“Tár” não corresponde à expectativa de 16 anos por um novo filme de Todd Field
It’s always the question that involves the listener. It’s never the answer.
Direção: Todd Field
Roteiro: Todd Field
Elenco: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Adam Gopnik, Sylvia Flote, Sydney Lemmon, Mark Strong, Nicolas Hopchet, Kitty Watson, Zethphan D. Smith-Gneist
EUA, 2022, Drama, 158 minutos
Sinopse: Tendo alcançado uma carreira invejável com a qual poucos poderiam sonhar, a renomada maestrina e compositora Lydia Tár (Cate Blanchett), a primeira diretora musical feminina da Filarmônica de Berlim, está no topo do mundo. Como regente, Lydia não apenas orquestra, mas também manipula. Como uma pioneira, a virtuosa apaixonada lidera o caminho na indústria da música clássica dominada por homens. Além disso, Lydia se prepara para o lançamento de suas memórias enquanto concilia trabalho e família. Ela também está disposta a enfrentar um de seus desafios mais significativos: uma gravação ao vivo da Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler. No entanto, forças que nem mesmo ela pode controlar lentamente destroem a elaborada fachada de Lydia, revelando segredos sujos e a natureza corrosiva do poder. E se a vida derrubar Lydia de seu pedestal? (Adoro Cinema)
Desde que começou sua carreira em longas-metragens com o ótimo Entre Quatro Paredes (2001), o diretor Todd Field se provou um exímio observador do cotidiano, começando por esse denso drama que examina o luto e as relações familiares. Logo em seguida, ele lançou olhar sobre as dinâmicas (extra)conjugais no afiado Pecados Íntimos (2006), baseado na obra de Tom Perrotta. Tár, que chega aos cinemas agora em 2023, encerrando um hiato de 16 anos na carreira de Field, não é exatamente um filme-irmão de Entre Quatro Paredes e Pecados Íntimos. Para falar bem a verdade, tudo é mais ambicioso, da duração de quase 2h40 ao universo imaginado para a consagrada (e fictícia) maestrina Lydia Tár (Cate Blanchett), que se enreda em uma série de conflitos envolvendo poder e prestígio no plano profissional e pessoal.
Inevitavelmente, tanto tempo de espera entre um filme e outro gera expectativa, algo que nem sempre trabalha a favor de uma obra. E, talvez, esse período de 16 anos sem um trabalho do diretor tenha mesmo minado a minha experiência com Tár, que vem colecionando admiradores por onde passa, mas que ficou distante de me causar algum envolvimento. À parte expectativas, e ainda na questão do tempo, o filme chega ao público um tanto datado no que se refere às discussões propostas pelo roteiro. Há pouca novidade no que Field, também autor do roteiro — seu primeiro original na carreira de longas-metragens —, tem a dizer, por exemplo, sobre a cultura do cancelamento e o efeito que ela causa no íntimo de figuras públicas e consagradas.
Minha frustração com Tár reside basicamente em ver que o cineasta se saiu melhor ao abarcar vários personagens de uma vez só em seus filmes anteriores do que nesse estudo de uma única figura. Mesmo depois de quase três horas junto à Lydia Tár, ficamos sem saber de onde ela vem, as razões que lhe tornaram uma mulher praticamente imune a sentimentos e até mesmo sua personalidade musical para além da idolatria pelo compositor Gustav Mahler. Conceber Lydia como uma famosa vencedora do EGOT (sigla para quem já foi premiado com Emmy, Grammy, Oscar e Tony) também não diz o suficiente sobre sua verve artística. Não é o caso de dar resposta a tudo (aliás, no cinema como um todo, nunca é), e sim o de ao menos o de provocar o espectador a construir a sua própria percepção acerca da protagonista a partir de diferentes camadas e provocações.
Um dos melhores momentos de Tár — e que, ele sim, diz muito sobre quem a personagem é com os outros e com ela mesma — é aquele encenado em uma das aulas ministradas pela personagem. Trata-se tanto de um sólido e interessante vislumbre das firmezas e contrariedades de Lydia quanto de um excepcional trabalho de mise-en-scène, com Cate Blanchett fisgando plenamente a atenção em um trabalho de grande sinergia com o filme em si. No entanto, dali em diante, tornam-se previsíveis as reverberações dessa interação específica e de todos os movimentos erráticos de uma protagonista que não enxerga ou, por pura soberba e por ser quem é, escolhe não enxergar a possibilidade de seus atos terem grandes consequências.
Se o roteiro é plano e exaustivo, a direção de Todd Field parece estar em dúvida quanto tratar a jornada da personagem como uma trágica derrocada ou como uma grande piada do destino. Essa falta de unidade, aliada ao fato do longa pouco se arriscar, confere sinais contrários especialmente ao terço final, quando acompanhamos a desintegração de Lydia em todos os espectros. Cate Blanchett, que conduziu de verdade a orquestra em todas as cenas, traduz a imponência, a vaidade e as aparências de Lydia com seu talento de sempre. O esforço em fazer a amarração de Tár se dá pelas mãos dela, que tem vivido uma fase excepcional há bons anos. Entretanto, Blanchett por si só não pode contornar problemas como o do desfecho, cuja intenção mira na ironia para acertar em representações até mesmo estereotipadas. Pode ser que eu não estivesse em um bom dia, que eu tenha deixado passar algo ou que simplesmente eu não tenha visto o mesmo filme que a esmagadora maioria, mas Tár ficou para mim como um relato que, ao contrário dos talentos musicais de sua maestrina, falha em encontrar seu próprio ritmo.
“Aftersun”, uma melancólica meditação sobre as lembranças que colecionamos e como elas acabam nos (re)definindo
I think it’s nice that we share the same sky.
Direção: Charlotte Wells
Roteiro: Charlotte Wells
Elenco: Frankie Corio, Paul Mescal, Celia Rowlson-Hall, Sally Messham, Ayse Parlak, Sophia Lamanova, Brooklyn Toulson, Spike Fearn, Kayleigh Coleman, Harry Perdios, Ruby Thompson, Ethan Smith, Onur Eksioglu, Cafer Karahan
Reino Unido/Estados Unidos, 2022, Drama, 102 minutos
Sinopse: Sophie reflete sobre a alegria e a melancolia das férias que ela tirou com seu pai 20 anos antes. Memórias reais e imaginárias preenchem as lacunas enquanto ela tenta reconciliar o pai que conheceu com o homem que desconhecia.
* Atenção! O texto abaixo contém spoilers envolvendo detalhes centrais do filme.
Nossas memórias não são termômetros tão confiáveis porque dependem de onde estamos agora e, principalmente, do sentido que passamos a atribuir às coisas quando tomamos alguma perspectiva. Talvez aquele relacionamento repleto de momentos felizes tenha suas lembranças distorcidas porque resultou em uma dolorosa separação. Um período difícil de anos anteriores de repente é visto de forma positiva na medida em que acabou proporcionando uma série de aprendizados. Ou, então, aquelas ensolaradas férias de infância ganham, com o passar dos anos, um ar pesado e triste, em função de tudo o que aprendemos com as dores trazidas pela vida adulta. A tônica de Aftersun, longa-metragem de estreia de Charlotte Wells, é justamente essa: abordar o tempo como ferramenta indispensável no processo de ressignificar sentimentos, percepções e vivências.
Tudo parte de uma perspectiva presente — a protagonista adulta está revisitando as gravações de um período de férias na Turquia com o pai —, mas Aftersun se situa no passado, convidando o espectador a preencher as lacunas do que está acontecendo, especialmente daquilo que uma pequena Sophie (Frankie Corio) ainda não enxerga em função da idade e só passará a entender quando se tornar adulta. Para tanto, a diretora se vale de uma narrativa cotidiana e sem grandes acontecimentos dramáticos. O que importa aqui é atmosfera. E que atmosfera! Desde os primeiros minutos percebemos o filme envolto em um certo incômodo que não condiz com os momentos supostamente felizes entre pai e filha. No final das contas, por que a alegria parece tão triste?
Wells nos torna íntimos dos personagens a partir das circunstâncias mais banais. Entre uma e outra situação, como um passeio de barco ou um banho de lama, ela revela, com muita discrição, detalhes munidos de discretos significados: os pais da protagonista são separados, Calum (Paul Mescal) se diz surpreso de ter conseguido completar 30 anos e os livros que ele leva para a viagem têm como tema a meditação. Dar pequenas pinceladas em detrimento da encenação de grandes dramas faz muito sentido para aquilo que Aftersun emula com maestria em atmosfera: o estado de depressão de Calum, que busca esconder sua condição para cumprir o esperado papel de um pai diante da filha durante em um período de férias.
Ainda que Sophie perceba mais coisas do que Calum imagina, ele, inevitavelmente, faz de tudo para manter as aparências, represando angústias e tristezas que, assim como a própria protagonista em sua versão adulta, jamais saberemos quais são. Essa barreira invisível entre os personagens não impede o roteiro de iluminar a relação dos dois. Há uma cumplicidade palpável ali, representada em cenas banalíssimas e, por isso mesmo, tão próximas da vida real. A delicadeza de Aftersun também se estende à jornada individual de Sophie, situada naquela fase da vida em que uma criança começa a se descolar dos pais para, aos poucos, começar a construir sozinha a sua identidade individual.
Parte da dor que a Sophie adulta sente vem dessa impossibilidade de ter ajudado seu pai. Não por vontade própria, e sim pelos limites da vida: sendo uma criança, ela jamais poderia imaginar ou compreender o que realmente estava se passando dentro do homem que lhe deu à vida e que, presume-se, ela viu pela última vez no corredor de um aeroporto ao final das férias. E, anterior a isso, talvez ainda mais cruel seja a ideia de nunca ter conhecido de verdade um pai que agora, sendo compreendido a partir de memórias ressignificadas, diz-lhe tanto sobre a vida e suas dificuldades. Tantas divagações são possíveis porque Aftersun nos inunda com algo cada vez mais em falta: empatia. É fácil fazer o exercício de se colocar tanto no lugar da protagonista quanto no de Calum, ambos interpretados com humanidade ímpar por Frankie Corio e Paul Mescal.
Nos minutos finais, a diretora sai um pouco do realismo com o intuito de entrelaçar passado e presente em uma das cenas mais bonitas do ano. Desafio alguém a não levá-la na memória. Falo da sequência ao som de Under Pressure, do Queen, capaz de sintetizar o universo inteiro do filme. A banda do saudoso Freddie Mercury que me perdoe, mas não conseguirei mais ouvir a canção do mesmo jeito, tamanha a emoção. Há de se tirar o chapéu para essa estreia de Charlotte Wells em longas-metragens, e fico feliz em ver que, até aqui, a produção tem sido reconhecida por público e crítica como merece. Que essa rara sensibilidade em conjugar imersão e emoção possa ser vista em outros trabalhos da diretora. E acho que vai, pois, se ela já começou assim, com um dos retratos mais verdadeiros sobre a depressão, mal posso esperar pelo que vem por aí.
Nem suspense, nem terror, “Até os Ossos” é experiência que causa estranhamento — e dos bons
Let’s be people.
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: David Kajganich, baseado no romance “Bones and All”, de Camille DeAngelis
Elenco: Taylor Russell, Timothée Chalamet, Mark Rylance, Michael Stuhlbarg, Chloë Sevigny, Kendle Coffey, André Holland, Ellie Parker, Madeleine Hall, Christine Dye, Sean Bridgers, Anna Cobb, David Gordon Green, Jake Horowitz, Jessica Harper
Bones and All, EUA/Itália, Drama, 130 minutos
Sinopse: O amor floresce entre uma jovem à margem da sociedade (Taylor Russell) e um vagabundo marginalizado (Timothée Chalamet) enquanto eles embarcam em uma odisseia de três mil milhas pelas estradas secundárias da América. No entanto, apesar de seus melhores esforços, todos os caminhos levam de volta a seus passados aterrorizantes e a uma posição final que determinará se o amor deles pode sobreviver às diferenças.
Não se engane: o diretor Luca Guadagnino (Me Chame Pelo Seu Nome, Um Mergulho no Passado) traz múltiplas visões e metáforas para a questão do canibalismo, mas, em momento algum, Até os Ossos pode ser rotulado como um filme de terror ou como uma produção ao estilo da minissérie Dahmer: Um Canibal Americano. Inclusive, mesmo nas partes em que poderia se entregar ao gore ou ao apelo gráfico, Guadagnino deixa a materialização do tema quase fora de quadro. Para ele, o ponto central são as angústias e questões existenciais de personagens que, por serem canibais, não encontram um lugar ao mundo, uma clara alusão à maneira com que a sociedade relega as minorias e os “diferentes”.
É importante entender a negligência com o canibalismo: mesmo depois de tantos anos, trata-se de um assunto raramente discutido. Pouco se sabe sobre a sua real origem e suas implicações psicológicas, assim como não existe na legislação uma lei específica que caracterize o canibalismo como crime (os casos já julgados foram, na verdade, enquadrados como homicídio ou destruição de cadáver). É um tabu que costuma despertar a curiosidade alheia — não à toa, a já citada Dahmer se tornou, em poucos dias, a segunda série mais assistida da história da Netflix —, mas que na prática, fica relegada a um certo limbo para o qual ninguém quer olhar.
Até os Ossos está interessado no terreno dessas indefinições, ao mesmo tempo em que toma cuidado para não ser um estudo sobre canibais, muito menos uma romantização. A partir da jornada de Maren (Taylor Russell), o filme nos coloca na pele de uma garota que há anos vive de cidade em cidade fugindo com o pai porque, sempre em determinado ponto, já não consegue controlar seus impulsos em público. Quando é abandonada até mesmo por seu progenitor, Maren, então, parte em busca da mãe que nunca conheceu e, ao longo do caminho, surpreende-se ao, pela primeira vez, encontrar outros como ela. Todos seres humanos subterrâneos, invisíveis e incapazes de viver dentro de qualquer normalidade.
Tanto Até os Ossos rejeita a romantização do canibalismo que a palavra em si sequer é mencionada — eles são “comedores” (eaters, em inglês), termo unanimemente usado por esses personagens em diferentes pontos dos Estados Unidos. A discussão verdadeira discussão se dá em torno de como lidar com ela na prática: enquanto Maren deseja encontrar uma maneira de se alimentar sem precisar cometer crimes, outros acabam matando por puro instinto, algo que a assombra do ponto de vista ético e emocional, mesmo quando uma dessas pessoas é Lee (Timothée Chalamet), um comedor forasteiro que terá papel crucial em sua jornada.
De todos os encontros pelo caminho, esse é, sem dúvida, o que marca a garota – e também o próprio Lee, que, lutando contra seus próprios demônios, aceita a ideia de cair na estrada para ajudar Maren na busca pela mãe. A partir daí, Até os Ossos passa a ser também um road movie, centrado no relacionamento entre esses dois indivíduos que se reconhecem no não-pertencimento e nas suas tragédias pessoais em comum. Se Maren é a “heroína” em busca de algum sentido, Lee é o jovem punk e autocentrado que aos poucos baixa a guarda quando se percebe aceito e compreendido. São dois desabrochares que Guadagnino trabalha com habilidade para acrescenta outro gênero à mistura: o coming of age.
Como um road movie, Até os Ossos aproveita bem os diferentes estados (físicos e emocionais) pelos quais os protagonistas passam. Para além das relações possíveis de serem estabelecidas com a vida real a partir da natureza dos personagens, a trama originada do romance homônimo de Camille DeAngelis ganha nuances com a fotografia muito discreta e eficiente de Arseni Khachaturan, que mescla o estado de espírito dos protagonistas com as cidades cruzadas pelos personagens, e com a trilha sonora assinada pelos sempre formidáveis Trent Reznor e Atticus Ross, em um trabalho de estilo bem diferente do que costumam apresentar no cinema. Outro ponto alto é a participação de figuras muito peculiares, como os personagens de Mark Rylance e Michael Stuhlbarg, que causam sensações das mais estranhas, perigosas e desconfortáveis.
Rylance e Stuhlbarg são importantes porque reacendem um certo senso de urgência presente na arrancada e que acaba amortecido quando nasce o romance central. A paixão entre Lee e Maren funciona porque Taylor Russell e Timothée Chalamet são ótimos atores, mas é inegável que, com ela, o filme se torna mais plano em termos de atmosfera. Se o canibalismo era ou não a melhor das metáforas para tudo o que Guadagnino quer abordar — a luta para simplesmente existir, a busca por um lar, o papel do autoconhecimento no movimento de amar outra pessoa, etc. — é outra discussão, principalmente porque ela vai do paladar de cada um diante de um tema tão complicado e polêmico. No meu caso, ainda que com algumas ressalvas, Até os Ossos causou estranhamento imediato… E dos bons.
Rapidamente: “45 do Segundo Tempo”, “Argentina, 1985”, “O Enfermeiro da Noite” e “Mais Que Amigos”

45 do Segundo Tempo é uma ode à amizade e traz uma das melhores atuações de Tony Ramos.
45 DO SEGUNDO TEMPO (idem, 2021, de Luiz Villaça): Saiu muito rápido de cartaz e não recebeu a devida atenção esse novo filme de Luiz Villaça que é uma afetuosa ode à amizade. No caso, a de três homens reconectados por circunstâncias da vida após muitos anos de afastamento. A consolidação desse reencontro, no entanto, não se dá de imediato e não é exatamente celebrativa. Ela acontece quando Pedro (Tony Ramos) anuncia seus planos de cometer suicídio, fazendo com que os amigos acabem revendo muitas questões do passado e do presente para que Pedro não cumpra com a intenção. No percurso, claro, todos reavaliarão as suas próprias vidas e as escolhas feitas pelo caminho. Como em todos os filmes de Luiz Villaça, 45 do Segundo Tempo aposta na riqueza das pequenas coisas da vida para emocionar e fazer rir, dando um tom melancólico a uma história que poderia resvalar no dramalhão. É muito generoso o olhar do longa sobre o passar do tempo, principalmente no que se refere à ideia de que nunca é tarde para recomeçar ou tentar recuperar quem desejávamos ser e não nos tornamos. Um tanto clichê, é verdade — e, às vezes, até pueril no humor, como na maior parte envolvendo o padre de Ary França —, mas de fácil identificação e com as reflexões sempre pertinentes sobre os laços humanos que Villaça já apresentou em outros trabalhos como De Onde Eu Te Vejo. A cereja do bolo é a maravilhosa performance de Tony Ramos, em um papel versátil e de camadas como há muito tempo ele não recebia.
ARGENTINA, 1985 (idem, de Santiago Mitre): Não é por acaso a brincadeira de que só existem filmes argentinos estrelados por Ricardo Darín. À parte o óbvio componente da carreira bastante prolífera trilhada por ele desde sempre, há a frequência com que o ator participa de projetos da curva, como já aconteceu nas parcerias com o cineasta Juan José Campanella em filmes como O Filho da Noiva e O Segredo dos Seus Olhos. Pois agora, dirigido por Santiago Mitre, Darín estrela Argentina, 1985, um excelente longa que segue a tradição do cinema argentino de olhar para os traumas passados da nação com um olhar crítico e bem posicionado. O foco é o julgamento dos crimes cometidos por membros do exército durante a ditatura militar, intercalando com bastidores do processo e diversos pontos pessoais dos personagens envolvidos. Não se trata, entretanto, de um mero filme de tribunal: o que interessa a Santiago Mitre é deixar de lado a previsível exposição dos horrores da ditadura para mostrar como ela, mesmo depois de encerrada, permanece entranhada na sociedade, ainda com muitos demônios por serem exorcizados. Argentina, 1985 leva a discussão política e social para o plano humano, a partir de uma série de personagens que, pela habilidade do roteiro e pelo ótimo elenco, tornam-se próximos do espectador. Em mais de 140 minutos, Mitre cadencia a trama sem perder a plateia em um punhado de nomes ou situações. Em suma, para além de bom cinema, o longa é um registro dos mais importantes para o povo argentino e uma amarga lembrança para nós, brasileiros, que nunca vimos a nossa ditadura e seus fantasmas serem devidamente enterrados.
O ENFERMEIRO DA NOITE (The Good Nurse, 2022, de Tobias Lindholm): Poderia ser o mero cartão de visita para uma entrada em Hollywood, mas o roteirista dinamarquês Tobias Lindholm (A Caça, Druk: Mais Uma Rodada) estreia na cadeira de direção com um filme que, mesmo sem a sua assinatura no roteiro, consegue se esquivar de obviedades e de fórmulas que hoje garantem o êxito de produções envolvendo crimes da vida real. O Enfermeiro da Noite é muito feliz, por exemplo, ao dispensar o ponto de vista de Charlie Cullen (Eddie Redmayne) para colocar a plateia no lugar de outra personagem, a enfermeira Amy Loughren (Jessica Chastain). Isso funciona porque, assim como ela, descobrimos gradativamente quem é Charlie de verdade, ao mesmo tempo em que, antes disso, também já fomos envolvidos por sua delicadeza e generosidade. Para quem não conhece o caso em detalhes — em linhas gerais, Cullen foi condenado pela morte de 29 pacientes, enquanto especialistas acreditam que esse número possa chegar a 400, tornando-o assassino em série mais prolífero dos Estados Unidos —, trata-se de uma decisão que funciona ainda mais, visto que O Enfermeiro da Noite deseja mostrar como pessoas do perfil de Cullen circulam entre nós, sem que pareçam estranhos ou remotamente suspeitos, tese bem reproduzida pela performance de Eddie Redmayne. Inexiste, portanto, toda a cartilha de dramatização da vida íntima ou pregressa do serial killer. Não é algo que funciona com todas as plateias, mas que confere ao filme de Tobias Lindholm uma atmosfera diferenciada em meio à frenética onda de true crimes dramatizados.
MAIS QUE AMIGOS (Bros, 2022, de Nicholas Stoller): Independentemente de, na matemática fria de uma análise, ser uma comédia romântica com desenvolvimento similar ao de incontáveis outras, Mais Que Amigos ganha novos contornos por simplesmente colocar dois homens no centro de uma história leve, afetiva e divertida. Existe uma importante questão de representatividade, mas também de um alcance raro, afinal, é talvez até pioneiro o fato de uma comédia romântica gay chegar a um circuito comercial com tanta abrangência. Aos que, assim como eu, descobriram sua sexualidade sem a oportunidade de vê-la na tela com humor e naturalidade, Mais Que Amigos pode bem ser um verdadeiro presente. O filme toca em questões fundamentais para o público gay, como a insegurança de ser quem se é e o quanto isso ecoa por toda uma vida, especialmente nas relações afetivas e na forma de encarar vários problemas inerentes à vida adulta. O roteiro assinado pelo diretor Nicholas Stoller e pelo protagonista Billy Eichner demonstra habilidade ao percorrer os rumos já conhecidos do formato tradicional de uma comédia romântica e ao personalizá-la para seu público-alvo. É fácil torcer por dois personagens que, distintos em tudo o que se pode imaginar, encontram, somente depois de adultos, as vivências e as descobertas que heterossexuais têm à disposição desde muito cedo. Minha única observação menos elogiosa ao resultado fica com a escalação de Billy Eichner, que acaba sendo apenas… Billy Eichner. Muito provavelmente, seu personagem teria outras camadas a ganhar caso interpretado um ator mais imerso em um personagem e menos em uma persona já tão conhecida.
James Gray volta à infância com “Armageddon Time”, seu filme mais singelo até aqui
Do you think that’s smart?
Direção: James Gray
Roteiro: James Gray
Elenco: Banks Repeta, Anne Hathaway, Jeremy Strong, Anthony Hopkins, Jaylin Webb, Andrew Polk, Ryan Sell, Tovah Feldshuh, Marcia Haufrecht, Teddy Coluca, Jessica Chastain, Richard Bekins, Dane West, John Diehl, Domenick Lombardozzi
EUA/Brasil, 2022, Drama, 114 minutos
Sinopse: Na Nova York dos anos 1980, antes de Ronald Reagan ser eleito presidente dos Estados Unidos, uma família vive no Queens e precisa passar por um processo profundamente pessoal. Traçando uma trajetória de amadurecimento, o longa aborda a força da família e a busca que atravessa gerações pelo “sonho americano”. (Adoro Cinema)
Não é nenhuma novidade a meditação de cineastas norte-americanos sobre as suas infâncias em formato de filme autobiográfico. O próprio Steven Spielberg, após décadas de carreira, lançará em breve The Fabelmans, mostrando que esse é um tipo de projeto atemporal, sem hora ou momento exato para ser tirado do papel. Outro nome que se junta à estatística é o de James Gray, que chega agora aos cinemas com o seu Armageddon Time, antes visto na competição oficial do Festival de Cannes deste ano, e que tem como pano de fundo a Nova York dos anos 1980 e a clássica busca pelo chamado “sonho americano”.
James Gray sempre foi um diretor fora da curva, e é exatamente por isso que podemos dizer que Armageddon Time é o seu trabalho mais singelo e linear até aqui. Se levarmos em consideração filmes como Amantes, Era Uma Vez em Nova York e o próprio Ad Astra: Rumo às Estrelas, seu projeto anterior, falta nessa proclamada autobiografia algo mais pungente, ainda que o resultado tenha seu charme em função da melancolia e da nostalgia com que ele revisita as suas memórias, amparado por um ótimo elenco, que traz de Jeremy Strong a Anthony Hopkins, passando por Anne Hathaway e uma ligeira participação de Jessica Chastain.
Um dos componentes centrais da retrospectiva pessoal do cineasta é a relação estabelecida por Paul Graff (Banks Repetta, muito seguro ao não se estremecer frente a tantos atores bons) com a família, principalmente com o seu avô Aaron (Anthony Hopkins), a única pessoa que o jovem parece dar ouvidos de verdade. Entretanto, Gray dá atenção especial à jornada do garoto no ambiente escolar, onde conhecer o colega Johnny (Jaylin Webb), jovem negro que, a partir de um convívio muito próximo, revelará a Paul, entre outras coisas, os significados das palavras injustiça e privilégio.
Como esperado de um diretor como James Gray, a abordagem racial não segue cartilhas, e o fato de ser vista a partir da perspectiva de uma criança dá interessantes contornos aos conflitos. Para Paul, menino branco, judeu e que tem como plano B a possibilidade de ingressar em uma escola particular caso não se adeque ao ensino público, toda e qualquer desventura com o novo amigo não chega a oferecer perigo real devido a sua cor e posição social, algo que ele logo ressignifica quando compreende que Johnny não recebe o mesmo tratamento apenas por ser quem é. Se Paul fará algo ou não com isso é outra história e envolve descobertas de vida que acabarão por moldar o caráter do garoto.
Para olhares menos atentos a observações como essas, Armageddon Time pode parecer um filme qualquer de traços autobiográficos. O tom ameno e contido talvez contribua para essa conclusão, mesmo que o elenco estrelado eleve a encenação das dinâmicas familiares, com destaque para a delicada relação entre Paul e seu avô, interpretado com a sabedoria tão característica de um ator do calibre de Anthony Hopkins. E a verdade é que realmente estamos diante de um longa mais brando, como se Gray estivesse preocupado em zelar pelas suas lembranças, sem a vontade de revisitá-las com outro olhar apenas para fazer um espetáculo cinematográfico ou algo parecido.
Aliás, esperar isso do diretor é quase uma heresia, pois ele nunca foi afeito ao espetáculo pelo espetáculo. Seu olhar para os relacionamentos amorosos em Amantes, por exemplo, não poderia ser mais interiorizado e atmosférico, assim como a técnica foi para fins além da grandiosidade em Ad Astra, ficção-científica de orçamento considerável ambientado em diferentes pontos do sistema solar. Ou seja, a pegada não seria diferente em sua obra mais pessoal, constatação que não chega a compensar 100% o fato de que, mesmo para o padrão James Gray, Armageddon Time tinha potencial, sim, para alçar voos maiores.