One thing’s universal: life’s no dress rehearsal.
Direção: Ryan Murphy
Roteiro: Bob Martin e Chad Beguelin, baseado no conceito original de Jack Viertel e nas canções de Bob Martin, Chad Beguelin e Matthew Sklar
Elenco: Jo Ellen Pellman, Meryl Streep, James Corden, Nicole Kidman, Keegan-Michael Key, Kerry Washington, Andrew Rannells, Ariana DeBose, Tracey Ullman, Mary Kay Place, Logan Riley, Sofia Deler, Nico Greetham, Nathaniel J. Potvin
The Prom, Estados Unidos, 2020, Musical, 132 minutos
Sinopse: Dee Dee Allen (Meryl Streep) e Barry Glickman (James Corden) são estrelas do teatro em meio a uma crise: seu novo espetáculo da Broadway é um completo desastre, arruinando suas carreiras. Enquanto isso, em uma cidadezinha de Indiana, a jovem Emma Nolan (Jo Ellen Pellman) também tem seus problemas: apesar do apoio do diretor de sua escola (Keegan-Michael Key), a presidente da associação de pais (Kerry Washington) a proibiu de participar da festa de formatura com sua namorada, Alyssa (Ariana DeBose). Considerando a situação de Emma a oportunidade perfeita para reconstruir sua imagem pública, Dee Dee e Barry decidem abraçar a causa ao lado de Angie (Nicole Kidman) e Trent (Andrew Rannells), outros dois atores cínicos em busca de promoção, mas o falso ativismo acaba tomando um rumo inesperado, e a vida dos quatro vira de cabeça para baixo enquanto tentam oferecer a Emma uma noite em que ela poderá celebrar quem realmente é. (Adoro Cinema)
Em termos criativos, o diretor, roteirista e produtor Ryan Murphy talvez não tenha tomado decisão pior do que a de migrar Netflix. Antes de trocar de casa, ele havia construído um verdadeiro império na FX, onde despontou com produções ousadas como Nip/Tuck, virou sucesso de audiência com Glee, fisgou público e crítica com a antologia American Horror Story, tornou-se unanimidade ao apresentar trabalhos inspiradíssimos como The Pople v. O.J. Simpson: American Crime Story e até realizou pérolas que não foram devidamente celebradas, a exemplo da minissérie Feud: Bette and Joan. Mesmo assim, Murphy não é unanimidade e passou a ser admirado e detestado nas mesmas proporções por público e crítica. Gostos de cada espectador à parte, o que ninguém pode colocar em xeque é o seu toque de Midas na era FX, emissora que lhe catapultou como um dos produtores mais requisitados e poderosos dos Estados Unidos. Com esse histórico em vista, a Netflix investiu pesado na ideia de roubar Ryan Murphy. E pesado não é força de expressão: estima-se que o contrato assinado por ele tenha ficado na casa dos 300 milhões de dólares. A má notícia é que, até agora, o raio não caiu duas vezes no mesmo lugar: apesar da Netflix ter tomado Murphy para si, os inúmeros projetos assinados por ele nessa nova fase oscilam entre o mediano e o medíocre — e as premiações, antes tão afeitas a ele, também estão aí para concordar com esse balanço.
De The Politician a Ratched, Murphy dá a impressão de estar tirando sempre as mesmas séries do forno em tom e escala, onde até as paletas de cores se assemelham (algo recorrente na Netflix como um todo, que adora padronizar a linguagem estética dos seus maiores sucessos). A Festa de Formatura, portanto, parecia a esperança de alguma oxigenação diante desse cenário desestimulante. Um musical cômico e colorido da Broadway indicado a sete Tonys e adaptado em formato de longa-metragem com Meryl Streep e Nicole Kidman? Difícil não ser minimamente divertido ou deliciosamente cafona. E a verdade é que o resultado não é nem uma coisa, nem outra. Sem personalidade, A Festa de Formatura é um musical interminável até mesmo para os fãs do gênero, que costumam ter mais tolerância ao relevar deslizes para poder mergulhar em um universo de cinema e música por duas horas. Como admirador assumido de musicais, devo dizer: nem com muita boa vontade dá para curtir. Boa parte dos problemas vem, claro, do material original. Não assisti ao espetáculo no qual o filme é baseado, mas, julgando pela adaptação, a história em si é rasa, com dois núcleos fora de sintonia e povoada por personagens desinteressantes ou limitados a estereótipos. Ainda que se dê todos os descontos possíveis em função das liberdades criativas do gênero, a conta não fecha, pois as motivações dos protagonistas são fragilíssimas, e os conflitos descambam para discursos vazios ou para números musicais que tentam fazer graça com um timing cômico desregulado.
Autores das canções originais do espetáculo, Bob Martin e Chad Beguelin assinam o roteiro mostrando não ter aptidão para uma narrativa audiovisual, o que está evidente na (falta de) estrutura apresentada aqui: A Festa de Formatura parece terminar e recomeçar várias vezes, tornando-se quase uma tortura de tão maçante (a sensação desse vai e vem da história surge por volta da metade, quando tudo já parece estar encaminhado para o desfecho). Os problemas são elevados a uma nova potência quando descobrimos o quanto o filme é mal resolvido musicalmente, algo raro em um gênero que costuma pelo menos compensar problemas e frustrações com trilhas deliciosas. É possível encontrar boas coreografias e até atores se esforçando ao máximo para criar uma boa energia em cena, mas as músicas ilustram momentos óbvios com ainda mais obviedades, quando não interrompem o ritmo com melodias enjoativas (Just Breathe) ou com canções que são mero artifício para pontuar alguma virada na trama sem o mínimo de construção (Love Thy Neighbor). E não há economia: das letras abarrotadas de referências (Evita! O Milagre de Anne Sullivan! Broadway! As críticas do The Post!) aos números musicais protagonizados por pessoas que simplesmente não nos interessam (é de chorar de cansaço quando Andrew Rannels mobiliza todo o elenco de figurantes para cantar e dançar em um shopping center para marcar a transformação preguiçosa de vários personagens), A Festa de Formatura nos faz até esquecer que Nicole Kidman, completamente deslocada no número de Zazz, já interpretou com imenso vigor a eterna Satine de Moulin Rouge!.
Já que chegamos aos atores, são incompreensíveis as razões que levaram esse elenco a ler o roteiro e a acreditar que algo de bom poderia sair dele. Ora, não há explicação para uma atriz talentosa como Tracey Ullman aparecer de última hora com um manjadíssimo e mal construído arco de reconciliação. E o que dizer de Kerry Washington, cuja personagem muda de ideia em relação a um conflito central de um minuto para o outro, colocando toda a motivação dramática da trama na lata do lixo? Entretanto, é difícil ter participação mais constrangedora do que a de Nicole Kidman. Uma intérprete dessa estatura não deveria estar minimizada à posição de quase-figurante, onde a temos literalmente batendo latinhas para Meryl Streep dançar. Sua presença no musical jamais se justifica. Em contrapartida, não acho tão procedentes as críticas devastadoras feitas ao desempenho de James Corden, que apenas se escora na afetação e nas caricaturas encomendadas por Ryan Murphy. Muito se falou sobre a forma desrespeitosa com que ele representa o universo LGBTQIA+, mas há sim gays iguais ao que Corden interpreta, algo que afirmo por experiência própria. O problema é outro: aqui temos um comediante de talk show e não um ator, distinção inexistente para Corden. Tomara que, após Caminhos da Floresta, Cats e agora A Festa de Formatura, percebam que ele é uma figura inventada e sem muita afinidade com o cinema. Finalmente, Meryl Streep, o inegável destaque do filme como a vaidosíssima Dee Dee Allen, nos lembra que, às vezes, nem ela consegue salvar uma experiência tão desconjuntada e equivocada, o que é, aliás, um ótimo parâmetro para dimensionar a ressaca provocada pelo musical.
Ao tentar levantar a bandeira da diversidade, A Festa de Formatura se enfraquece até diante da lembrança de Glee, seriado cujo primeiro episódio foi exibido há mais de uma década e que, mesmo depois de tanto tempo, consegue ser mais arejado e contemporâneo em suas discussões. Ryan Murphy nunca se preocupou em fazer o chamado “filme-família”, e por isso mesmo a timidez com que trata todas as causas é assustadora. Um casal de lésbicas desfilando de mãos dadas embaixo de árvores coloridas e dando beijos tímidos enquanto as pétalas caem? Mais uma vez a história do filho adulto que se vê obrigado a procurar os pais que não aceitaram sua sexualidade? E tudo em meio à caretice colegial inerente à imensa parte dos longas norte-americanos sobre as tradições dos bailes de formatura? São dilemas e passagens arcaicas, temperadas por um roteiro que acredita ser representativo a partir de meia dúzia de palavras motivacionais, por uma direção cujo único brilho está no glitter aplicado no figurino dos personagens e por uma protagonista interpretada com total inexpressividade pela estreante Jo Ellen Pellman. Onde foi parar o Ryan Murphy que, como diretor de cinema, havia estreado com originalidade em Correndo Com Tesouras e comovido meio mundo com The Normal Heart? Mesmo com o sonolento Comer, Rezar, Amar, lançado em 2010 e adaptado do best-seller de Elizabeth Gilbert, Murphy foi capaz de registrar um sucesso de público estrelado Julia Roberts e emoldurado pelas paisagens de diversos cartões-postais. Já o que sobra para A Festa de Formatura é apenas dor de cabeça, inclusive quando, neste exato momento, sento para escrever o texto que você acompanhou até aqui. O veredito é dos mais fáceis: não há nada que consiga salvar minimamente o pior musical dos últimos anos.
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