Nem suspense, nem terror, “Até os Ossos” é experiência que causa estranhamento — e dos bons
Let’s be people.

Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: David Kajganich, baseado no romance “Bones and All”, de Camille DeAngelis
Elenco: Taylor Russell, Timothée Chalamet, Mark Rylance, Michael Stuhlbarg, Chloë Sevigny, Kendle Coffey, André Holland, Ellie Parker, Madeleine Hall, Christine Dye, Sean Bridgers, Anna Cobb, David Gordon Green, Jake Horowitz, Jessica Harper
Bones and All, EUA/Itália, Drama, 130 minutos
Sinopse: O amor floresce entre uma jovem à margem da sociedade (Taylor Russell) e um vagabundo marginalizado (Timothée Chalamet) enquanto eles embarcam em uma odisseia de três mil milhas pelas estradas secundárias da América. No entanto, apesar de seus melhores esforços, todos os caminhos levam de volta a seus passados aterrorizantes e a uma posição final que determinará se o amor deles pode sobreviver às diferenças.

Não se engane: o diretor Luca Guadagnino (Me Chame Pelo Seu Nome, Um Mergulho no Passado) traz múltiplas visões e metáforas para a questão do canibalismo, mas, em momento algum, Até os Ossos pode ser rotulado como um filme de terror ou como uma produção ao estilo da minissérie Dahmer: Um Canibal Americano. Inclusive, mesmo nas partes em que poderia se entregar ao gore ou ao apelo gráfico, Guadagnino deixa a materialização do tema quase fora de quadro. Para ele, o ponto central são as angústias e questões existenciais de personagens que, por serem canibais, não encontram um lugar ao mundo, uma clara alusão à maneira com que a sociedade relega as minorias e os “diferentes”.
É importante entender a negligência com o canibalismo: mesmo depois de tantos anos, trata-se de um assunto raramente discutido. Pouco se sabe sobre a sua real origem e suas implicações psicológicas, assim como não existe na legislação uma lei específica que caracterize o canibalismo como crime (os casos já julgados foram, na verdade, enquadrados como homicídio ou destruição de cadáver). É um tabu que costuma despertar a curiosidade alheia — não à toa, a já citada Dahmer se tornou, em poucos dias, a segunda série mais assistida da história da Netflix —, mas que na prática, fica relegada a um certo limbo para o qual ninguém quer olhar.
Até os Ossos está interessado no terreno dessas indefinições, ao mesmo tempo em que toma cuidado para não ser um estudo sobre canibais, muito menos uma romantização. A partir da jornada de Maren (Taylor Russell), o filme nos coloca na pele de uma garota que há anos vive de cidade em cidade fugindo com o pai porque, sempre em determinado ponto, já não consegue controlar seus impulsos em público. Quando é abandonada até mesmo por seu progenitor, Maren, então, parte em busca da mãe que nunca conheceu e, ao longo do caminho, surpreende-se ao, pela primeira vez, encontrar outros como ela. Todos seres humanos subterrâneos, invisíveis e incapazes de viver dentro de qualquer normalidade.
Tanto Até os Ossos rejeita a romantização do canibalismo que a palavra em si sequer é mencionada — eles são “comedores” (eaters, em inglês), termo unanimemente usado por esses personagens em diferentes pontos dos Estados Unidos. A discussão verdadeira discussão se dá em torno de como lidar com ela na prática: enquanto Maren deseja encontrar uma maneira de se alimentar sem precisar cometer crimes, outros acabam matando por puro instinto, algo que a assombra do ponto de vista ético e emocional, mesmo quando uma dessas pessoas é Lee (Timothée Chalamet), um comedor forasteiro que terá papel crucial em sua jornada.
De todos os encontros pelo caminho, esse é, sem dúvida, o que marca a garota – e também o próprio Lee, que, lutando contra seus próprios demônios, aceita a ideia de cair na estrada para ajudar Maren na busca pela mãe. A partir daí, Até os Ossos passa a ser também um road movie, centrado no relacionamento entre esses dois indivíduos que se reconhecem no não-pertencimento e nas suas tragédias pessoais em comum. Se Maren é a “heroína” em busca de algum sentido, Lee é o jovem punk e autocentrado que aos poucos baixa a guarda quando se percebe aceito e compreendido. São dois desabrochares que Guadagnino trabalha com habilidade para acrescenta outro gênero à mistura: o coming of age.
Como um road movie, Até os Ossos aproveita bem os diferentes estados (físicos e emocionais) pelos quais os protagonistas passam. Para além das relações possíveis de serem estabelecidas com a vida real a partir da natureza dos personagens, a trama originada do romance homônimo de Camille DeAngelis ganha nuances com a fotografia muito discreta e eficiente de Arseni Khachaturan, que mescla o estado de espírito dos protagonistas com as cidades cruzadas pelos personagens, e com a trilha sonora assinada pelos sempre formidáveis Trent Reznor e Atticus Ross, em um trabalho de estilo bem diferente do que costumam apresentar no cinema. Outro ponto alto é a participação de figuras muito peculiares, como os personagens de Mark Rylance e Michael Stuhlbarg, que causam sensações das mais estranhas, perigosas e desconfortáveis.
Rylance e Stuhlbarg são importantes porque reacendem um certo senso de urgência presente na arrancada e que acaba amortecido quando nasce o romance central. A paixão entre Lee e Maren funciona porque Taylor Russell e Timothée Chalamet são ótimos atores, mas é inegável que, com ela, o filme se torna mais plano em termos de atmosfera. Se o canibalismo era ou não a melhor das metáforas para tudo o que Guadagnino quer abordar — a luta para simplesmente existir, a busca por um lar, o papel do autoconhecimento no movimento de amar outra pessoa, etc. — é outra discussão, principalmente porque ela vai do paladar de cada um diante de um tema tão complicado e polêmico. No meu caso, ainda que com algumas ressalvas, Até os Ossos causou estranhamento imediato… E dos bons.
Rapidamente: “45 do Segundo Tempo”, “Argentina, 1985”, “O Enfermeiro da Noite” e “Mais Que Amigos”

45 do Segundo Tempo é uma ode à amizade e traz uma das melhores atuações de Tony Ramos.
45 DO SEGUNDO TEMPO (idem, 2021, de Luiz Villaça): Saiu muito rápido de cartaz e não recebeu a devida atenção esse novo filme de Luiz Villaça que é uma afetuosa ode à amizade. No caso, a de três homens reconectados por circunstâncias da vida após muitos anos de afastamento. A consolidação desse reencontro, no entanto, não se dá de imediato e não é exatamente celebrativa. Ela acontece quando Pedro (Tony Ramos) anuncia seus planos de cometer suicídio, fazendo com que os amigos acabem revendo muitas questões do passado e do presente para que Pedro não cumpra com a intenção. No percurso, claro, todos reavaliarão as suas próprias vidas e as escolhas feitas pelo caminho. Como em todos os filmes de Luiz Villaça, 45 do Segundo Tempo aposta na riqueza das pequenas coisas da vida para emocionar e fazer rir, dando um tom melancólico a uma história que poderia resvalar no dramalhão. É muito generoso o olhar do longa sobre o passar do tempo, principalmente no que se refere à ideia de que nunca é tarde para recomeçar ou tentar recuperar quem desejávamos ser e não nos tornamos. Um tanto clichê, é verdade — e, às vezes, até pueril no humor, como na maior parte envolvendo o padre de Ary França —, mas de fácil identificação e com as reflexões sempre pertinentes sobre os laços humanos que Villaça já apresentou em outros trabalhos como De Onde Eu Te Vejo. A cereja do bolo é a maravilhosa performance de Tony Ramos, em um papel versátil e de camadas como há muito tempo ele não recebia.
ARGENTINA, 1985 (idem, de Santiago Mitre): Não é por acaso a brincadeira de que só existem filmes argentinos estrelados por Ricardo Darín. À parte o óbvio componente da carreira bastante prolífera trilhada por ele desde sempre, há a frequência com que o ator participa de projetos da curva, como já aconteceu nas parcerias com o cineasta Juan José Campanella em filmes como O Filho da Noiva e O Segredo dos Seus Olhos. Pois agora, dirigido por Santiago Mitre, Darín estrela Argentina, 1985, um excelente longa que segue a tradição do cinema argentino de olhar para os traumas passados da nação com um olhar crítico e bem posicionado. O foco é o julgamento dos crimes cometidos por membros do exército durante a ditatura militar, intercalando com bastidores do processo e diversos pontos pessoais dos personagens envolvidos. Não se trata, entretanto, de um mero filme de tribunal: o que interessa a Santiago Mitre é deixar de lado a previsível exposição dos horrores da ditadura para mostrar como ela, mesmo depois de encerrada, permanece entranhada na sociedade, ainda com muitos demônios por serem exorcizados. Argentina, 1985 leva a discussão política e social para o plano humano, a partir de uma série de personagens que, pela habilidade do roteiro e pelo ótimo elenco, tornam-se próximos do espectador. Em mais de 140 minutos, Mitre cadencia a trama sem perder a plateia em um punhado de nomes ou situações. Em suma, para além de bom cinema, o longa é um registro dos mais importantes para o povo argentino e uma amarga lembrança para nós, brasileiros, que nunca vimos a nossa ditadura e seus fantasmas serem devidamente enterrados.
O ENFERMEIRO DA NOITE (The Good Nurse, 2022, de Tobias Lindholm): Poderia ser o mero cartão de visita para uma entrada em Hollywood, mas o roteirista dinamarquês Tobias Lindholm (A Caça, Druk: Mais Uma Rodada) estreia na cadeira de direção com um filme que, mesmo sem a sua assinatura no roteiro, consegue se esquivar de obviedades e de fórmulas que hoje garantem o êxito de produções envolvendo crimes da vida real. O Enfermeiro da Noite é muito feliz, por exemplo, ao dispensar o ponto de vista de Charlie Cullen (Eddie Redmayne) para colocar a plateia no lugar de outra personagem, a enfermeira Amy Loughren (Jessica Chastain). Isso funciona porque, assim como ela, descobrimos gradativamente quem é Charlie de verdade, ao mesmo tempo em que, antes disso, também já fomos envolvidos por sua delicadeza e generosidade. Para quem não conhece o caso em detalhes — em linhas gerais, Cullen foi condenado pela morte de 29 pacientes, enquanto especialistas acreditam que esse número possa chegar a 400, tornando-o assassino em série mais prolífero dos Estados Unidos —, trata-se de uma decisão que funciona ainda mais, visto que O Enfermeiro da Noite deseja mostrar como pessoas do perfil de Cullen circulam entre nós, sem que pareçam estranhos ou remotamente suspeitos, tese bem reproduzida pela performance de Eddie Redmayne. Inexiste, portanto, toda a cartilha de dramatização da vida íntima ou pregressa do serial killer. Não é algo que funciona com todas as plateias, mas que confere ao filme de Tobias Lindholm uma atmosfera diferenciada em meio à frenética onda de true crimes dramatizados.
MAIS QUE AMIGOS (Bros, 2022, de Nicholas Stoller): Independentemente de, na matemática fria de uma análise, ser uma comédia romântica com desenvolvimento similar ao de incontáveis outras, Mais Que Amigos ganha novos contornos por simplesmente colocar dois homens no centro de uma história leve, afetiva e divertida. Existe uma importante questão de representatividade, mas também de um alcance raro, afinal, é talvez até pioneiro o fato de uma comédia romântica gay chegar a um circuito comercial com tanta abrangência. Aos que, assim como eu, descobriram sua sexualidade sem a oportunidade de vê-la na tela com humor e naturalidade, Mais Que Amigos pode bem ser um verdadeiro presente. O filme toca em questões fundamentais para o público gay, como a insegurança de ser quem se é e o quanto isso ecoa por toda uma vida, especialmente nas relações afetivas e na forma de encarar vários problemas inerentes à vida adulta. O roteiro assinado pelo diretor Nicholas Stoller e pelo protagonista Billy Eichner demonstra habilidade ao percorrer os rumos já conhecidos do formato tradicional de uma comédia romântica e ao personalizá-la para seu público-alvo. É fácil torcer por dois personagens que, distintos em tudo o que se pode imaginar, encontram, somente depois de adultos, as vivências e as descobertas que heterossexuais têm à disposição desde muito cedo. Minha única observação menos elogiosa ao resultado fica com a escalação de Billy Eichner, que acaba sendo apenas… Billy Eichner. Muito provavelmente, seu personagem teria outras camadas a ganhar caso interpretado um ator mais imerso em um personagem e menos em uma persona já tão conhecida.
James Gray volta à infância com “Armageddon Time”, seu filme mais singelo até aqui
Do you think that’s smart?

Direção: James Gray
Roteiro: James Gray
Elenco: Banks Repeta, Anne Hathaway, Jeremy Strong, Anthony Hopkins, Jaylin Webb, Andrew Polk, Ryan Sell, Tovah Feldshuh, Marcia Haufrecht, Teddy Coluca, Jessica Chastain, Richard Bekins, Dane West, John Diehl, Domenick Lombardozzi
EUA/Brasil, 2022, Drama, 114 minutos
Sinopse: Na Nova York dos anos 1980, antes de Ronald Reagan ser eleito presidente dos Estados Unidos, uma família vive no Queens e precisa passar por um processo profundamente pessoal. Traçando uma trajetória de amadurecimento, o longa aborda a força da família e a busca que atravessa gerações pelo “sonho americano”. (Adoro Cinema)

Não é nenhuma novidade a meditação de cineastas norte-americanos sobre as suas infâncias em formato de filme autobiográfico. O próprio Steven Spielberg, após décadas de carreira, lançará em breve The Fabelmans, mostrando que esse é um tipo de projeto atemporal, sem hora ou momento exato para ser tirado do papel. Outro nome que se junta à estatística é o de James Gray, que chega agora aos cinemas com o seu Armageddon Time, antes visto na competição oficial do Festival de Cannes deste ano, e que tem como pano de fundo a Nova York dos anos 1980 e a clássica busca pelo chamado “sonho americano”.
James Gray sempre foi um diretor fora da curva, e é exatamente por isso que podemos dizer que Armageddon Time é o seu trabalho mais singelo e linear até aqui. Se levarmos em consideração filmes como Amantes, Era Uma Vez em Nova York e o próprio Ad Astra: Rumo às Estrelas, seu projeto anterior, falta nessa proclamada autobiografia algo mais pungente, ainda que o resultado tenha seu charme em função da melancolia e da nostalgia com que ele revisita as suas memórias, amparado por um ótimo elenco, que traz de Jeremy Strong a Anthony Hopkins, passando por Anne Hathaway e uma ligeira participação de Jessica Chastain.
Um dos componentes centrais da retrospectiva pessoal do cineasta é a relação estabelecida por Paul Graff (Banks Repetta, muito seguro ao não se estremecer frente a tantos atores bons) com a família, principalmente com o seu avô Aaron (Anthony Hopkins), a única pessoa que o jovem parece dar ouvidos de verdade. Entretanto, Gray dá atenção especial à jornada do garoto no ambiente escolar, onde conhecer o colega Johnny (Jaylin Webb), jovem negro que, a partir de um convívio muito próximo, revelará a Paul, entre outras coisas, os significados das palavras injustiça e privilégio.
Como esperado de um diretor como James Gray, a abordagem racial não segue cartilhas, e o fato de ser vista a partir da perspectiva de uma criança dá interessantes contornos aos conflitos. Para Paul, menino branco, judeu e que tem como plano B a possibilidade de ingressar em uma escola particular caso não se adeque ao ensino público, toda e qualquer desventura com o novo amigo não chega a oferecer perigo real devido a sua cor e posição social, algo que ele logo ressignifica quando compreende que Johnny não recebe o mesmo tratamento apenas por ser quem é. Se Paul fará algo ou não com isso é outra história e envolve descobertas de vida que acabarão por moldar o caráter do garoto.
Para olhares menos atentos a observações como essas, Armageddon Time pode parecer um filme qualquer de traços autobiográficos. O tom ameno e contido talvez contribua para essa conclusão, mesmo que o elenco estrelado eleve a encenação das dinâmicas familiares, com destaque para a delicada relação entre Paul e seu avô, interpretado com a sabedoria tão característica de um ator do calibre de Anthony Hopkins. E a verdade é que realmente estamos diante de um longa mais brando, como se Gray estivesse preocupado em zelar pelas suas lembranças, sem a vontade de revisitá-las com outro olhar apenas para fazer um espetáculo cinematográfico ou algo parecido.
Aliás, esperar isso do diretor é quase uma heresia, pois ele nunca foi afeito ao espetáculo pelo espetáculo. Seu olhar para os relacionamentos amorosos em Amantes, por exemplo, não poderia ser mais interiorizado e atmosférico, assim como a técnica foi para fins além da grandiosidade em Ad Astra, ficção-científica de orçamento considerável ambientado em diferentes pontos do sistema solar. Ou seja, a pegada não seria diferente em sua obra mais pessoal, constatação que não chega a compensar 100% o fato de que, mesmo para o padrão James Gray, Armageddon Time tinha potencial, sim, para alçar voos maiores.
“Triângulo da Tristeza” é uma piada divertida e eficiente, ainda que no limite da repetição
In den wolken!

Direção: Ruben Östlund
Elenco: Harris Dickinson, Charlbi Dean, Dolly De Leon, Vicki Berlin, Woody Harrelson, Zlatko Buric, Alicia Eriksson, Carolina Gynning, Amanda Walker, Sunnyi Melles, Iris Berben, Oliver Ford Davies, Ralph Schicha, Arvin Kananian, Henrik Dorsin
Triangle of Sadness, Suécia/França/Reino Unido/Alemanha/Turquia/Grécia, 2022, Comédia, 147 minutos
Sinopse: Modelos e influenciadores do mundo da moda, Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean) são convidados para um cruzeiro a bordo de um luxuoso iate na companhia de outros tripulantes multimilionários. Tudo termina de forma catastrófica quando eles ficam encalhados em uma ilha deserta, onde a hierarquia de classes sofre uma súbita reviravolta.

Em sua cena mais catártica, Triângulo da Tristeza coloca dois personagens embriagados e de ideologias opostas para literalmente recitarem piadas sobre comunismo e capitalismo. Gosto de pensar que ela representa muito bem o novo filme do sueco Ruben Östlund, já que, pela primeira vez, o diretor parece ter decidido abandonar o verniz de filme sério ou de arte que sempre aplicou em seus projetos. Os questionamentos em torno da masculinidade em Força Maior e a acidez ao tratar o mundo da arte em The Square eram interessantes, mas bem menos originais ou profundos do que suas celebrações mundiais sugeriram. Já em Triângulo da Tristeza, não há pose ou meias palavras, e isso é muito saudável, pois se alinha com as verdadeiras qualidades e fragilidades de um diretor que agora revela ter até uma vocação mainstream.
Afirmo aqui, sem muito medo de errar, que Triângulo da Tristeza não mudará a opinião de ninguém sobre Östlund, para o bem e para o mal. É bem provável, inclusive, que esse filme potencialize os (des)afetos de cada um em torno do diretor. No caso do Festival de Cannes, é puro amor: em apenas cinco anos, foram duas Palmas de Ouro para Östlund, feito alcançado apenas por um seleto grupo que inclui nomes como Francis Ford Coppola, Ken Loach, Michael Haneke e os irmãos Dardenne. Fico em um meio terno, sem ir ao céu ou ao inferno. O que sempre acho interessante é o alvoroço causado por Östlund, pois as discórdias acabam sendo o combustível de seu nome e de suas obras. Digo que as opiniões sobre ele seguirão as mesmas porque Triângulo da Tristeza chuta o balde ao abraçar um caldeirão de temas efervescentes: diferença de classes, mídias sociais, o mito da beleza, o status do dinheiro… Não há economia na escolha de assuntos.
Além disso, Triângulo da Tristeza tem zero sutileza, encenando de grandes bebedeiras a vômitos incontroláveis, e já começa bastante explicativo, contando ao espectador que o tal triângulo da tristeza se refere à parte do rosto entre as sobrancelhas que os modelos contraem para parecerem sérios ou sensuais em ensaios fotográficos e desfiles. Tudo é ipsis literis, e essa falta de minúcias costuma ser vista como demérito. Mas, afinal, por que o escracho haveria de ser problema para um filme quando vivemos nesse mundo em que governantes parecem saídos de esquetes cômicas e pautas ressurgem como ainda mais força quando pensávamos que elas haviam sido superadas? Só é possível tratar os horrores dos nossos tempos com discrição? O ridículo não seria o registro dessa vida que vivemos e vemos todos os dias na TV?
Nesse sentido, o longa muito se assemelha a filmes como Não Olhe Para Cima e Medida Provisória porque considera a caricatura da vida real um elemento mais do que suficiente para a ficção. Não à toa, estamos falando de filmes que, em suas respectivas dimensões, foram sucesso de público. É por isso que afirmo a vocação mainstream do novo longa de Östlund: ela não se dá somente pelo tom cômico, mas também por essa nossa ampla familiaridade com os ricos patéticos e cafonas da trama, figuras universais em noticiários diários. De fabricantes de granadas a oligarcas russos, o iate de luxo de Triângulo da Tristeza é um amontoado de pessoas que, na situação de naufrágio anunciada já na sinopse, acabam não servindo para nada. Ao tratá-los com deboche, o filme garante que todos se tornem detestavelmente interessantes de acompanhar, efeito semelhante ao que Mike White alcançou no excelente seriado The White Lotus.
Entre o desprezo e o ridículo, Östlund oferece momentos catárticos, como a já famosa cena de jantar que estampa cartazes alternativos do filme. Eles abrem portas para que Triângulo da Tristeza, ao contrário de Força Maior e The Square, se comunique com mais plateias e principalmente nivele as vocações do diretor com aquilo que de fato ele entrega, sem disfarces. No que me toca, acho que o sueco convida o espectador para uma experiência com a qual é difícil rivalizar se houver sintonia com a atmosfera. Até mesmo os momentos escatológicos e as brigas fúteis de gente rica funcionam aqui, muito em função do ótimo elenco, com destaque para a faxineira vivida por Dolly De Leon e para a dinâmica entre Harris Dickinson e Charlbi Dean — ela, por sinal, em seu último trabalho devido a uma morte prematura aos 32 anos de idade.
Acontece que Triângulo da Tristeza não ressoa por muito tempo após a sessão, o que não costuma ser bom sinal. Apesar dos absurdos tão familiares e da assertividade de Östlund em não tentar dar um passo maior do que a perna, o longa carece de certa potência. E tenho lá alguns palpites para as razões desse desencontro. Um deles é a tendência do roteiro em às vezes se importar mais com os temas do que com os personagens, reduzindo coadjuvantes a piadas pontuais, por exemplo. O outro talvez seja mais importante. Com a velocidade que as coisas se movem nos dias de hoje, tendências e ideias têm prazos mais curtos de validade. O que é descoberta logo vira tendência – e, por fim, uma fórmula que precisa ser repensada, recriada, reimaginada. Triângulo da Tristeza não chega a soar como piada velha, mas está nessa linha tênue entre surfar na onda do momento e se tornar uma piada já contada repetidas vezes.
Rapidamente: “5 Casas”, “A Porta ao Lado”, “A Queda” e “Retrato de Mike Nichols”

5 Casas foi o grande vencedor da mostra gaúcha de longas do 50º Festival de Cinema de Gramado.
5 CASAS (idem, de Bruno Gularte Barreto): Grande vencedor da mostra de longas-metragens gaúchos do Festival de Cinema de Gramado deste ano, 5 Casas é um documentário intimista que leva o diretor Bruno Gularte Barreto de volta a Dom Pedrito, pequena cidade onde nasceu no interior do Rio Grande do Sul. O foco está em cinco casas povoadas de histórias da sua infância, e o viés extremamente pessoal conferido ao projeto jamais se aproxima de uma viagem em torno do próprio umbigo. Pelo contrário: 5 Casas é melancólico e delicado ao costurar a história de Barreto com a de outras pessoas, entre elas, a de um jovem vítima de preconceitos por conta de sua homossexualidade e a de uma freira prestes a ser transferida da escola em que trabalhou por décadas. A melancolia se evidencia nesse contraste que o diretor faz entre quem ficou na cidade e quem foi embora, enquanto a delicadeza é depositada na maneira muito calma e nada invasiva com que os depoimentos são registrados. Intercalando e guiando o filme está a narração do próprio Barreto, sempre capaz de fazer observações certas nos momentos mais apropriados, além de conferir uma certa poesia a um filme já contemplativo em seu tom memorialístico. É um longa-metragem de estreia que revela um diretor promissor no olhar maduro atribuído a histórias cotidianamente íntimas e no seu relato inicialmente pessoal levado a um plano mais universal, trazendo nas histórias narradas um Brasil acometido, entre outras coisas, pela homofobia e pelos avanços das incorporadoras imobiliárias.
A PORTA AO LADO (idem, 2022, de Júlia Rezende): Foi um corpo estranho no último Festival de Cinema de Gramado, pois não conversava com a seleção extremamente engajada do ponto de vista social e político. À parte isso, realmente não me envolvi com A Porta ao Lado, oitavo longa-metragem de Júlia Rezende. O filme propõe um olhar contemporâneo sobre modelos de relacionamento, tendo dois casais no centro de história. Ambos reavaliarão seus conceitos e ideias sobre suas dinâmicas afetivas a partir do momento em que passam a ser vizinhos de porta. No entanto, falta certa perspicácia ao texto, que, a meu ver, é construído a partir de bases estereotipadas. No que se tange às possibilidades de uma argumentação, soa fácil demais colocar o casal monogâmico como certinho, rotineiro e de cabeça fechada, enquanto o par de relacionamento aberto é descolado, disruptivo e criativo. Talvez essa seja a amostragem comportamental mais expressiva das relações que adotam os respectivos formatos, mas ela não é de muita ajuda para tornar A Porta ao Lado uma leitura encorpada sobre como vivemos tempos que tanto questionam padrões. O elenco, apesar de entrosado, é irregular e fica sem ter muito para onde ir devido a esse olhar do roteiro. De qualquer forma, eles acabam por segurar uma trama de caminhos já conhecidos em muitos aspectos. Isso, por outro lado, deixa A Porta ao Lado em uma zona mais acessível e que, dada a vocação da filmografia de Júlia Rezende, pode lhe garantir outro sucesso comercial como Meu Passado Me Condena e De Pernas Para o Ar 3, o que, vale frisar, não é demérito.
A QUEDA (Fall, 2022, de Scott Mann): Há 20 ou 30 anos, teria feito certo sucesso. Hoje, não passa de uma tentativa empoeirada de causar frisson e medo com uma situação de risco muito curiosa e que se sobrepõe à preocupação de criar um bom roteiro. No caso, estamos falando de duas amigas que resolvem escalar sozinhas uma abandonada torre de rádio nos Estados Unidos. A altura é realmente de dar calafrios e, em certa dose, A Queda proporciona bons momentos ao brincar com a vertigem. Acontece que isso é pouco para sustentar um longa-metragem, especialmente quando ele é mal escrito e protagonizado por atrizes muito fracas. O roteiro exige imensa boa vontade do espectador para acreditar em circunstâncias das mais esdrúxulas — afinal, como acreditar que duas pessoas seriam tão tolas de escalar uma torre abandonada e de estrutura tão precária sem o mínimo de segurança ou contato com o mundo exterior? E por aí vai: bateria de celular durando mais de 48 horas, personagens tirando forças sabe-se lá de onde, cordas que não arrebentam em situação alguma… No meio de tudo isso, querendo dar algum peso dramático, o roteiro introduz os batidos traumas passados para que tudo resulte em uma experiência de superação e autoconhecimento. Tem como levar a sério? Claro que não, o que não seria um problema se A Queda fosse minimamente habilidoso ao causar angústia por méritos próprios e não por apenas se aproveitar dos medo e enjoos de uma situação já naturalmente incômoda.
RETRATO DE MIKE NICHOLS (Becoming Mike Nichols, 2016, de Douglas McGrath): Mike Nichols é, com certeza, um dos diretores do qual mais sinto falta no cinema norte-americano. Ele nos deixou em 2014, vítima de infarto, e seu legado é uma filmografia preciosa. Parte dela é recuperada nesse documentário-entrevista gravado quatro meses antes da sua morte, no Golden Theatre da Broadway. Obviamente, o formato assumido de entrevista, intercalado com imagens de filmes e momentos de sua carreira, acaba limitando o documentário do ponto de vista criativo, mas a conversa flui com grande naturalidade, tanto por Nichols ter sido um cineasta inteligente quanto pela condução de Jack O’Brien, diretor teatral e seu amigo muito próximo. O tom de intimidade traz leveza a um documentário que busca investigar o início da carreira de Nichols e sua escalada de sucesso até o Oscar de melhor direção por A Primeira Noite de Um Homem. Com esse recorte, ficam de fora marcos que renderiam outra grande conversa, a exemplo das espetaculares adaptações de Angels in America e Closer – Perto Demais e a prolífera parceria com Meryl Streep em obras como Lembranças de Hollywood, Silkwood e A Difícil Arte de Amar. Isso, entretanto, não é problema, ja que o início da carreira de Nichols é igualmente interessante. O olhar especial dado ao teatro se destaca, claro, por ser a origem de sua carreira artística e também porque seria a porta de entrada para a estreia no cinema, dirigindo, logo de cara, a dupla Elizabeth Taylor e Richard Burton em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Ou seja, por mais que Retrato de Mike Nichols se limite a ser apenas o registro de uma conversa, o resultado é plenamente compensado pelo brilhantismo de seu personagem.