You won’t forget me, will you?
Direção: Rupert Goold
Roteiro: Tom Edge, baseado no espetáculo “End of the Rainbow”, de Peter Quilter
Elenco: Renée Zellweger, Jessie Buckley, Finn Wittrock, Michael Gambon, Rufus Sewell, Richard Cordery, Royce Pierreson, Darci Shaw, Andy Nyman, Bella Ramsey, Lewin Lloyd
Judy, Reino Unido, 2019, Drama, 118 minutos
Sinopse: Inverno de 1968. Com a carreira em baixa, Judy Garland (Renée Zellweger) aceita estrelar uma turnê em Londres, por mais que tal trabalho a mantenha afastada dos filhos menores. Ao chegar ela enfrenta a solidão e os conhecidos problemas com álcool e remédios, compensando o que deu errado em sua vida pessoal com a dedicação no palco. (Adoro Cinema)
Fatores externos não devem necessariamente ser pré-requisitos para a devida apreciação de um filme, mas há casos em que compreender elementos orbitantes a um projeto só contribui para a nossa experiência como espectador. Reserve um tempo, portanto, para investigar a vida de Judy Garland antes de conferir Judy: Muito Além do Arco-Íris. E o mais importante: recupere também a carreira de Renée Zellweger, desde quando ela teve seu primeiro papel de destaque em Jerry Maguire: A Grande Virada nos anos 1990 até chegar ao próprio Judy. Espelhando a trajetória de ambas, a semelhança fica clara em um piscar de olhos: descobertas, celebradas, mastigadas e, por fim, cuspidas por Hollywood, as duas viram o melhor e o pior dessa complicada indústria.
A diferença, claro, é que Renée não faleceu aos 47 anos em um dos momentos mais baixos de sua carreira. Na verdade, aos 50, a texana vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante por Cold Mountain tem a chance de renascer em Hollywood justamente ao prestar um tributo muito íntimo e particular à colega que não teve a mesma chance de se reerguer. Após ter amargado vários projetos terríveis, enfrentado anos de depressão e lidado com toda a misoginia de uma opinião pública impiedosa com a aparência e o envelhecimento das mulheres, Renée agora reverencia o legado de Garland com uma série de significados muito particulares e que talvez apenas ela pudesse traduzir com tamanha propriedade.
A escalação da atriz é perfeita porque Renée compreende que uma cinebiografia como essa não deve ser feita para passar a mão na cabeça de Hollywood. Judy recusa a ideia de glorificar a vida de sua personagem-título ou de tentar amenizar todo o sofrimento vivido por ela em suas últimas semanas de vida. A escolha do recorte já é um claro recado: com base no espetáculo “End of the Rainbow”, de Peter Quilter, o roteirista Tom Edge reúne acontecimentos da temporada em que Garland, esquecida e escanteada pelos Estados Unidos, viaja à Inglaterra para juntar algum dinheiro com uma agenda de shows e, assim, voltar a sustentar seus próprios filhos.
Ao mesmo tempo em que encena os dias de uma Judy Garland já derrotada e debilitada, o filme busca devolver à atriz algum tipo de respeito e dignidade. E o faz sem purpurinas, momentos edificantes ou a tão esperada apresentação final responsável por induzir o espectador a pensar que, apesar dos pesares, tudo ficou bem. Sem hipocrisia, Judy se apresenta como uma comovente reparação para uma estrela que não desistia apesar das adversidades. As pílulas que lhe foram empurradas goela abaixo desde criança, a pressão por ter se tornado estrela cedo demais em um mundo de aparências e as crueldades trazidas pela vida e pelo trabalho após o envelhecimento lhe abalavam, mas, até certo ponto, nunca lhe aniquilavam.
Na pequena grande resistência de Garland, Judy tem uma personagem que, no fundo, tentava seguir em frente porque, assim como todos nós, tinha medo de ser esquecida. Essa perspectiva é traduzida na relação estabelecida pelo filme entre a protagonista e os palcos. Cantar, de certa forma, já não era mais suficiente para Garland, que muitas vezes se apresentava alterada por remédios, bebidas e noites de insônia. Contudo, quando se empoderava sob os holofotes, dominava a atenção por completo. A mulher magra, pálida e frágil dos bastidores de repente voltava a alcançar as notas que lhe alçaram ao sucesso mundial, (re)conquistando plateias e também o espectador do lado de cá da tela.
Quando Garland eventualmente se reergue, a conexão entre Renée e ela se estreita, e aí fica difícil (no bom sentido) distinguir quem nos comove: a protagonista em si dentro daquele recorte pontual ou quem a interpreta. Essa simbiose íntima e especial comove inclusive porque as canções são interpretadas por Renée. Mesmo que auxiliada pelo playback de gravações em estúdio, a atriz se junta a Taron Egerton em Rocketman e não a Rami Malek em Bohemian Rhapsody no sentido de criar a sua homenagem particular a Garland, procurando voz e interpretação próprias para encarnar uma figura que merece ser muito maior do que uma simples mímica.
Assumindo que um tributo a Garland tem mais dignidade quando inexiste a obsessão de tentar copiá-la, Renée se mostra sábia e corajosa. A cena em que ela canta Somewhere Over the Rainbow atesta tal posicionamento: para a atriz, o importante nesse momento não é reproduzir fielmente a voz de Garland, mas sim toda a rouquidão, a hesitação e a fragilidade de uma mulher tão sugada pela vida e que já não consegue cantar um de seus maiores clássicos com desenvoltura. Renée ressignifica muitas das fragilidades do filme e potencializa detalhes importantes, como a relação da protagonista com o público gay, aqui retratado por um humilde casal que faz companhia a Garland em uma noite onde, assim como em tantas outras, ninguém mais lhe espera na saída do teatro para um autógrafo.
Tratando-se de forma, Judy: Muito Além do Arco-Íris é um longa-metragem tradicional, imperfeito e até inexpressivo do ponto de vista estético. O diretor Rupert Goold, cuja carreira é muito mais teatral do que cinematográfica, não faz muita diferença no projeto: tê-lo ou não atrás das câmeras parece irrelevante, pois as decisões mais importantes não vêm dele, e sim do recorte proposto pelo roteiro e, claro, da escalação de Renée Zellweger. Judy, portanto, ganha na franqueza: sem ser apaziguador, associa a retrospectiva do legado de Garland à necessidade de fazer Hollywood refletir sobre cicatrizes que ainda continuam bastante abertas. As coisas realmente não mudaram muito com o passar dos anos.
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