
Michelle Pfeiffer tem, no subestimado Saída à Francesa, o seu melhor desempenho em anos.
ESTADOS UNIDOS VS. BILLIE HOLIDAY (The United States vs. Billie Holiday, 2020, de Lee Daniels): Cada vez mais é possível ter certeza de que a ampla celebração ao diretor Lee Daniels à época do lançamento Preciosa: Uma História de Esperança não se repetirá considerando os longas realizados por ele desde então. De produções afetadas como Obsessão a outros até mesmo sofríveis (jamais superei o imenso desperdício de elenco de O Mordomo da Casa Branca), Daniels tem constantemente reafirmado a frustração em torno de seu nome, e não é diferente com o recente Estados Unidos vs. Billie Holiday. À parte o merecido reconhecimento para a interpretação repleta de entrega da jovem Andra Day, em seu primeiro papel como protagonista no cinema, o filme é um legítimo exemplar do diretor: bagunçado, cansativo e disperso, com o “bônus” de ser mais uma cinebiografia convencional que não está à altura da complexidade de sua protagonista. São longas duas horas onde Daniels e o roteiro de Suzan-Lori Parks nunca dão conta do ícone Billie Holiday, tanto em sua vida pessoal quanto profissional. Fatos importantes e emblemáticos como a decisão de Billie em performar incontáveis vezes, mesmo oprimida pelas forças dominantes do período, a canção “Strange Fruit”, um hino contra o racismo norte-americano, são tratados meramente como marcos temporais, sem a devida tração dramática. Resta, portanto, ao ótimo desempenho de Andra Day a missão de dar alguma profundidade a um filme abarrotado de fatos e oco em camadas. Ainda bem que, isoladamente, Andra dá conta do recado.
LUCA (idem, 2021, de Enrico Casarosa): Lamento que essa adorável animação da Disney/Pixar não tenha caído nas graças do público, ficando à sombra do grande sucesso de Soul, filme do qual não sou tão entusiasta. Há quem tenha reclamado da falta de criatividade de Luca em comparação a outros títulos do estúdio, como se não pudesse haver beleza na simplicidade, mas sou um dos defensores dessa animação dirigida pelo italiano Enrico Casarosa justamente por sua capacidade de extrair emoção e leveza do clássico arco de uma amizade improvável. Aliás, a relação que, para alguns, não passa mesmo de amizade, pode ser interpretada, a meu ver, como o sutil e delicado primeiro amor entre dois meninos. Apenas o fato do protagonista Luca ser um animal marinho e, em terra firme, virar um ser humano sem poder revelar sua identidade junto ao amigo já é um belo indício de que o roteiro, escrito pela dupla Jesse Andrews e Mike Jones, lança um olhar carinhoso para o “diferente” e para como a sociedade pode julgar determinadas relações, sejam elas de qualquer natureza, que escapam à normatividade. Para colaborar com essa história que me tocou pelo ponto de vista que compartilho aqui, Luca é gracioso em todos os ângulos, das cores às referências à Itália, emoldurado por paisagens deslumbrantes e um clima veranil que salta à tela. Os protagonistas são puro carisma, as lições são bem trabalhadas e é bem provável que você fique com um sorriso no rosto do início ao fim da sessão. Sem grandes ambições, Luca prova que, muitas vezes, o encantamento de não depende de engenhosidades.
SAÍDA À FRANCESA (French Exit, 2020, de Azazel Jacobs): É com frequência que me surpreendo com a intolerância do público e até da crítica diante de filmes mais peculiares e de difícil definição, especialmente quando não há a chancela de prestigiados festivais ou de nomes consagrados envolvidos na concepção do projeto. Para mim, o efeito é oposto: fico intrigado e até entusiasmado ao ver uma obra livre de pré-conceitos e em busca de seu próprio universo. Não é o caso de considerarmos Saída à Francesa uma experiência irretocável porque o diretor Azazel Jacobs erra em algumas de suas apostas inusitadas, mas, no geral, é um longa-metragem com camadas muito interessantes, da mistura de diferentes gêneros ao modo peculiar como o filme os aborda. Contudo, o auge está mesmo na performance de Michelle Pfeiffer, que merecia maior apreço pelo trabalho realizado aqui. Mais do que ter o seu melhor papel em anos, Pfeiffer consegue se esquivar das semelhanças com, por exemplo, a esnobe personagem de Cate Blanchett em Blue Jasmine (também uma mulher rica que não perde a pose e tenta manter as aparências mesmo após a falência) para criar uma figura de persona única e cuja humanização se ramifica em caminhos pouco óbvios. Em uma Paris retratada com singeleza, Saída à Francesa tem um humor por vezes incômodo, assim como um drama que se vale até de elementos além-vida, mas promove uma mistura que jamais poderá ser colocada na caixinha do lugar-comum.
TEMPO (Old, 2021, de M. Night Shyamalan): Não há nada que já não tenha sido dito sobre a irregularidade e os altos e baixos da carreira do indiano M. Night Shyamalan. De qualquer forma, é curioso constatar como ele consegue errar de duas maneiras distintas: sendo superficial nos pontos mais básicos da construção de uma história ou chutando o balde, sem se preocupar com críticas. No erro pelo erro, prefiro o segundo caso, o que não se aplica a Tempo, um filme que, por ser obcecado com o seu próprio conceito, esquece de criar personagens envolventes ou reflexões estão escancaradas na tela, mas que só Shyamalan não parece notar. Na misteriosa praia em que o tempo corre diferente e as pessoas envelhecem mais rápido do que o habitual, o diretor prefere a brincadeira, encenando desde uma gravidez repentina em minutos a um tumor de câncer que cresce de maneira descontrolada. É curioso até se tornar crescentemente ineficaz e repetitivo com o andar da trama. Falta química ao casal protagonista vivido por Vicky Krieps e Gael García Bernal, assim como todos os coadjuvantes oscilam entre más interpretações e personagens fáceis. A habilidade de Shyamalan em, apesar de tudo, despertar a curiosidade pelo que está por vir não é suficiente para apagar essas impressões, inclusive aquelas deixadas pelo desfecho repleto de furos, explicações apressadas e discussões que deveriam render mais do que uma mera revelação final.