa coerência entre os vitoriosos, seja pelas categorias faturadas por Carro Rei ou pelos prêmios para A Primeira Morte de Joana em melhor montagem e fotografia (o segundo Kikito de Bruno Polidoro na noite, já que ele também conquistou a estatueta na mostra gaúcha de longas com A Colmeia).
Por ter participado da seleção dos filmes que concorreram no segmento de curtas-metragens brasileiros, não comentarei em detalhes sobre os vencedores. No entanto, tendo abarcado um recorte muito específico para representar o Brasil em que vivemos, digo que gostei muito das escolhas do quarteto formado por Elisa Volpatto, Janaina Oliveira ReFem, Marco Antônio Pereira, Valéria Verba e Ulisses Arthur. A lista do júri foi muito feliz em conjugar os méritos cinematográficos e temáticos presentes na mostra. No que tange aos longas estrangeiros e gaúchos, tenho pouco a dizer, uma vez que as sessões, pelo menos no formato televisivo, acabavam muito tarde, o que é inviável para quem precisa acordar cedo no dia seguinte. Por fim, entre os curtas gaúchos, cuja cerimônia aconteceu no domingo à tarde, as esperadas lideranças de Desvirtude e Eu Não Sou Um Robô realmente se concretizaram, já que estavam um passo à frente com o aval de duas comissões de seleção distintas: a dos gaúchos e a brasileira.
Confira abaixo a lista completa de vencedores:
LONGAS-METRAGENS BRASILEIROS
MELHOR FILME: Carro Rei, de Renata Pinheiro
MELHOR DIREÇÃO: Aly Muritiba (Jesus Kid)
MELHOR ATRIZ: Glória Pires (A Suspeita)
MELHOR ATOR: Nando Cunha (O Novelo)
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE: Bianca Byington (Homem Onça)
MELHOR ATOR COADJUVANTE: Leandro Daniel Colombo (Jesus Kid)
MELHOR ROTEIRO: Aly Muritiba (Jesus Kid)
MELHOR FOTOGRAFIA: Bruno Polidoro (A Primeira Morte de Joana)
MELHOR MONTAGEM: Tula Anagnostopoulos (A Primeira Morte de Joana)
MELHOR TRILHA MUSICAL: Dj Dolores (Carro Rei)
MELHOR DIREÇÃO DE ARTE: Karen Araújo (Carro Rei)
MELHOR DESENHO DE SOM: Guile Martins (Carro Rei)
MELHOR FILME (JÚRI POPULAR): O Novelo, de Claudia Pinheiro
MELHOR FILME (JÚRI DA CRÍTICA): A Primeira Morte de Joana, de Cristiane Oliveira
PRÊMIO ESPECIAL DO JÚRI: Matheus Nachtergaele (Carro Rei), pela construção e domínio do personagem e pela brilhante capacidade de se reinventar.
MENÇÃO HONROSA: Fernando Lufer, Michel Gomes, Victor Alves, Kaike Pereira, Pedro Guilherme e Caio Patricio por seu talento e potência em O Novelo.
MENÇÃO HONROSA: Isabél Zuaa, pela bela e impactante atuação em O Novelo.
LONGAS-METRAGENS ESTRANGEIROS
MELHOR FILME: La Teoría De Los Vidrios Rotos, de Diego Fernández Pujol
MELHOR FILME (JÚRI POPULAR): La Teoría De Los Vidrios Rotos, de Diego Fernández Pujol
MELHOR FILME (JÚRI DA CRÍTICA): Planta Permanente, de Ezequiel Radusky
PRÊMIO ESPECIAL DO JÚRI: Planta Permanente, de Ezequiel Radusky, pela abordagem de temas tão presentes em nossa sociedade que refletem as consequências de um sistema corrompido e afetam diretamente os valores humanos, e pelas interpretações das protagonistas femininas que representam a força das mulheres latinas em nosso cinema.
LONGAS-METRAGENS GAÚCHOS
MELHOR FILME: Cavalo de Santo, de Carlos Eduardo Caramez e Mirian Fichtner
MELHOR DIREÇÃO: Gilson Vargas (A Colmeia)
MELHOR ATRIZ: Luciana Renatha, Alexia Kobayashi e Veronica Challfom (Extermínio)
MELHOR ATOR: João Pedro Prates (A Colmeia)
MELHOR ROTEIRO: Carlos Eduardo Caramez (Cavalo de Santo)
MELHOR FOTOGRAFIA: Bruno Polidoro (A Colmeia)
MELHOR DIREÇÃO DE ARTE: Gilka Vargas e Iara Noemi (A Colmeia)
MELHOR MONTAGEM: Joana Bernardes e Mirela Kruel (Extermínio)
MELHOR DESENHO DE SOM: Gabriela Bervian (A Colmeia)
MELHOR TRILHA MUSICAL: Cânticos Sagrados dos Orixás preservados pelos Terreiros gaúchos e Alabê Oni (Cavalo de Santo)
MELHOR FILME: (JÚRI POPULAR) Cavalo de Santo, de Carlos Eduardo Caramez e Mirian Fichtner
CURTAS-METRAGENS BRASILEIROS
MELHOR FILME: A Fome de Lázaro, de Diego Benevides
MELHOR DIREÇÃO: Fabio Rodrigo (Entre Nós e o Mundo)
MELHOR ATRIZ: Tieta Macau (Quanto Pesa)
MELHOR ATOR: Lucas Galvino (Fotos Privadas)
MELHOR ROTEIRO: Marcelo Grabowsky, Aline Portugal e Manoela Sawitzki (Fotos Privadas)
MELHOR FOTOGRAFIA: Rodolpho Barros (Animais na Pista)
MELHOR MONTAGEM: Caroline Neves (Entre nós e o Mundo)
MELHOR TRILHA MUSICAL: Eli-Eri Moura (Animais na Pista)
MELHOR DIREÇÃO DE ARTE: Torquato Joel (A Fome de Lázaro)
MELHOR DESENHO DE SOM: Breno Nina (Quanto Pesa)
MELHOR FILME (JÚRI POPULAR): Desvirtude, de Gautier Lee
MELHOR FILME (JÚRI DA CRÍTICA): Entre Nós e o Mundo, de Fábio Rodrigo
PRÊMIO ESPECIAL DO JÚRI: Fabio Rodrigo (Entre Nós e o Mundo), por responder de forma consciente em termos estéticos, afetivos e narrativos a pergunta “como falar sobre a dor da perda e ainda ter esperança?”.
MENÇÃO HONROSA: A Beleza de Rose, de Natal Portela, por fazer um delicado recorte da vida de muitas mulheres negras no nordeste do Brasil.
PRÊMIO CANAL BRASIL: A Beleza de Rose, de Natal Portela
CURTAS-METRAGENS GAÚCHOS (PRÊMIO ASSEMBLEIA LEGISLATIVA)
MELHOR FILME: Desvirtude, de Gautier Lee
MELHOR DIREÇÃO: Gautier Lee (Desvirtude)
MELHOR ATRIZ: Evellyn Santos (Desvirtude)
MELHOR ATOR: Álvaro Rosacosta (Rufus)
MELHOR ROTEIRO: Felipe Yurgel, Gabriela Lamas e Maurilio Almeida (Eu Não Sou Um Robô)
MELHOR FOTOGRAFIA: Lívia Pasqual (Eu Não Sou Um Robô)
MELHOR MONTAGEM: Gabriel Borges (Desvirtude)
MELHOR DIREÇÃO DE ARTE: Gabriela Lamas (Eu Não Sou Um Robô)
MELHOR TRILHA SONORA: Renan Franzen (Noite Macabra)
MELHOR DESENHO DE SOM: Kiko Ferraz e Chrístian Vaisz (Um Dia de Primavera)
MELHOR PRODUÇÃO EXECUTIVA: Álvaro Rosa Costa, Carmem Fernandes, Fernanda Kern, Laura Cohen, Lisiane Cohen, Maurício Borges de Medeiros (Era Uma Vez Uma Princesa)
MELHOR FILME (JÚRI DA CRÍTICA): Eu Não Sou Um Robô, de Gabriela Lamas
MENÇÃO HONROSA: Rota, de Mariani Ferreira, por nos colocar diante de uma relação complexa de forma inteligente, cuidadosa e provocadora; pelas atuações, que em momentos certeiros, ampliam profundamente a distancia entre pai e filha; e, por fim, pela elaboração do roteiro, pela direção, montagem, desenho de som, e pela força de toda a equipe de produzir Rota em um tempo tão diferente.
Pingback: Dossiê: 49º Festival de Cinema de Gramado | Abraccine - Associação Brasileira de Críticos de Cinema