“Beleza Fatal” é realmente o novelão de que o Brasil estava precisando?

A última novela que acompanhei com absoluta devoção foi Avenida Brasil, lá em 2012, quando consumíamos audiovisual de maneira bem diferente. Desde então, nos últimos anos — e, especialmente, nas produções pós-pandemia —, não embarquei mais neste formato que tanto define o público brasileiro. Minha impressão é que não há espaço para contemplação: hoje, tramas precisam estar sempre recheadas de ganchos e reviravoltas, mesmo em detrimento do compromisso com a realidade e com a própria lógica interna de suas dramaturgias. É crime pra cá, trapaça pra lá, traição no meio, planos mirabolantes e um punhado de malabarismos só para manter uma história indo em frente, custe o que custar, naquilo que produtores e roteiristas acreditam ser a solução para prender a atenção de plateias dispersas diante da hiper conexão.
Ao menos para mim, ver novelas virou sinônimo de um constante exercício de suspensão de crença, o que até acho tolerável, desde que a recompensa seja muito boa, o que não tem sido o caso na grande maioria das produções recentes. Se os folhetins televisivos se veem em completa crise, seja ela criativa ou comercial, agora eles também precisam lidar com uma importante novidade: os streamings passaram a desbravar o mercado das novelas, e Beleza Fatal, a produção original Max que exibiu seu capítulo derradeiro nesta última sexta-feira (21), acaba sendo um marco em uma discussão acalorada em meio à crise catastrófica de, por exemplo, Mania de Você, que registrou há poucas semanas a pior audiência de uma novela das nove para a Rede Globo, desbancando Travessia, de Glória Perez, não por acaso, outra produção bastante recente.
Beleza Fatal mexe em muitos calos porque mobilizou o público: nas mídias sociais, foi comentada, virou meme, revigorou o embalo do ritual coletivo de se assistir semanalmente a um programa e, com mais liberdade para tratar de temas considerados espinhosos pela TV aberta, tocou em questões que refletem os dias atuais. Trata-se de uma novela que, assim como a ótima Pedaço de Mim, da Netflix, repensa formatos tradicionais, a começar pela existência de núcleos mais enxutos e um número menor de episódios. É fácil e divertido acompanhar Beleza Fatal, pois, com economia, pouco sobra em cena e todos os personagens criados pelo roteirista Raphael Montes estão ali para, de um jeito ou de outro, colaborar para que a história avance.

Há outro aspecto ao mesmo tempo importante e desafiador: no formato de streaming, a resposta do público não influencia no andamento da história, como acontece na TV aberta. Tudo já está escrito e filmado, e isso pode ser tanto uma bênção quanto uma maldição. Sem o termômetro do público, é impossível dosar mais ou menos os personagens e até mesmo repensar os rumos de uma trama a partir dos índices de audiência. Em suma, se a proposta de uma determinada novela pega, o sucesso, em tese, está garantido até o fim. Por outro lado, se não engrena, é impossível colocar mudar a rota. Felizmente, Beleza Fatal acerta a mão e mantém um fôlego admirável ao longo de suas dezenas de episódios, convicta de seu estilo e de sua proposta.
A minha relação conflituosa com a novela de estreia da Max reside na ideia de que ela, apesar dos inegáveis acertos, ainda carrega muitos vícios da TV aberta, mas falemos sobre isso daqui a pouco. De forma resumida, Beleza Fatal explora a linha tênue entre justiça e vingança, com foco no plano traçado por Sofia (Camila Queiroz) para derrubar Lola (Camila Pitanga), responsável por colocar sua mãe injustamente na prisão e, depois, mandar assassiná-la. Sofia vive com a família Paixão, também assombrada por uma tragédia pessoal: a morte da filha Rebeca (Fernanda Marques) pelas mãos de Rog (Marcelo Serrado) e Benjamin (Caio Blat) durante uma cirurgia plástica. E é claro: Lola não poderia deixar de estar envolvida com esse núcleo, liderado pela poderosa família Argento.
Metade do êxito de Beleza Fatal está na concepção dos personagens. Se Lola cumpre com folga o papel de uma vilã clássica, inescrupulosa e que adoramos odiar, o texto de Raphael Montes busca também conferir uma fragilidade imensa ao também vilão Benjamin ou, então, doçura e cumplicidade ao casal Elvira (Giovanna Antonelli) e Lino (Augusto Madeira). A escrita faz a trama partir de dilemas já consagrados — no caso, a eterna (e nada sutil) luta entre o bem e o mal — coexistir com perspectivas contemporâneas, entre elas, a naturalidade com que são discutidas questões sobre sexualidade identidade e sexualidade de gênero, seja com personagens abordados causas mais, digamos, panfletárias, ou com outros que se apresentam bissexuais sem que isso seja uma questão para os outros.
Muito do envolvimento despertado pelos personagens se deve à ótima escalação do elenco principal. Enquanto Camila Pitanga se diverte horrores na composição de Lola (e Beleza Fatal não poupa esforços para torná-la uma personagem marcante com bordões, desfile de figurinos e todo tipo de maldade), Caio Blat acerta em cheio na inegável mediocridade de seu Benjamin, um quase-homem com grandes aspirações, mas sem nenuma vocação para um dia minimamente alcançá-las. Outro que se diverte é Marcelo Serrado, muito feliz na caricatura das toscas facetas de um personagem detestável, bem como Giovanna Antonelli e Augusto Madeira, que esbanjam química e carisma como um casal humilde, apaixonado e pelo qual é fácil torcer.

Ainda assim, meu grande destaque vai para uma coadjuvante: Júlia Stockler como Gisela. Ela dá humanidade, camada e complexidade a uma personagem suscetível a um vitimismo piegas e sem muito alcance dramático. Sua jornada de autoconhecimento e de luta contra um relacionamento grotesco de tão abusivo é das mais bonitas da novela, tornando fácil a missão de solidarizarmos com uma personagem que, desde sempre sabemos, não merece passar por tamanho sofrimento pelas mãos do marido e de uma família a qual claramente não pertence. Stockler trata com delicadeza as fraquezas de uma mulher inerte diante do que lhe cerca e a gradativa força que ela adquire conforme abre os olhos para a realidade.
Não compartilho do mesmo entusiasmo pelo encadeamento da dramaturgia, cuja embalagem pop e camp se traduz melhor na direção geral de Maria de Médicis, profissional com vasta trajetória televisiva desde o início dos 2000, tendo já dirigido títulos como as minisséries JK e Queridos Amigos e novelas como Paraíso Tropical e Cheias de Charme. Em termos de roteiro, Beleza Fatal exige desprendimento integral da realidade por parte do espectador. Sobram conveniências em todas as storylines, que, caso fossem submetidas ao filtro do bom senso, jamais passariam da primeira leva de episódios. E aí mora a minha relação conflituosa com a novela: ela segue presa a saídas fáceis, exageros e suspensões de crença que, em grande parte, minaram a credibilidade do formato na TV aberta em anos recentes.
O formato condensado de episódios — Beleza Fatal se resolve em 40, contra as muitas vezes tradicionais centenas do gênero — ameniza o problema porque o investimento de tempo de quem assiste acaba sendo menor, porém, um comprometimento maior com a lógica cairia bem. O policial que não resolve absolutamente nada vivido por Enzo Romani é o menor dos problemas: do início ao fim, há um infinito entra e sai da delegacia e da prisão, como se as pessoas estivessem lá a passeio, advogados e investigadores mudando de lado conforme necessidade da trama para surpreender, incriminações repletas de furos e uma facilidade tremenda na execução de qualquer plano, sejam eles invasões a bancos, hackeamento de câmeras ou “simples” assassinatos. Se a consequência existe apenas diante de eventuais vontades do roteiro, como é possível levar a sério os perigos e as ameaças da história?

Há parte do público que celebra a “inspiração” e a “referência”, mas Beleza Fatal não é exatamente original ao fazer uma colagem de outros formatos e conflitos bem sucedidos na TV e no cinema. São um tanto excessivas as semelhanças com a premissa de Avenida Brasil, por exemplo, que ganhou o Brasil ao mostrar a história de, vejam só, a história de uma jovem que, ao longo de uma vida, traça um plano de vingança contra quem destruiu sua infância. Lá pelas tantas, Beleza Fatal também se move à la Parasita, o Oscarizado drama do sul-coreano Bong Joon-Ho sobre uma família pobre infiltrada no dia a dia de uma família rica. E o que dizer dos inegáveis toques de Succession na construção de Benjamin, o primogênito errático, fraco e mimado que tenta a todo custo conquistar a aprovação do pai e provar que merece estar na linha sucessória dos negócios da família?
O último capítulo, exibido de forma isolada pela Max, ao contrário dos outros, liberados a cada semana em blocos de cinco pelo streaming, colocou no liquidificador outros elementos de natureza novelesca, a exemplo do clássico “quem matou?”. Casamentos, julgamentos e viagens de última hora para o exterior também não faltaram. No entanto, Beleza Fatal acabou menos pulsante do que o esperado e amarrou às pressas o grande ponto de inflexão da novela: o de como a mocinha Sofia acabou embebedada pela vingança e se enraizou na mulher que sempre desejou destruir. Ótima provocação, inclusive bem defendida pela interpretação de Camila Queiroz. Já a execução… Nem tanto.
Somando acertos e fragilidades, a primeira novela da Max termina, sim, no saldo positivo — e o melhor de tudo: com o aval do público. Não chega a ser o novelão que o Brasil estava precisando como se chegou a anunciar pelas mídias sociais porque, apesar de conseguir perfilar bem o consumidor dos dias de hoje, ainda não dá um salto em termos de dramaturgia, preservando, repito, muitos vícios da TV aberta recente, tão ávida a priorizar a atenção em termos de números de audiência e não necessariamente em fidelização do público através de uma robustez dramática. Para uma estreia ambiciosa, no entanto, a Max sai ganhando — e, diante do sucesso, não faltará tema de casa e trabalho aos envolvidos.
Rapidamente: “O Auto da Compadecida 2”, “Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra”, “Jurado Nº 2” e “Lee”

O AUTO DA COMPADECIDA 2 (idem, 2024, de Guel Arraes e Flávia Lacerda): Na atrasada esteira em que o cinema brasileiro entrou de fazer continuações de produções célebres da sua filmografia, O Auto da Compadecida 2 é outro caso frequente de sequências que, nem de longe, conseguem fazer um raio cair duas vezes no mesmo lugar. Minha primeira grande decepção foi constatar que o filme abandona as locações paraibanas do original para ser rodado inteiramente em estúdio. Além de conferir uma estética muito superficial ao resultado, a opção apequena a mitologia em torno O Auto da Compadecida como um todo, seja ela a audiovisual ou a do espírito de Ariano Suassuna. Por sinal, as palavras do autor fazem falta. O que temos agora é a dupla Guel Arraes e João Falcão (com colaboração de Jorge Furtado e Adriana Falcão) criando algo original, em tom de reverência à obra do nordestino. Ainda que o esforço seja nobre, a continuação praticamente não avança em ideias e se limita à tentativa de recriar tipos e situações. Entretanto, Suassuna é Suassuna: único — e, portanto, impossível de ser emulado. Como João Grilo e Chicó, Matheus Nachtergaele e Selton Mello conseguem evocar a aura da produção anterior, que, no frigir dos ovos, parece revisitada como um especial de final de ano feito no Projac para exibição na TV, com, aliás, direito a merchandinsing do Chopp Brahma e tudo.
COMO GANHAR MILHÕES ANTES QUE A AVÓ MORRA (Lahn Mah, 2024, de Pat Boonnitipat): Quase caí para trás quando descobri que Usa Semkhum, matriarca-título de Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra, nunca atuou e é apenas uma dona-de-casa de 78 anos em seu primeiro papel. Essa tocante produção tailandesa conta a história de um jovem que vê a oportunidade de conquistar a preferência da avó doente e, assim, ficar no topo do testamento a ser deixado por ela. Cômico, gracioso e emocionante na mesma medida, o longa examina os diferentes prismas dos laços familiares e como a construção do afeto (ou a falta dela) se dá ao longo de uma vida. O diretor Pat Boonnitipat também faz sua estreia aqui – antes, ele havia dirigido apenas alguns episódios para três séries na Tailândia — e acerta especialmente no tratamento do (melo)drama dos personagens. Não deixa de ser uma tarefa complexa tanto porque a história poderia cair em lágrimas baratas quanto porque seria fácil ver o roteiro, escrito por Boonnitipat com Thodsapon Thiptinnakorn, destrinchando uma série de lições de moral. Em suma, Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra é um filme simples, de poucas ambições, mas genuíno em todo o seu DNA, o que torna certeiras as investidas diretas do filme para emocionar a plateia. Usa Semkhum brilha como a avó, transmitindo a graça, a delicadeza e as pequenas sabedorias de uma mulher nunca tratada de modo condescendente pelo texto. Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra se conectou tanto com o público que se tornou um verdadeiro hit nas bilheterias tailandesas, a ponto de conquistar o título de filme mais visto do ano no país. Aclamação merecida para uma obra irresistível e de grandes emoções.
JURADO Nº 2 (Juror #2, 2024, de Clint Eastwood): Aos 94 anos, Clint Eastwood pode muito bem ser o último cineasta veterano capaz de trabalhar uma narrativa clássica com vigor e rigor, oferecendo insights sobre temas importantes que apenas a experiência é capaz de produzir. Nem sempre Eastwood acerta — filmes como Sully, Sniper Americano, J. Edgar e Além da Vida, para citar alguns dos mais recentes, são medianos para baixo —, mas Jurado Nº 2, lançado diretamente em streaming aqui no Brasil e em circuito limitadíssimo nos Estados Unidos, mostra como ele segue perspicaz na escolha dos roteiros que deseja filmar. Dessa vez, seu interesse recai sobre a ética, a moralidade e a justiça, refletidas a partir de um ângulo instigante: o de quem somos quando ninguém está olhando ou percebendo. Para tanto, Jurado Nº 2 se vale da narrativa de tribunal, escrita, surpreendentemente, por Jonathan A. Abrams, um estreante. Eastwood não se preocupa em inventar a roda, mas, sim, em conduzir com maturidade uma trama cujos caminhos são difíceis de prever e que, a todo momento, colocam em xeque a crença de seus personagens, seja a do protagonista vivido por Nicholas Hoult ou a de coadjuvantes-chave, como a promotora de Toni Collette. O longa resiste a todas as tentações de sensacionalizar os temas em discussão, suprimindo o uso de qualquer ferramenta que possa interferir no posicionamento do espectador — a trilha sonora, por exemplo, é usada muito discretamente, bem como a exploração de detalhes envolvendo os bastidores de trabalho da acusação e da defesa. Com elegância, o conjunto de escolhas culmina em um desfecho maduro, sem discursos prontos e que convoca quem está assistindo a tirar suas próprias conclusões.
LEE (idem, 2024, de Ellen Kuras): Kate Winslet se jogou de corpo e alma em Lee, cinebiografia da fotojornalista de guerra Lee Miller, que, entre diversos cliques históricos, chegou a fazer um registro dentro da banheira de ninguém menos que Adolf Hitler! Sua atuação atrás das câmeras como produtora é um atestado: Winslet chegou a pagar semanas de trabalho da equipe com dinheiro do próprio bolso. Acontece que boas intenções não chegam a lugar algum se a direção não está à altura. Indicada ao Oscar de melhor documentário em 2009 com The Betrayal, Ellen Kuras fez uma prolífera carreira na TV após esse reconhecimento (Ozark, The Umbrella Academy e Inventing Anna estão entre alguns de seus trabalhos), e só agora volta a dirigir um longa-metragem, com resultados decepcionantes. Se o roteiro escrito a seis mãos por Liz Hannah, John Collee e Marion Hume abarca uma série de temas impactantes, como a violência contra mulheres, o pioneirismo de Miller no fotojornalismo e os próprios horrores inerentes à Segunda Guerra Mundial, Kuras, inexplicavelmente, não consegue traduzir a urgência ou sequer a emoção de cada um deles em imagens. Lee é um filme esvaziado e plano, em que o envolvimento com personagens e situações inexiste. A protagonista, uma figura deveras interessante, está limitada às formalidades desse tipo de filme — ou não é mais do que batido o formato em que alguém, já envelhecido, dá entrevista contando sobre a sua vida enquanto o filme ilustra a narrativa com idas e vindas no tempo? No entanto, talvez esse seja o menor dos problemas para um longa que insiste em desperdiçar as potencialidades da história de uma mulher cuja trajetória oferece, por si só, todas as cartas para um excelente relato.
“O Aprendiz” é recorte muito bem calibrado de como Donald Trump moldou sua maneira de agir no mundo
Admit nothing, deny everything.

Direção: Ali Abbasi
Roteiro: Gabriel Sherman
Elenco: Sebastian Stan, Jeremy Strong, Maria Bakalova, Martin Donovan, Catherine McNally, Charlie Carrick, Ben Sullivan, Mark Rendall, Joe Pingue, Ron Lea, Edie Inksetter, Matt Baram, Moni Ogunsuyi
The Apprentice, Canadá/Dinamarca/Irlanda, 2024, Drama, 122 minutos
Sinopse: O jovem Donald Trump (Sebastian Stan), ansioso para fazer seu nome como o ambicioso segundo filho de uma família rica na Nova York dos anos 1970, cai sob o feitiço do implacável advogado Roy Cohn (Jeremy Strong).

Donald Trump (Sebastian Stan) se orgulha de, em certa medida, ter domado Ivana (Maria Bakalova), sua esposa que, durante muito tempo, antes do matrimônio, resistiu às insistentes investidas do hoje ex-presidente dos Estados Unidos. Ainda que tenha preservado boa parte de sua forte personalidade após o matrimônio, ela acaba se tornando, como tudo na vida do empresário, uma mera conquista. “Ao menos consegui que ela colocasse silicone”, diz ele, quando perguntado sobre sua relação com Ivana. Silicone esse que, tempos depois, em outra cena, ele desprezaria, dizendo que não sente mais atração pela esposa, inclusive por seus “seios de plástico”.
A relação específica entre os dois é a perfeita representação de como Trump encara o mundo: tudo e qualquer coisa são apenas uma conquista, um jogo, uma queda de braço. E O Aprendiz, do diretor iraniano Ali Abbasi, incorpora sua perspectiva torpe e egocêntrica diante do mundo para narrar a sua ascensão no mercado imobiliário de Nova York em meados dos anos 1970, começando pela construção da ambiciosa Trump Tower até os vários cassinos inaugurados por ele após uma série de sucessivas conquistas. Não se trata de um longa sobre o corrompimento de um iniciante ou da tentativa de humanização de um homem conhecido por seus absurdos, mas pura e simplesmente de imaginar a vida de Trump a partir da sua própria maneira de ver as coisas.
É importante ressaltar isso porque ao menos metade de O Aprendiz, assim como o seu próprio título, reside no período em que o personagem se vê às voltas com Roy Cohn (Jeremy Strong), polêmico advogado que apadrinhou Trump e lhe mostrou todos os caminhos vis e escusos para se vencer na vida. O jovem protagonista aprende com Cohn, entre outras coisas, que nunca se deve admitir derrota e que parte da vitória está no ato de intimidar e ameaçar, sem se importar com que os outros pensam. Ajustados ou não para fins dramáticos, conforme os letreiros iniciais anunciam, todos os momentos são fidelíssimos a Trump como viemos a conhecê-lo na vida pública.
Sua essência está inteirinha ali, e não é difícil imaginar que ele realmente teria certas reações na vida privada, como quando, discutindo com Ivana, ele perde por completo o controle ao ouvir da esposa que seus cabelos estão caindo. O Aprendiz mostra que, para Trump, tudo é sobre Trump — seu nome está no ambicioso hotel a ser construído ou, então, nas abotoaduras de diamantes presenteadas a Roy Cohn — e que nunca há palavra mais importante que sua, inclusive diante de decisões médicas. Trata-se de uma realidade alternativa, onde, para ele, a verdade se torna flexível. É uma escalada que o filme delineia com habilidade, tornando perfeitamente compreensível o engrandecimento do aprendiz para cima de Cohn, criador que acaba engolido por sua própria criação.
O roteiro de Gabriel Sherman cerca o personagem de pessoas que testemunham essa transformação e, em situações mais críticas, contrapõem-se ao seu comportamento, o que é importante para que O Aprendiz não perca de vista os desvios de um homem desde cedo tomado pelo ego e pela ideia de que não existem leis, mas sim negociações para qualquer assunto ou problema. Mesmo a difícil relação com o pai não cai em estereótipos, pois Trump jamais sucumbe ou se vitimiza diante da figura do pai — pelo contrário, quase faz coisas como se quisesse dar um troco em seu progenitor e mostrar como suas escolhas são melhores que a dele.
Abbasi compõe uma estética eficiente para emoldurar O Aprendiz. Além da atmosfera setentista e granulada, a câmera captura tudo com um tom documental, como se estivesse ali de forma intrusiva, lançando luz sobre reações que não veríamos em um registro tradicional, bem ao estilo do seriado Sucession. Isso é prato cheio, claro, para as performances. Na pele de Trump, Sebastian Stan alcança um equilíbrio raro, emulando tiques e trejeitos (vale reparar nos movimentos da boca, iguais ao do biografado) sem deixar o mimetismo se tornar uma muleta de interpretação. Pelo contrário: sua versão do ex-presidente é crível e instigante. Tão bom quanto é o trabalho de Jeremy Strong como Roy Cohn, que cria uma figura incômoda em diversas frentes, da índole predadora ao desmoronamento físico e emocional (e a cena de seu último aniversário é uma das melhores do filme).
Na sequência final, encontramos o protagonista concedendo um depoimento ao jornalista que está prestes a escrever sua biografia. Trump, por estar pagando a realização do projeto, escolhe o que omitir ou priorizar. Para tanto, destila posicionamentos, um deles, curiosamente, sendo o de que governar é para perdedores e de que, mesmo amando negociar, jamais entraria na política. Entre as contradições e as ambições expostas ali, O Aprendiz termina com esse homem em pé, do alto do seu escritório envidraçado, olhando para uma bandeira dos Estados Unidos no horizonte. Não há mais nada a ser contado — sabemos muito bem, a partir dali, mais do que o futuro reservava à Trump. Sabemos, acima de tudo, o que o mundo, dividido, acompanharia com doses esquizofrênicas de horror ou idolatria.
Destes filmes não se leva nada: “Silvio” e “Maníaco do Parque” são duas das piores experiências do ano
É triste afirmar, mas dois dos piores filmes de 2024 são oriundos do cinema brasileiro. Silvio, de Marcelo Antunez, e Maníaco do Parque, de Maurício Eça, não apenas fazem má dramatização de personagens e circunstâncias — na verdade, ambos já começam errando na própria concepção de ideias e nos pontos de vista adotados para suas histórias. Curiosamente, também são obras frouxas — para se dizer o mínimo — na parte técnica, com menção honrosa para Silvio, que nem de longe parece ter custado quase sete milhões de reais para ser produzido. Mas vou me debruçar sobre os dois longas para dar uma dimensão maior do acúmulo de problemas.

“Silvio”, de Marcelo Antunez
Começo pela cinebiografia de Silvio Santos por questão cronológica. O filme chegou aos cinemas brasileiros no último dia 12 de setembro, pouco menos de um mês após a morte do comunicador, reconhecidamente o mais célebre e reverenciado a já ter passado pela TV do nosso país. Contudo, nem mesmo a comoção nacional com a despedida de Silvio despertou interesse pelo filme, que fez sua estreia na oitava posição semanal das bilheterias brasileiras, vendendo míseros 51,3 mil ingressos. A tragédia era anunciada: não só o próprio SBT rejeitou qualquer chancela para o projeto (o nome da emissora sequer é citado ou ilustrado no longa) como tudo já havia virado piada logo no lançamento do primeiro trailer.
Nem bem Silvio começa e tudo vem a se confirmar, da incompreensível escalação de Rodrigo Faro para interpretar Silvio Santos ao paupérrimo trabalho de maquiagem. Ainda assim, a mais grave das falhas é anterior, no caso, o roteiro escrito pela dupla Anderson Almeida e Newton Cannito, que adotou como ponto de partida o famoso sequestro do apresentador em 30 de agosto de 2001. É sob a ameaça do revólver do sequestrador que o protagonista, então, relembra momentos cruciais da sua vida, o que, por si só, já é de péssimo gosto — afinal, como alguém pode ter cogitado, entre tantos momentos emblemáticos da carreira de Silvio, que esse seria o recorte mais interessante para reverenciar as lembranças do comunicador?
Estruturalmente, a escolha também é problemática, pois falta verossimilhança às passagens em que Silvio Santos rememora sua vida. Elas são introduzidas por meio de discursos prontos, quando o protagonista, agindo como se fosse um coach, tenta colocar algum juízo na cabeça do sequestrador ou se aproxima dele buscando o ser humano por trás daquela situação crítica. Tudo é motivo para Silvio interromper a conversa e contar histórias em tom autoindulgente, com flashbacks que não revelam nada que já não tenhamos visto em incontáveis reportagens e especiais sobre o apresentador. Além disso, as voltas no tempo são pueris, empenhadas demais em edificar qualidades e acentuar problemas para trazer complexidade a um protagonista unidimensional mesmo.
Nada se vê do processo criativo de Silvio Santos como gestor de um veículo de comunicação ou de sua verdadeira influência como um grande nome da TV — os flashbacks de Silvio em frente às câmeras nada mais são do que passagens rapidíssimas com Rodrigo Faro jogando sozinho aviõezinhos de dinheiro para o nada ou revelando a resposta certa de alguma charada a ser desvendada pelos telespectadores. É curioso como o longa deixa de lado as proezas de Silvio como apresentador para, no final, valer-se justamente dessas conquistas nos créditos finais, quando menciona o ano em que, pela primeira vez, o SBT ultrapassou a Rede Globo no ibope com os programas Casa dos Artistas e Show do Milhão.
O caos fica ainda mais tumultuado quando Silvio se propõe a ser um filme policial. Paralelo às lições de vida que o personagem tenta entubar em seu sequestrador, vemos toda a mobilização da polícia e das autoridades de São Paulo para resolver um problema de dimensão nacional. Do sniper que deseja a todo custo abater o homem que tem Silvio Santos como refém ao próprio governador em conflito sobre até que ponto se envolver na operação, vemos todas as engrenagens se movimentando para criar uma atmosfera de tensão, mas falta urgência, verdade e verossimilhança. Principalmente porque, podem ter certeza, o que menos quero ver em um filme sobre Silvio Santos é dramatização policial, seja em diálogos ou em cena mal coreografada de perseguição e tiroteio.
E há tudo aquilo que fez Silvio virar uma piada desde o seu primeiro trailer. Poucos mistérios são tão intrigantes quanto a escalação de Rodrigo Faro para interpretar o eterno Senor Abravanel. Faro não só nunca foi referência alguma em atuação (e, para um papel dessa magnitude, o mínimo que poderíamos esperar era alguém à altura do desafio) como já estava afastado do ofício há mais de 15 anos, o que está evidente em cena, uma vez que ele não consegue encontrar o equilíbrio entre reproduzir os trejeitos do apresentador e se esquivar de muletas óbvias para construir o papel. Sua personificação de Silvio Santos é inócua, apática e com problemas potencializados pela maquiagem amadora e pouco elaborada, para não nos prolongarmos mais no tópico.
Originalmente intitulado Silvio Santos – O Sequestro, o longa já estava pronto desde 2019 e foi várias vezes adiado, incluindo um longo período de anos sem qualquer novidade sobre sua distribuição. O silêncio se quebrou em abril deste ano, com o lançamento do trailer. É claro que há muitos fatores que definem o adiamento de um filme, ainda mais quando vivemos em um país com problemas crônicos neste no mercado e em um mundo que ficou de pernas para o ar com a pandemia da Covid-19. Entretanto, neste caso, gosto de acreditar que, secretamente, os envolvidos nunca souberam mesmo o que fazer com o filme, como se estivessem envergonhados desde o primeiro momento em conferiram o resultado final. Ainda bem que Silvio Santos não viveu para ver.

“Maníaco do Parque”, de Mauricio Eça
Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, foi condenado, no início dos anos 2000, a mais de 280 anos de prisão pelo assassinato de 11 mulheres em São Paulo, ainda que tenha respondido judicialmente por apenas sete. Deve ser solto em agosto de 2028, pois, à época, apesar da sentença, o tempo máximo de cumprimento de pena no Brasil é de 30 anos. A lembrança dos horrores cometidos por ele volta à tona agora com Maníaco do Parque, uma produção original do Prime Video lançada no dia 18 de outubro e que, assim como Silvio, comete todos os deslizes possíveis, dessa vez com o agravante de ter uma história cercada por temas delicados em inúmeras frentes.
A direção de Maníaco do Parque fica a cargo de Mauricio Eça, um cineasta cujas credenciais não inspiram confiança — são seus os três filmes fraquíssimos e questionáveis sobre Suzane Von Richtofen, também originais Prime Video. Eça parece querer fazer carreira contando a história de assassinos brasileiros, ideia interessante caso a concepção de seus projetos não fossem tão amadoras ou rasteiras em cada leitura proposta. Se os longas sobre Richtofen já eram duvidosos na forma como radiografavam as camadas em torno de um célebre crime, Maníaco do Parque desce vários degraus e chega ao patamar do mau gosto.
O único aspecto nobre do filme é o desejo de não voltar a dar protagonismo ao personagem-título, perspectiva que vem senddo discutida nos últimos anos com o lançamento de produções como a minissérie Dahmer: Um Canibal Americano, realizada por Ryan Murphy para a Netflix. A decisão pode ser acertada, mas o roteiro escrito por L.G. Bayão adota uma manobra que funciona melhor na teoria do que na prática: a de ter como protagonista uma fictícia responsável por concentrar diversas discussões sociais, ideológicas e éticas envolvendo os crimes, a investigação e as abordagens envolvendo os crimes cometidos pelo Maníaco do Parque.
Acontece que a execução é medíocre. Pior: dá a sensação de que foi pensada para, antes do que qualquer coisa, lacrar em suas afirmações sobre feminicídio, sensacionalismo da imprensa e inércia da polícia. Falta o básico de dramaturgia no texto de Bayão, construído em cima de todas as caricaturas imagináveis. Constrange como Maníaco do Parque olha para os assassinatos a partir da ótica jornalística, conduzida pela personagem Helena (Giovanna Grigio), uma profissional fictícia do ramo e que, sem naturalidade nenhuma, encapsula dilemas com discursos prontos.
Tudo em volta da jornalista é puro estereótipo. Há, por exemplo,o colega mais experiente e egocêntrico vivido por Bruno Garcia que não aceita ser ofuscado pela nova colega. Ambos respondem a um chefe de redação (Marco Pigossi) que adora notícias “fortes” e polêmicas, visando o lucro do jornal. Também existe a irmã psiquiatra (Mel Lisboa) que surge para explicar com explícito didatismo, palavra por palavra, como funciona a mente de um psicopata, da neurofisiologia até o padrão dos comportamentos em sociedade. Para dar um toque pessoal, Bayão, por fim, coloca uma questão mal resolvida da protagonista com o pai recém-falecido, algo dispensável em um primeiríssimo tratamento de roteiro.
Além dessa essência afogada em traços televisivos (no pior sentido dessa comparação) e da péssima representação de dramas estereotipados, o roteiro acaba se afundando mesmo é na mentira. Uma coisa é você adotar liberdades criativas preservando a essência dos fatos, outra é fazer o que bem entender com uma realidade posta. Maníaco do Parque coloca nas mãos de Helena, uma personagem fictícia todo o desenrolar dos fatos e da investigação, como se ninguém mais tivesse cumprido papel algum na captura do serial killer. E, em nome da “atualização”, o filme dá à Helena a chance de estar frente a frente com o Maníaco, chamando-o de lixo e outras tantas coisas para deixar as intenções do projeto bem explícitas. Nada disso existiu, muito menos da maneira representada — e, ao meu ver, tanta imaginação acaba sendo, sim, sinônimo de mentira.
Criticando um sensacionalismo que ele próprio pratica, Maníaco do Parque se revela risível tanto no conteúdo quanto na forma. Caso pudéssemos, em uma realidade alternativa, relevar o roteiro e sua série de furos e fatos mal explicados, não haveria atenuante algum na imaginação de Maurício Eça como diretor. O longa inteiro é acima do tom, caricato, clichê e histriônico. A trilha sonora, seja a instrumental ou o compilado de canções, é um caso à parte: incessante, mal inserida e invasiva. O conjunto final se precariza a ponto de inclusive tolher um ótimo ator como Silvero Pereira, reduzido a maquiagem e a um personagem reativo, sem vida própria, muito menos bem contextualizado. Nessa atrasada onda de true crimes que tem tomado conta do audiovisual brasileiro, é bem provável que Maníaco do Parque seja o maior dos constrangimentos.

