“The Undoing”: minissérie da HBO frustra pelo enfoque equivocado dado à trama

Nicole Kidman e Hugh Grant como o casal rico e perfeito de The Undoing. Narrada como um thriller, minissérie perde sua potência ao não refletir devidamente sobre as aparências matrimoniais.

Originalmente idealizada como um drama, a minissérie The Undoing, da HBO, passou por reformulações quando o nome da diretora dinamarquesa Susanne Bier passou a ser cotado para a cadeira de direção. Em entrevista à jornalista e crítica de cinema Isabela Boscov, Bier afirmou que só embarcou no projeto quando o criador e roteirista David E. Kelley, já tendo escrito um esboço de roteiro para o episódio-piloto, topou encaminhar a trama mais para o thriller do que para o drama. A diretora, que, em 2011, levou para a Dinamarca o Oscar de melhor filme internacional com Um Mundo Melhor, considerou este novo enfoque fundamental para que The Undoing se tornasse uma experiência instigante, talvez pegando o embalo de seu trabalho anterior: o suspense Caixa de Pássaros, produzido pela Netflix. Como espectador, discordo com convicção da perspectiva proposta por Bier para The Undoing, visto que a minissérie se fragiliza do início ao fim exatamente por tentar construir tensão a partir de uma consistência dramática inexistente.

Tendo como base o romance “You Should Have Known”, de Jean Hanff Korelitz, a nova produção da HBO acompanha os dilemas de Grace Fraser (Nicole Kidman), renomada psicóloga nova-iorquina que vê a vida ficar de pernas para o ar quando o seu marido Jonathan (Hugh Grant) é acusado de assassinar a mulher com quem tinha um caso em segredo. E o grande nó dessa premissa é clássico: Jonathan se diz inocente apesar de todas as circunstâncias, testando a confiança da esposa e, claro, do espectador. É necessário um texto muito robusto e especial para sustentar a tônica desse tipo de proposta, onde há apenas a palavra de um personagem contra a de outro, e os casos mais bem sucedidos costumam ter raízes teatrais, como no maravilhoso Dúvida, onde Philip Seymour Hoffman vivia um padre acusado de ter relações impróprias com uma criança, ou no mais recente Luce, instigante drama com Octavia Spencer sobre a suspeita de uma professora acerca dos pensamentos supostamente violentos de um aluno.

Não é à toa que as dramaturgias mais provocadoras no tocante ao exercício da dúvida vêm do teatro, onde o texto é elemento fundamental, e a construção dos personagens precisa ser minuciosa para todo o funcionamento de uma história. Pois The Undoing, ao optar pelo domínio do suspense sobre o drama, não compreende o quanto seu personagens carecem de camadas. Roteirista de todos os seis episódios, David E. Kelley seguiu à risca o conceito proposto por Susanne Bier: ao invés de fornecer ao excelente elenco reunido um material minimamente complexo, ele se limita à criação de insinuações furadas e aos famosos cliffhangers, que nada mais são do que aquelas reviravoltas ao final de cada capítulo para deixar um gostinho de quero mais, mesmo quando, na maior parte dos casos, elas não façam muito sentido. E assim The Undoing entra em uma espiral de frustração por sempre tentar criar o sentimento de surpresa ou imprevisibilidade sem ter grande estofo do ponto de vista dramático.

Roteiro assinado por David E. Kelley se preocupa mais com as jogadas fáceis para surpreender ou despistar o espectador do que com o exercício em conferir camadas aos personagens.

A necessidade do drama ser bem explorado aqui vem da própria natureza de The Undoing, um relato sobre os conflitos internos de uma mulher que, levando uma rasteira inesperada da vida, descobre um marido bastante diferente daquele com quem foi casada durante anos. Ou seja, a essência está no matrimônio perfeito que logo dá lugar a uma relação tortuosa, onde Grace não só se defronta com o fato de que vinha sendo traída pelo marido como também com a ideia de que ele pode ser um assassino brutal. Esse jogo de aparências é mal explorado pelo roteiro porque David E. Kelley dá camadas aos personagens somente quando elas servem de muleta para alguma revelação e não como regra para um texto que tanto depende das impressões que todos nutrem ou passam a nutrir por Jonathan. Uma prova definitiva disso é a brevíssima participação de Rosemary Harris, uma atriz maravilhosa, mas limitada a uma espécie de coelho tirado da cartola aos 45 do segundo tempo para que a minissérie ressignifique importantes rumos que estão prestes a serem tomados.

Por se apoiar tanto na intenção de ser um thrillerThe Undoing poderia ao menos ter se assumido como aquilo que verdadeiramente é: um novelão que está mais para um suspense afetado exibido nas madrugadas do Supercine da Rede Globo do que para uma produção refinada com o selo HBO. Entretanto, há uma grande dificuldade da minissérie em reconhecer a sua essência, chegando até a uma certa desonestidade por querer convencer o espectador de que, apesar dos contorcionismos do roteiro e dos diálogos fraquíssimos, há alguma sofisticação no ar, como no plot envolvendo o personagem de Edgar Ramírez, que investiga Grace de forma quase obsessiva. É uma vertente do roteiro que, apesar das insistentes investidas, não chega a lugar algum e reforça a teoria de que certas jogadas servem apenas como muleta para que The Undoing crie algum tipo vazio de expectativa. A situação é pior ainda ao final de Trial by Fury, o penúltimo episódio, quando a minissérie aposta em uma inesperada reviravolta para, já nos primeiros minutos do capítulo seguinte, colocá-la abaixo. Tudo é uma longa brincadeira com o espectador, episódio após episódio.

Com direito a drama de tribunal e até perseguição de helicóptero, The Undoing teria sido mais eficiente caso estivesse disposta a assumir a sua natureza novelesca.

Na cadeira de direção, Susanne Bier sequer imprime o mínimo de estilo. Além de nunca ser elegante ou intrigante, sua atmosfera de suspense é das mais limitadas. A maneira que Bier encontra de explorar toda a confusão emocional de Grace é sempre focando nos olhos azulados de Nicole Kidman ou capturando a atriz como pequena e deslocada diante de cenários grandiosos, como o imenso apartamento onde seu pai, claro, toca piano à noite para reforçar a sensação de que os ricos também sofrem. São todas linguagens fáceis e pouco criativas, mas infelizmente cerimoniosas, o que induz o público a crer que deve existir algum tipo de requinte por trás de tudo. Não é preciso ir muito longe para ver o quanto The Undoing é, na verdade, mais preguiçosa e óbvia do que está disposta admitir. A própria estrutura trazendo flashbacks do crime em questão é cópia carbono do que vimos na primeira temporada de Big Little Lies, também criada por David E. Kelley: idas e vindas no tempo com aquele estilo conceitual “piscou, perdeu” para, no último episódio, o grande flashback até então fragmento ser revelado na íntegra com todas as respostas que esperávamos.

Colocando tudo na balança, sobra para o elenco a responsabilidade de dar substância ao enredo, e é importante deixar claro que The Undoing mostra como, às vezes, o talento de um intérprete por si só não é capaz de compensar o acúmulo de equívocos de um projeto. Portanto, não é surpresa ver Nicole Kidman se esforçando para dar o mínimo dimensão à protagonista sem conseguir elevar o resultado de The Undoing, enquanto coadjuvantes como Donald Sutherland e Lily Rabe amargam personagens no mínimo rasteiros. Também não são suficientes as boas performances do jovem Noah Jupe como o filho do casal protagonista e de Noma Dumezweni como a advogada de Jonathan. O único que chega perto de brilhar é Hugh Grant, naquele tipo de escalação que já é meio caminho andado para o acerto. Astro de populares produções britânicas, Grant se permitiu envelhecer frente às câmeras tomando riscos: ora explorou camadas muito mais sutis e complexas de seu carisma em projetos como Florence: Quem é Essa Mulher?, ora investiu em desconstruir a imagem de bom moço em papeis que evocam um outro lado dificilmente trabalhado na sua carreira, como é o caso de The Undoing. Com exceção do terço final do último episódio, onde fica no limite da canastrice, Grant é o ponto alto do elenco ao promover esse exercício dúbio em torno de sua imagem, provando que o tempo lhe fez muito bem como ator.

Para fechar a conversa, não há como deixar de lado The Bloody Truth, capítulo que encerra a trama. Não vou me ater à conclusão envolvendo a culpa ou a inocência de Jonathan (este é um capítulo à parte, impossível de ser discutido sem spoilers, mas que, em linhas gerais, é frustrante não pela resposta que dá, mas por ser tão mal calibrado diante da falta de complexidade da minissérie como um todo), preferindo tecer uma rápida percepção sobre o descontrole novelesco que toma conta de The Undoing. Tem de tudo: reviravoltas, planos secretos, revelações, respostas prontas, drama de tribunal, sequestro e até perseguição de helicóptero, tudo amontoado e sem desenvolvimento. É um anticlímax atrapalhado, apressado e difícil de levar a sério, como os finais datados de novelas da TV aberta. Sem dúvida, o prejuízo poderia ter sido muito menor caso The Undoing fosse um filme de 120 minutos, e não essa saga esticada, descompassada e vazia de seis horas que colocou no colo da HBO uma das maiores decepções de 2020.

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