
Pacarrete, de Allan Deberton, traz desempenho memorável de Marcélia Cartaxo.
Às vésperas de seus 200 anos, a cidade de Russas, no interior do Ceará, prepara uma grande celebração. E Pacarrete (Marcélia Cartaxo), uma peculiar bailarina já na casa dos 60, quer fazer parte dos festejos: como seu presente para o povo, ela prepara uma apresentação de ballet pensada como o número de uma mulher só. No entanto, Pacarrete, que de fato existiu na vida real, é tida como a louca da cidade, e a Secretaria Municipal de Cultura não a quer de jeito nenhum na festa, com a desculpa de que ballet é tedioso para o povo e que essa senhora supostamente desvairada seria vaiada em pleno palco caso chegasse a se apresentar. Mas a bailarina, outrora professora e artista atuante em Fortaleza, não desistirá de seu objetivo, mesmo que tudo seja tão difícil (para ela e para todos).
É importante grifar o supostamente desvairada porque Pacarrete, longa-metragem de estreia do cineasta Allan Deberton, jamais julga sua personagem, e sim convida o espectador a entrar em seu universo, mais lúcido que os demais, propondo a tese de que talvez, no final das contas, ela seja vítima de uma sociedade intolerante a tudo aquilo que lhe parece diferente. Sem optar pela panfletagem, o filme dá voz a uma senhora que, representando os tantos oprimidos que gritam e jamais são ouvidos, é marginalizada pela própria cidade onde vive. Ela resiste através da arte: não há nada mais desolador para Pacarrete do que ver uma fita VHS de ballet estragar ou então do que não ter como plateia nem mesmo a sua irmã ou a sua empregada em um momento improvisado de ensaio. Quando indagada sobre o que fez ao longo da vida, ela enche o peito para dizer que foi artista e professora. E isso é muito bonito.
Como estudo de personagem, Pacarrete descortina a vida da protagonista basicamente dentro de sua própria casa, utilizando-se de raros momentos na cidade ou na vizinhança apenas para dar novas e importantes pinceladas nesse retrato muito humano que preza pela objetividade, sem se dispersar com qualquer outra subtrama, ainda que existam personagens suficientemente interessantes para gerar mais material. Um deles é o amigo vivido por João Miguel, que representa o sopro de esperança e generosidade em uma comunidade hostil. Já dentro de casa, Pacarrete conta com a irmã Chiquinha (Zezita Matos) e a empregada Maria (Soia Lira), em um convívio que captura todo o afeto de um universo feminino ao mesmo tempo muito particular e universal.
Para registrar a rica gama de sentimentos da protagonista e de todos os personagens que estão em sua órbita, o diretor Allan Deberton mergulha em camadas inegavelmente teatrais, mas que nunca destoam do conjunto. Pelo contrário: lúdico, colorido, cômico e por vezes assumidamente exagerado, Pacarrete vai de um gênero a outro e de uma abordagem a outra com uma naturalidade impressionante e com uma delicadeza tremenda ao estender o tapete vermelho para a alma feminina, para a força da arte e, por que não, para o fascínio que é ver um ser humano em toda suas qualidades, fraquezas e incompletudes. Tão cômico quanto dramático, o longa faz essa inflexão entre gêneros com afetividade, o que é no mínimo surpreendente, considerando que temos quatro pessoas envolvidas na criação do roteiro (André Araújo, Natália Maia, Samuel Brasileiro e o próprio Deberton).
A veterana Marcélia Cartaxo, responsável por dar vida à Pacarrete de maneira assombrosa, teve aulas de ballet e francês para interpretar uma protagonista que, assim como a rainha Anne de Olivia Colman no recente A Favorita, poderia cair na histeria por justamente ter uma certa insanidade como matéria-prima para desdobramentos cômicos e dramáticos. Entretanto, em um tour de force que abarca ainda questões inerentes ao envelhecimento e ao eterno saudosismo pela juventude e pelos aplausos, Cartaxo cria uma personagem que ficará para a posteridade não só na sua carreira, mas também no cinema brasileiro. Durante o 47º Festival de Cinema de Gramado, onde o filme fez a sua estreia nacional, a atriz foi ovacionada desde a primeira cena projetada no Palácio dos Festivais, sendo comparada, em nível internacional, à grandiosidade de outras atrizes como Giulietta Masina, Gloria Swanson e Meryl Streep. Marcélia merece. E graças a um filme que é tão memorável quanto ela.
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