“Beleza Fatal” é realmente o novelão de que o Brasil estava precisando?

A última novela que acompanhei com absoluta devoção foi Avenida Brasil, lá em 2012, quando consumíamos audiovisual de maneira bem diferente. Desde então, nos últimos anos — e, especialmente, nas produções pós-pandemia —, não embarquei mais neste formato que tanto define o público brasileiro. Minha impressão é que não há espaço para contemplação: hoje, tramas precisam estar sempre recheadas de ganchos e reviravoltas, mesmo em detrimento do compromisso com a realidade e com a própria lógica interna de suas dramaturgias. É crime pra cá, trapaça pra lá, traição no meio, planos mirabolantes e um punhado de malabarismos só para manter uma história indo em frente, custe o que custar, naquilo que produtores e roteiristas acreditam ser a solução para prender a atenção de plateias dispersas diante da hiper conexão.
Ao menos para mim, ver novelas virou sinônimo de um constante exercício de suspensão de crença, o que até acho tolerável, desde que a recompensa seja muito boa, o que não tem sido o caso na grande maioria das produções recentes. Se os folhetins televisivos se veem em completa crise, seja ela criativa ou comercial, agora eles também precisam lidar com uma importante novidade: os streamings passaram a desbravar o mercado das novelas, e Beleza Fatal, a produção original Max que exibiu seu capítulo derradeiro nesta última sexta-feira (21), acaba sendo um marco em uma discussão acalorada em meio à crise catastrófica de, por exemplo, Mania de Você, que registrou há poucas semanas a pior audiência de uma novela das nove para a Rede Globo, desbancando Travessia, de Glória Perez, não por acaso, outra produção bastante recente.
Beleza Fatal mexe em muitos calos porque mobilizou o público: nas mídias sociais, foi comentada, virou meme, revigorou o embalo do ritual coletivo de se assistir semanalmente a um programa e, com mais liberdade para tratar de temas considerados espinhosos pela TV aberta, tocou em questões que refletem os dias atuais. Trata-se de uma novela que, assim como a ótima Pedaço de Mim, da Netflix, repensa formatos tradicionais, a começar pela existência de núcleos mais enxutos e um número menor de episódios. É fácil e divertido acompanhar Beleza Fatal, pois, com economia, pouco sobra em cena e todos os personagens criados pelo roteirista Raphael Montes estão ali para, de um jeito ou de outro, colaborar para que a história avance.

Há outro aspecto ao mesmo tempo importante e desafiador: no formato de streaming, a resposta do público não influencia no andamento da história, como acontece na TV aberta. Tudo já está escrito e filmado, e isso pode ser tanto uma bênção quanto uma maldição. Sem o termômetro do público, é impossível dosar mais ou menos os personagens e até mesmo repensar os rumos de uma trama a partir dos índices de audiência. Em suma, se a proposta de uma determinada novela pega, o sucesso, em tese, está garantido até o fim. Por outro lado, se não engrena, é impossível colocar mudar a rota. Felizmente, Beleza Fatal acerta a mão e mantém um fôlego admirável ao longo de suas dezenas de episódios, convicta de seu estilo e de sua proposta.
A minha relação conflituosa com a novela de estreia da Max reside na ideia de que ela, apesar dos inegáveis acertos, ainda carrega muitos vícios da TV aberta, mas falemos sobre isso daqui a pouco. De forma resumida, Beleza Fatal explora a linha tênue entre justiça e vingança, com foco no plano traçado por Sofia (Camila Queiroz) para derrubar Lola (Camila Pitanga), responsável por colocar sua mãe injustamente na prisão e, depois, mandar assassiná-la. Sofia vive com a família Paixão, também assombrada por uma tragédia pessoal: a morte da filha Rebeca (Fernanda Marques) pelas mãos de Rog (Marcelo Serrado) e Benjamin (Caio Blat) durante uma cirurgia plástica. E é claro: Lola não poderia deixar de estar envolvida com esse núcleo, liderado pela poderosa família Argento.
Metade do êxito de Beleza Fatal está na concepção dos personagens. Se Lola cumpre com folga o papel de uma vilã clássica, inescrupulosa e que adoramos odiar, o texto de Raphael Montes busca também conferir uma fragilidade imensa ao também vilão Benjamin ou, então, doçura e cumplicidade ao casal Elvira (Giovanna Antonelli) e Lino (Augusto Madeira). A escrita faz a trama partir de dilemas já consagrados — no caso, a eterna (e nada sutil) luta entre o bem e o mal — coexistir com perspectivas contemporâneas, entre elas, a naturalidade com que são discutidas questões sobre sexualidade identidade e sexualidade de gênero, seja com personagens abordados causas mais, digamos, panfletárias, ou com outros que se apresentam bissexuais sem que isso seja uma questão para os outros.
Muito do envolvimento despertado pelos personagens se deve à ótima escalação do elenco principal. Enquanto Camila Pitanga se diverte horrores na composição de Lola (e Beleza Fatal não poupa esforços para torná-la uma personagem marcante com bordões, desfile de figurinos e todo tipo de maldade), Caio Blat acerta em cheio na inegável mediocridade de seu Benjamin, um quase-homem com grandes aspirações, mas sem nenuma vocação para um dia minimamente alcançá-las. Outro que se diverte é Marcelo Serrado, muito feliz na caricatura das toscas facetas de um personagem detestável, bem como Giovanna Antonelli e Augusto Madeira, que esbanjam química e carisma como um casal humilde, apaixonado e pelo qual é fácil torcer.

Ainda assim, meu grande destaque vai para uma coadjuvante: Júlia Stockler como Gisela. Ela dá humanidade, camada e complexidade a uma personagem suscetível a um vitimismo piegas e sem muito alcance dramático. Sua jornada de autoconhecimento e de luta contra um relacionamento grotesco de tão abusivo é das mais bonitas da novela, tornando fácil a missão de solidarizarmos com uma personagem que, desde sempre sabemos, não merece passar por tamanho sofrimento pelas mãos do marido e de uma família a qual claramente não pertence. Stockler trata com delicadeza as fraquezas de uma mulher inerte diante do que lhe cerca e a gradativa força que ela adquire conforme abre os olhos para a realidade.
Não compartilho do mesmo entusiasmo pelo encadeamento da dramaturgia, cuja embalagem pop e camp se traduz melhor na direção geral de Maria de Médicis, profissional com vasta trajetória televisiva desde o início dos 2000, tendo já dirigido títulos como as minisséries JK e Queridos Amigos e novelas como Paraíso Tropical e Cheias de Charme. Em termos de roteiro, Beleza Fatal exige desprendimento integral da realidade por parte do espectador. Sobram conveniências em todas as storylines, que, caso fossem submetidas ao filtro do bom senso, jamais passariam da primeira leva de episódios. E aí mora a minha relação conflituosa com a novela: ela segue presa a saídas fáceis, exageros e suspensões de crença que, em grande parte, minaram a credibilidade do formato na TV aberta em anos recentes.
O formato condensado de episódios — Beleza Fatal se resolve em 40, contra as muitas vezes tradicionais centenas do gênero — ameniza o problema porque o investimento de tempo de quem assiste acaba sendo menor, porém, um comprometimento maior com a lógica cairia bem. O policial que não resolve absolutamente nada vivido por Enzo Romani é o menor dos problemas: do início ao fim, há um infinito entra e sai da delegacia e da prisão, como se as pessoas estivessem lá a passeio, advogados e investigadores mudando de lado conforme necessidade da trama para surpreender, incriminações repletas de furos e uma facilidade tremenda na execução de qualquer plano, sejam eles invasões a bancos, hackeamento de câmeras ou “simples” assassinatos. Se a consequência existe apenas diante de eventuais vontades do roteiro, como é possível levar a sério os perigos e as ameaças da história?

Há parte do público que celebra a “inspiração” e a “referência”, mas Beleza Fatal não é exatamente original ao fazer uma colagem de outros formatos e conflitos bem sucedidos na TV e no cinema. São um tanto excessivas as semelhanças com a premissa de Avenida Brasil, por exemplo, que ganhou o Brasil ao mostrar a história de, vejam só, a história de uma jovem que, ao longo de uma vida, traça um plano de vingança contra quem destruiu sua infância. Lá pelas tantas, Beleza Fatal também se move à la Parasita, o Oscarizado drama do sul-coreano Bong Joon-Ho sobre uma família pobre infiltrada no dia a dia de uma família rica. E o que dizer dos inegáveis toques de Succession na construção de Benjamin, o primogênito errático, fraco e mimado que tenta a todo custo conquistar a aprovação do pai e provar que merece estar na linha sucessória dos negócios da família?
O último capítulo, exibido de forma isolada pela Max, ao contrário dos outros, liberados a cada semana em blocos de cinco pelo streaming, colocou no liquidificador outros elementos de natureza novelesca, a exemplo do clássico “quem matou?”. Casamentos, julgamentos e viagens de última hora para o exterior também não faltaram. No entanto, Beleza Fatal acabou menos pulsante do que o esperado e amarrou às pressas o grande ponto de inflexão da novela: o de como a mocinha Sofia acabou embebedada pela vingança e se enraizou na mulher que sempre desejou destruir. Ótima provocação, inclusive bem defendida pela interpretação de Camila Queiroz. Já a execução… Nem tanto.
Somando acertos e fragilidades, a primeira novela da Max termina, sim, no saldo positivo — e o melhor de tudo: com o aval do público. Não chega a ser o novelão que o Brasil estava precisando como se chegou a anunciar pelas mídias sociais porque, apesar de conseguir perfilar bem o consumidor dos dias de hoje, ainda não dá um salto em termos de dramaturgia, preservando, repito, muitos vícios da TV aberta recente, tão ávida a priorizar a atenção em termos de números de audiência e não necessariamente em fidelização do público através de uma robustez dramática. Para uma estreia ambiciosa, no entanto, a Max sai ganhando — e, diante do sucesso, não faltará tema de casa e trabalho aos envolvidos.
“Hacks”, terceira temporada: libertação e egoísmo andam de mãos dadas no ato de se reinventar?

De personalidades e gerações muito distintas, Deborah Vance (Jean Smart) e Ava Daniels (Hannah Einbeinder) encontram um denominador comum na comédia. A primeira é uma veterana do standup comedy adorada em todo o país, enquanto a segunda tenta dar um novo sentido ao seu dom cômico após um momento de baixa na vida profissional. Hacks, exibida desde 2021 pelo Max, parte do inusitado encontro entre as duas, quando Ava aceita a missão de se tornar roteirista de Deborah, mas, aos poucos, revela outras camadas que vão além de uma mera brincadeira acerca do fazer comédia. E, se há uma que chama atenção, especialmente agora no terceiro ano da série, arrisco dizer que é a da discussão sobre os desafios de se reinventar.
A série criada por Lucia Aniello, Paul W. Downs e Jen Statsky é, por definição, o relato de uma jornada de reinvenção — afinal, Deborah contrata Ava justamente porque precisa de novas ideias e perspectivas para se manter revelante em um showbusiness nada generoso com o envelhecimento, muito menos com o das mulheres —, e as duas primeiras temporadas foram exitosas no desenho das personagens e na interação entre elas, que sempre navegaram por altos e baixos em uma relação de amor e ódio no bastidores. Com a ajuda de Ava, Deborah conseguiu se reinventar: subiu mais uma vez aos palcos, reviveu a glória de outrora, voltou a ser sucesso comercial país afora e reposicionou a força de seu nome em um mercado cada vez mais refém de cifras e redes sociais.

De volta ao topo, o que resta para Deborah e, mais especificamente, para Hacks? A terceira temporada, cujo último episódio foi exibido no dia 30 de maio começa morna, sugerindo que, talvez, a série corra o risco de cair na repetição. A sensação de déjà vu se dá por mais uma vez termos a personagem de Jean Smart atrás de um objetivo aparentemente difícil que, ao final, será contornado — no caso, a cadeira de apresentadora do talk show Late Night, cargo que, segundo Deborah, sempre foi o seu maior sonho profissional. Também há a reaproximação com Ava para manter aquecido aquele que é um dos maiores atrativos da série: o convívio entre as duas.
Mais do mesmo, no final das contas? Não exatamente. A terceira temporada encontrou, ela própria, o seu caminho para uma espécie de reinvenção. Diante de um desafio muito mais difícil do que os anteriores, Deborah deixa aflorar novos medos e inseguranças, além de se deparar com algumas urgências e decisões inerentes ao envelhecimento. É o caso do reencontro com Kathy (J. Smith-Cameron), irmã por quem nutre um irremediável desafeto há décadas e que não faz mais parte da sua vida. Como bem diz Deborah, há certas coisas que, com o passar da idade, já não podem ser deixadas de lado, pois pode ser que não haja mais tempo em vida para que sejam resolvidas.
Só que Hacks também é sobre as travessias de Ava — e, nesta terceira temporada, ela tem uma das mais importantes. Ainda que o seriado tenha seus maiores holofotes na figura de Deborah, é sempre importante prestar atenção em Ava, pois ela, de um jeito ou de outro, representa o olhar do espectador diante de todo enredo. Ora, assim como ela, também temos sentimentos contraditórios em relação a Deborah, uma figura deveras egoísta, autocentrada, sem escrúpulos, entre outras coisas. Como poderíamos ter algum tipo de simpatia ou diversão por ela se não fosse pelos olhos de Ava, que busca sempre encontrar o brilhantismo, a humanidade e a verdade em uma mulher deveras detestável?

A epítome desses sentimentos contraditórios está em Bulletproof, último episódio da terceira temporada, quando Ava se depara com uma traição de Deborah. O momento é doído porque, estando na posição de Ava, nós também sempre quisemos acreditar que há uma Deborah diferente por trás do esnobismo rico, privilegiado e arrogante de uma comediante famosa. Assim como ela, caímos na lábia da personagem e, por diversos momentos, esquecemos de que Deborah, ao fim e ao cabo, não consegue se colocar no lugar do outro. “É preciso ser egoísta”, afirma a veterana em um dos melhores momentos do episódio, escancarando o lado mesquinho que torcíamos para não fazer mais parte de sua personalidade, o que não deixa de ser uma ilusão, pois, uma vez que Deborah faz tudo o que faz para a filha, por exemplo, como haveria de ser diferente com Ava?
Ao longo dos nove episódios dessa temporada, os roteiristas nos levaram, sim, a crer que a personagem estava em uma rota de transformação. O episódio em que Deborah enfrenta a retaliação de estudantes por suas antigas piadas racistas faz com que a comediante revise muita coisa, bem como quando ela, tomando bons drinks com alguns de seus contemporâneos da profissão, percebe a agressividade de certas piadas destinadas a grupos minoritários, constatação possível apenas pelo convivío próximo com a bissexualidade de Ava. Acontece que Deborah muda bastante, mas, quando o dia chega ao fim, ela continua a mesma em inúmeros aspectos.
Com um texto aparentemente “simples”, Hacks encapsula questões mais afiadas em uma terceira temporada que termina com o melhor gancho da série. Como um todo, a nova leva de episódios nem sempre acertou — Deborah nos palcos faz muita falta, coadjuvantes como o Marcus de Carl Clemons-Hopkins decaíram em aproveitamento e a participação de Helen Hunt foi frustrante —, mas esse componente que enxerga como uma reinvenção particular pode, na verdade, descambar para um ato de egoísmo em que qualquer preço deve ser pago para se alcançar um objetivo particular deu sentido a tudo mostrado na trama até aqui. É tanto sobre showbusiness quanto sobre qualquer mundo corporativo por aí. Hacks, assim como Deborah Vance, conseguiu se reinventar nesse terceiro ano, com a diferença de não apelar ao egoísmo. Pelo contrário: sua cena final é um clímax maduro e esperto para que nós, espectadores, esperemos o quarto ano com a melhor das expectativas.
Das páginas para as telas, “Fim” medita sobre a vida a partir da morte e é excelente adaptação de Fernanda Torres para seu próprio romance

Dez anos separam o lançamento do livro Fim e a estreia de sua versão para o audiovisual. Há várias alterações na adaptação, e elas sempre preservam a essência da obra original.
Lembro de ler Fim, romance de estreia da atriz Fernanda Torres, com grande deslumbre. À época, mais especificamente no ano de 2013, Fernandinha já havia se provado o suficiente, seja com suas consagrações como intérprete, aventurando-se na escrita de roteiros como o de Redentor ou trabalhando sua escrita observadora e apurada em crônicas assinadas para o jornal Folha de São Paulo e para as revistas Piauí e Veja Rio. Só que escrever um romance é uma história completamente diferente e, por que não, uma ambição que poderia descambar para um mero capricho. Isso se não estivéssemos falando de Fernanda Torres. Fim não só alcançou o status de best seller com centenas de milhares de cópias vendidas como ganhou um prêmio Jabuti, o mais prestigiado do mercado brasileiro. Ou seja, ela, mais uma vez, provava ser imparável e uma das nossas artistas mais múltiplas em atividade.
Dez anos depois, o raio volta a cair no mesmo lugar com a adaptação de Fim para uma minissérie estruturada em dez episódios, todos também escritos por ela. Ser uma boa adaptação por si só já seria o bastante, pois o romance homônimo tem uma estrutura narrativa tão única e uma condução tão própria de Fernanda para o formato literário que o transpor para o audiovisual seria um desafio difícil de resolver. Como roteirista, entretanto, sua opção foi das mais sábias e desprovidas de vaidade, dispensando o zelo excessivo com material original para a escritora dar lugar à roteirista. Ao longo de seus episódios, Fim traduz na tela a vocação folhetinesca e rodrigueana de sua premissa com linguagem própria, não deixando vestígios de traços literários ou algo similar. É uma adaptação com várias alterações em formato, mas preservando o frescor de sua essência.

Fábio Assunção e Marjorie Estiano são Ciro e Ruth, um dos tantos casais em transformação que Fim explora a partir de idas e vindas no tempo.
A narrativa deixa de ter um personagem como foco a cada episódio para misturar todos eles com idas e vindas no tempo, além de uma adição mais do que acertada: as mulheres em pé de igualdade com os homens, o que garante que a versão em minissérie de Fim tenha como norte as relações afetivas vividas por Ciro, Neto, Álvaro, Ribeiro e Silvio, o quinteto de boêmios cariocas que, ao atravessar décadas a partir dos anos 1960, experimenta todas as surpresas e transformações inerentes à vida como a conhecemos. O roteiro é exitoso em muitos aspectos, a começar pela notável habilidade em transitar entre pelo menos uma dezena de personagens e diferentes linhas temporais sem causar confusão. Pelo contrário. As diversas portas abertas por Fim só colaboram para sublinhar a proposta de falar sobre a vida por meio da morte e, principalmente, sobre o que fazemos (ou deixamos de fazer) com a irrefreável passagem do tempo.
Não há como assistir à minissérie sem tentar se encontrar em algum daqueles personagens — ou melhor, em algum daqueles pares (trios?). Do casal apaixonado e fiel até a morte de um deles, passando por outro que desconstrói a ideia de que a vida finalmente entra nos trilhos após o casamento, ao mulherengo convicto e independente que abandona a mulher e os filhos para viver como sempre bem entendeu, Fim nos lembra de que não existem modelos certos ou errados de relacionamentos e que, na verdade, são as nossas decisões em torno deles que moldam boa parte de quem nos tornamos. Nesse sentido, o vai e vem entre os diferentes tempos jamais se apresenta como mera muleta para revelar segredos ou montar uma intrincada ciranda de afetos, e sim como uma excelente ferramenta dramática, pois ao encontrarmos os personagens já envelhecidos, decadentes ou à beira da morte, a experiência de vê-los tão jovens, vivos e otimistas se torna no mínimo agridoce.
Sob o comando dos diretores Andrucha Waddington e Daniela Thomas, o elenco reflete a harmonia da minissérie como um todo. Na realidade, é um verdadeiro prazer acompanhar a diversidade de talentos e instintos de intérpretes tão diferentes e complementares entre si. Como Ciro e Ruth na juventude, Fábio Assunção e Marjorie Estiano esbanjam carisma para, com o passar dos anos, mergulharem nas dores e frustrações de um casal diante do desmoronamento do seu castelo de conto de fadas. Já na pele de Neto e Célia, Heloísa Jorge e David Junior traduzem o afeto, mas também a firmeza, de quem mostra que, sim, o “felizes para sempre” é possível quando tudo é conversado às claras. Por outro lado, Thelmo Fernandes, como o tragicamente ingênuo Álvaro, e Debora Falabella, dando vida à uma afiada Irene, mostram os machucados e desencontros de duas pessoas unidas por mera pressão das convenções da época. Por fim, enquanto Emilio Dantas captura a eterna falta de perspectiva afetiva de Ribeiro, Bruno Mazzeo (em seu melhor momento) e Laila Garin são ótimos ao contrastar as diferenças de duas pessoas com visões de mundo muito diferentes e que só concordam em discordar sobre a forma como enxergam a vida e suas responsabilidades.

Destaque dado a personagens femininas garante que Fim não seja celebração masculina em épocas marcadas pelo machismo normalizado.
Além de dividir a direção dos episódios com Daniela Thomas, Andrucha Waddington ficou a cargo de toda a concepção artística de Fim, uma missão árdua, tendo em vista as várias décadas contempladas, o fato de o elenco permanecer o mesmo durante toda trama e o próprio tom a ser empregado diante de um material amplo em sentimentos e personagens. Para isso, ele se utiliza de uma parte técnica primorosa que também captura em detalhes o bairro de Copacabana ao longo dos anos. A direção de arte assinada por Kiti Duarte e Rafael Cabeça, por exemplo, é meticulosa na reconstituição de época, assim como a trilha sonora de Gabriel Ferreira e do mestre Antonio Pinto cadencia os diferentes gêneros explorados com temas nada óbvios, como aquele marcante que encerra cada um dos capítulos. Andrucha concebe Fim artisticamente garantindo a alternância de fases da trama sem artificialismos, e isso é muito importante, pois evita distrações e garante fluidez na maneira como a minissérie contextualiza o espectador.
Aos 32 anos, tenho a felicidade de preservar grandes amigos, e Fim me pega muito nesse aspecto. Além de encenar os momentos de festa e diversão experimentados por Ciro, Álvaro, Neto, Silvio e Ramiro, a história coloca os amigos em conflito com a finitude de suas juventudes, de seus laços e, claro, de suas vidas. Por que um deixou esse plano antes do outro? Quem será o próximo? Em que momento eles deixaram de ser incansáveis foliões para se tornarem dependentes de remédios? Como a vida foi distanciando pessoas que um dia já foram tão íntimas? Impossível não se colocar no lugar deles — e no de suas esposas e namoradas, figuras essenciais para que Fim não seja a celebração de homens em uma época de machismo normalizado, mas sim daquilo que Fernanda Torres chama de “epitáfio do macho”. Se realmente não houver outra vida, eles todos se deparam com a conclusão aterradora de que certos erros nunca poderão ser consertados e de que biografias não podem ser reescritas. O que resta é, parafraseando a canção “Divino Maravilhoso”, seguir atento e forte, sem medo de temer a morte — porque, afinal, ao contrário do que diz Álvaro em uma das cenas mais bonitas de Fim, ela deveria, sim, ensinar alguma coisa a todos nós.
Desfecho de “Ozark” é amargo, incômodo e, por isso mesmo, totalmente fiel à trajetória da série

Jason Bateman e Laura Linney em Ozark: episódios finais da série estrearam no último dia 29.
Finais de série são sempre um assunto muito complicado porque costumam ser julgados por aquilo que o público gostaria de ver e não por aquilo que de fato faz mais sentido para a história. Lembro, particularmente, de me sentir deslocado ao ter apreciado o desfecho de The Good Wife, por exemplo. Não era um final de grandes ideias ou muito menos de sofisticada construção, mas servia perfeitamente ao importante propósito de não desvirtuar a trajetória da protagonista e permanecer convicto até o último minuto de quem ela havia se tornado ao longo de sete temporadas. O público detestou, e o mesmo parece estar acontecendo com a última temporada de Ozark, cujos episódios derradeiros foram disponibilizados no último dia 29.
Menos popular do que merecia ter se tornado junto ao público da Netflix, a série criada pela dupla Bill Dubuque and Mark Williams começou com repercussão comedida até mesmo entre crítica e prêmios. O que talvez explique o reconhecimento tardio a Ozark seja o tempo que boa parte da plateia levou para compreender que defini-la como a “Breaking Bad da Netflix” era definitivamente um equívoco. Desde o primeiro ano, os roteiristas já eram destemidos em escapar de qualquer semelhança com o seriado de Vince Gilligan. Isso porque, em sua própria superfície, Ozark já fazia diferente: a jornada de Marty Byrde (Jason Bateman) nunca foi de deslumbramento com o crime, e as naturezas escusas de seu trabalho eram reveladas aos filhos já na arrancada.
No que podemos chamar de baixa fervura, Ozark começou a descentralizar a atenção em Marty e a enredar pessoas próximas que, de cúmplices silenciosas da sua atividade de lavagem de dinheiro, passaram a fazer parte daquele jogo, caso de Wendy Byrde (Laura Linney), uma das personagens com as camadas mais interessantes e provocadoras da trama. À medida em que o círculo do crime se abria e não parava de jogar pessoas para dentro dele, Ozark criava um sentimento crescente de sufocamento, muito porque sua ação e seu suspense sempre rejeitaram espetáculos estrondosos. Na verdade, tudo parecia ter o mesmo senso de urgência, trazendo uma atmosfera de incômodo cotidiano que não sabíamos exatamente de onde vinha e que fazia com que o espectador se sentisse em apuros tanto quando a família Byrde.

Ascensão de Wendy e sua relação com Marty é um dos pontos altos do seriado.
O jogo se agrava quando Wendy passa a tomar gosto pela coisa, naquele que pode ser o único eco minimamente comparável a Breaking Bad — e, ao mesmo tempo, é curioso como o Walter White de Bryan Cranston se tornou ícone de cultura pop enquanto Wendy é, com frequência, tida como uma personagem desagradável. Além de dar os grandes momentos que uma atriz do calibre de Laura Linney merece, como se ela interpretasse a sua própria versão de Lady Macbeth, os novos movimentos da personagem acabam ditando todos os rumos da série. É impressionante o engrandecimento de Wendy episódio a episódio, desafiando, em viradas muito orgânicas, até mesmo o seu marido, que, a partir de uma performance muito generosa e sem vaidades de Jason Bateman, cede espaço a ela primeiro por conveniência e, logo após, por não ter mais controle sobre quem a esposa se tornou.
Para dar conta de um emaranhado de crimes e personagens, Ozark nunca teve medo de tomar decisões drásticas, sem que isso parecesse muleta ou uma opção do choque pelo choque. O desfile de participações especiais sempre contribuiu para a construção da narrativa e nos brindava com atores que tiraram o melhor de seus personagens, caso de Janet McTeer e Tom Pelphrey, ambos com excelentes momentos na terceira temporada e solenemente ignorados pelas premiações. Eles foram marcantes complementos a um elenco fixo já brilhante por si só, em que se destaca a força das intérpretes femininas, devidamente valorizadas por um roteiro que fez questão de colocá-las no centro de todos os conflitos (e aqui não posso deixar de citar, claro, a marcante Darlene, vivida com visceralidade por Lisa Emery).

A trágica história de Ruth Langmore carrega os maiores vislumbres de emoção da trama.
No meio da frieza e do calculismo inerentes a uma vida encharcada de crimes, Ozark aplicou sua cota de emoção na trágica Ruth Langmore. Única figura da série definida pelo mínimo de afeto, Ruth foi magnificamente interpretada por Julia Garner como essa menina com a qual a vida foi muito injusta, desprovida de qualquer acolhimento familiar e de condições financeiras que pudessem lhe tirar do mundo à margem em que vivia. A personagem estabeleceu uma dinâmica das mais interessantes com Marty Byrde, caminhando na fronteira entre o ressentimento e o carinho por esse homem que ela esperou cumprir o vazio paternal de sua vida. De um jeito muito peculiar, Ozark foi, aqui e ali, um retrato sobre as relações familiares tortuosas que a vida nos dá, tema também explorado pelos Byrdes e até mesmo pelo cartel mexicano dos Navarros. Conseguir propor esse tipo de leitura a partir de personagens tão difíceis de empatizar é outro mérito dos roteiristas.
Voltando, enfim, ao desfecho, é importante celebrar como os produtores souberam fazer algo óbvio, mas cada vez mais restrito a poucos programas atuais: parar na hora certa. Ainda que o terceiro ano tenha sido o mais popular de Ozark, já ficava evidente que os roteiristas estavam esticando a corda, precisando inclusive trazer novos personagens fixos para movimentar a trama ao invés de apenas complementá-la. Na quarta temporada, prolongada para 14 episódios e dividida em duas partes, a sensação foi um tanto parecida, principalmente porque o programa entregou conclusões menos explosivas do que o esperado. Difícil saber, aliás, o que foi criativo ou comercial em relação a momentos como o do flashforward que abre a temporada e se revela um inexplicável maneirismo. Ir além da quarta temporada fragilizaria demais o projeto, tanto pelo fato de a série ser refém de uma trama que precisa ser bem amarrada em vários desdobramentos quanto pela verossimilhança.
Felizmente, o ponto final foi colocado em A Hard Way to Go após uma última temporada centrada, com muita justiça, em Ruth Langmore e nas diferenças com que Marty e Wendy lidam com os gargalos de situações cada vez mais escabrosas. O episódio vem desagradando a crítica e os fãs do seriado, em função, ao meu ver, dos roteiristas terem feito o que precisava ser feito, sendo fiéis à série como um todo. Os personagens de Ozark sempre levaram uma vida difícil de ser vivida sem consequências ou alentos, e seria incoerente um caminho diferente para a reta final. Não sei se as pessoas estavam vendo a mesma Ozark do que eu, mas um final bonitinho, bem amarrado e de momentos resolutivos jamais esteve no horizonte. Para além da coesão estética e de ritmo mantida ao longo de quatro temporadas, o programa ficará marcado por ter preservado a essência do que queria contar do início ao fim, mesmo que isso tenha lhe obrigado a tomar decisões desagradáveis aos olhares do público, mas de acordo com o lado mais sombrio, cínico e amargo das quatro temporadas. É, portanto, um final que espera do público a maturidade que a série sempre lhe confiou.
De Woody Allen a Stephen King, um giro por algumas das séries e minisséries mais recentes

“Allen Contra Farrow” (HBO Max, minissérie)
É realmente possível desassociar uma obra de seu autor? Os anos passam e, até hoje, não há um consenso em relação a essa discussão, ainda mais quando ela envolve nomes como o de Woody Allen, cineasta admirado por incontáveis gerações com seus mais de 50 longas-metragens como diretor. Minissérie original da HBO, Allen Contra Farrow vem para outra vez cutucar fundo as feridas envolvendo o suposto abuso sexual que Woody teria cometido contra a sua filha adotiva Dylan Farrow e outras diversas histórias bastante problemáticas, como o fato de ele ter largado a esposa Mia Farrow para namorar e depois casar com sua ententeada Soon-Yi Previn, uma adolescente na época em que os dois começaram a se relacionar enquanto Woody já estava na faixa de seus 56 anos. Incompreensivelmente, há quem critique a minissérie por ela tomar partido, e esse julgamento se mostra equivocado por duas razões: além de Woody Allen ter se recusado a participar do projeto, as provas, depoimentos, hipóteses e análises trabalhadas pelos diretores Amy Ziering e Kirby Dick são tão consistentes que fica difícil acreditar que Woody seja um mero inocente e que tudo não passe de uma armação das mais engenhosas contra ele.
Durante quatro episódios, Allen Contra Farrow é detalhista ao defender suas teses, partindo até mesmo para o plano cinematográfico, onde analisa os diversos filmes em que Woody Allen encena a relação de homens mais velhos, normalmente interpretados por ele próprio, com figuras femininas muito mais jovens. O caso mais evidente, claro, é o do clássico Manhattan. Se Ziering e Dick não colocam em xeque os depoimentos da família Farrow, fica evidente, por outro lado, o quanto os fatos estão a favor deles. Afinal, como se explica o julgamento que inocentou Woody ter rompido com muitas normas desse tipo de processo, a exemplo do modo invasivo e irresponsável com que as autoridades interrogaram nove vezes Dylan Farrow, uma criança na época, quando, na realidade, a repetição insistente desse procedimento era vista como imprópria por se tratar de uma criança como depoente? Acreditar na inocência de Woody diante de tantos fatos expostos pela minissérie com embasamento exige uma grande dose de boa vontade — e, em certa medida, uma predisposição a perdoar o diretor e roteirista a qualquer custo.
Em que pese as nuances duvidosas de Mia Farrow deliberadamente deixadas de canto (destaco a sua obsessão em querer que seus parceiros criassem profundos laços com os filhos, mesmo quando eles não desejavam, como é o caso de Woody, que, ao começar relacionamento com a atriz, nunca quis sequer ser pai), Allen Contra Farrow não é uma investigação inescrupulosa ou interesseira de fatos conhecidos desde sempre, mas talvez a devida e merecida dimensão a um lado do conflito que, por misoginia e menos força midiática e artística na balança, sempre foi colocado em dúvida de modo rasteiro. Do ponto de vista formal, os episódios são muito bem estruturados e chegam até os dias da era #MeToo, quando incontáveis celebridades como Kate Winslet e Timothée Chalamet se disseram arrependidos de ter trabalhado com o diretor, enquanto outras, a exemplo de Cate Blanchett, preferiram ficar em cima do muro dizendo que isso era um problema da vida privada da família, isenção que Allen Contra Farrow nunca abraça. E, ao contrário do que se diz sobre a minissérie, vejo isso como algo positivo, pois entrar em contato com perspectivas que questionam pré-julgamentos também é um exercício importante e necessário.

“The Good Fight” (Paramount +, 5ª temporada)
Após uma temporada que, afetada pela pandemia, praticamente inexistiu em termos dramáticos para a série, The Good Fight retoma o fôlego em um quinto ano muito bem sucedido. O tempo deverá fazer justiça a esse spin-off da célebre The Good Wife não apenas por ela ser um registro muito peculiar da temperatura política dos Estados Unidos a partir da era Donald Trump, mas também por sua constante capacidade de se reinventar. Ainda que baixando o tom no escancarado viés político adotado em outras ocasiões (em particular, defendo o terceiro ano, considerado o mais divisivo da série), os criadores Robert King, Michelle King e Phil Alden Robinson nunca deixam de ser posicionados. Dessa vez, o centro das discussões e reflexões está na figura do juiz Wackner (Mandy Patinkin), um homem que, na verdade, não é juiz coisa alguma e que, ainda assim, decidiu criar seu próprio tribunal para fazer a justiça que ele acredita não estar sendo feita pelo sistema dos Estados Unidos. Pelo menos não da maneira como ele defende.
Observar o lado cômico da quinta temporada de The Good Fight sem saborear as entrelinhas é perder metade da graça e da inteligência desta nova leva de episódios. Todos os absurdimos envolvendo o juiz Wackner e quem acredita no seu método dizem muito sobre o circo que virou o mundo da lei, hoje cada vez mais flexibilizada dos modos mais inacreditáveis e lida conforme a conveniência alheia. Ao desdobrar essa storyline com uma veia hiperbólica, a série não deixa de também fazer um retrato político. Afinal, por mais que Joe Biden hoje seja presidente dos Estados Unidos, tudo o que Trump representa segue reverberando, de um modo ou de outro, em uma sociedade profundamente transformada por sua passagem pelo poder. É muito divertido de acompanhar, até porque Mandy Patinkin se esbalda no papel. No entanto, o tom assumido carrega o ônus de um senso de humor tão particular: é grande a probabilidade desse quinto ano ser rejeitado por uma significativa parcela dos espectadores.
Gostando ou não, a trama de Wackner preencheu com frescor a lacuna deixada pela saída de dois personagens fixos da série. Normalmente, isso não costuma ser bom sinal (a própria The Good Wife se enfraqueceu ano a ano após as baixas consecutivas de Josh Charles e Archie Panjabi), o que, julgando por esta temporada, não parece ser o caso aqui. Tanto The Good Fight ampliou o merecido destaque de Sarah Steele, sempre muito carismática como a jovem Marissa Gold, como também procurou não cair na tentação de abordar fatos recentes da vida real que, sabemos, serão explorados à exaustão pelo cinema e pela TV, como a pandemia da Covid-19, discutida em detalhes apenas em um excelente primeiro episódio capaz de amarrar com habilidade os pontos mal resolvidos da temporada anterior. E não há como falar sobre os episódios sem mencionar And the Fight Had a Détente…, trabalho de estreia da atriz Carrie Preston (a eterna Elsbeth Tascioni!) como diretora. Carrie comanda um episódio com o que existe de melhor em The Good Fight e, de quebra, nos entrega o delicioso exercício de imaginar um romance entre as sempre maravilhosas Christine Baranski e Audra MacDonald. Se não fossem todos os outros méritos, a quinta temporada da série com certeza já valeria só por esse capítulo.

“Hacks” (1ª temporada, HBO Max)
O conflito é clássico. O desenrolar idem. E Hacks nunca promete reinventar a roda. Gosto disso. E mais: tenho grande afeição por séries que nunca tentam ser maiores do que realmente são e que buscam brilhar na sua própria simplicidade. Receita perfeita, portanto, para a história de Deborah Vance (Jean Smart) e Ava Daniels (Hannah Einbinder) me ganhar por completo. A primeira é uma consagrada comediante que já começa a vislumbrar dias irrelevantes na carreira, enquanto a segunda mal começou no ramo e já enfrenta uma crise profissional. Ambas são opostos que, de cara, não se atraem, mas que, perdidas na vida cada uma a sua maneira, encontrarão formas de se reinventar em um convívio profissional e, inevitavelmente, pessoal. Sem jamais tentar se equiparar ou sequer a se comparar a, por exemplo, The Marvelous Mrs. Maisel, outra série sobre o universo feminino da comédia, Hacks é mesmo pura simplicidade e, do início ao fim, entende a importância do show ser de suas duas protagonistas.
Como Deborah Vance, a sensacional Jean Smart vive, aos 70 anos de idade, o grande momento da sua extensa carreira. Eterna coadjuvante em seriados como 24 Horas e Samantha Who?, Jean vive em Hacks um protagonismo que nunca havia caído no seu colo até aqui. E ela agarra a oportunidade com o seu talento habitual. Impressiona a maneira como a atriz desperta no público o fascínio por essa comediante que, nos palcos e na vida pública, é elegante, talentosa e esperta ao extremo, mas impaciente e vaidosa nos bastidores. O mais brilhante do desempenho de Jean Smart está na sua capacidade de transitar por todas essas camadas da personagem sempre com o intuito de explorá-la através das mais diferentes nuances. Para Jean, nada é gratuito ou passageiro: a cada cena, conhecemos uma nova faceta dessa mulher que, em outras circunstâncias, poderia apenas ser uma figura detestável. Se começamos a série passando certa raiva com Deborah, terminamos até empatizando com suas imperfeições. Tudo graças ao grande talento de uma intérprete em franca escalada após outras excelentes participações em seriados como Watchmen e Mare of Easttown.
Fazendo dupla com Jean Smart, Hannah Einbeinder também é habilidosa ao tornar crível uma Ava hiperconectada e em pleno conflito com muitas questões de sua geração. Talentosa e, assim como Smart, capaz de tornar interessante uma personagem não exatamente simpática, Hahhah se beneficia com um dos pontos mais interessante de Hacks: o do roteiro capturar a parte majoritária da história através da perspectiva de Ava. Pelo olhar da personagem, vários paralelos são traçados, como o fato de Ava, uma principiante, observar tudo o que outra comediante já conseguiu alcançar na carreira, ao mesmo tempo em que, considerando diversos aspectos, ela parece tão frustrada e desmotivada quanto Deborah, mesmo sendo década mais jovem. Hacks tem seus melhores momentos quando joga com esses opostos e complementos das protagonistas, principalmente quando as aproxima ou as coloca em conflito. São dez episódios rápidos e enxutos de meia hora. Tudo realizado sem muito alarde, apoiado na simplicidade e, por isso, pelo menos para mim, tão eficiente.

“Love: A História de Lisey” (Apple TV+, minissérie)
É de se desconfiar quando um número muito grande de talentos e estrelas se reúne para fazer um filme ou uma série. Não pelos envolvidos em si, mas porque são raros os casos em que essa composição originou produções verdadeiramente grandes. A minissérie Love: A História de Lisey não foge à regra. Em cena, estão Julianne Moore, Clive Owen, Jennifer Jason Leigh, Joan Allen e Dane DeHaan sob a batuta do já cultuado Pablo Larraín, diretor de filmes como No, Jackie e, mais recentemente, do aguardado Spencer. O roteiro não só é baseado em um livro de Stephen King como tem o próprio autor na sua escrita. Parecia a fórmula perfeita para uma minissérie de alto nível, expectativa que se esvai de forma vertiginosa a cada episódio dessa experiência desinteressante e repetitiva. Com isso, outra tese se reafirma: a de que nem todo grande escritor é grande roteirista.
O ponto de partida é o romance lançado por King em 2006 e que ele logo classificou como um dos seus trabalhos favoritos. Julgando pela minissérie, é difícil entender as razões que o levam a afirmar isso. No centro da história, temos duas linhas temporais. Uma se passa no presente, quando Lisey (Julianne Moore) ainda lida com a morte do marido, um escritor de grande sucesso chamado Scott (Clive Owen), e com a obsessão de um fã do seu finado companheiro. A outra se desenrola no passado ao conhecermos um pouco mais sobre o romance entre Lisey e Scott, aléde detalhes sobre a própria vida dele, um homem assombrado por grandes traumas de infância. De início, o ritmo mais literário do que audiovisual cadenciado pelo roteiro de King beira o elegante, como se estivéssemos sendo apresentados, com a devida calma, a um universo cujas interrogações futuramente trarão excelentes recompensas. No entanto, o ritmo jamais varia e tudo não passa mesmo de uma trama bastante monótona, pouco dinâmica e sem mergulhos instigantes.
Enquanto King erra a mão ao construir episódios longos demais e ao demonstrar falta de familiaridade com a concepção da estrutura de uma minissérie, Pablo Larraín, um diretor afeito a relatos fora da curva, emoldura o roteiro com uma atmosfera inebriante. Da bela fotografia assinada pelo iraniano Darius Khondjin ao trabalho de Clark para entrelaçar beleza, tragédia e horror na trilha sonora, Love: A História de Lisey se sustenta só até determinado ponto em função de seus atributos técnicos. Passado o primeiro impacto, a história, já submersa em relatos complicados de acompanhar (todas as sequências envolvendo a participação de Michael Pitt parecem não terminar nunca), acaba contaminada pelo que o conjunto promete e não entrega. E aí não há o que uma atriz talentosa como Julianne Moore possa fazer para segurar a barra, inclusive porque ela compartilha seu maior tempo de cena com um Clive Owen de pouquíssima expressão e com um Dane DeHaan fora de tom na busca pelo assombro de uma vilania. Infelizmente, Love: A História de Lisey é, em todos os aspectos, uma das grandes decepções de 2021.

“Manhãs de Setembro” (Prime Video, 1ª temporada)
Se há uma série brasileira que você precisa descobrir em 2021, essa é a bela Manhãs de Setembro, cuja curtíssima temporada de apenas cinco episódios está disponível no Prime Video. Uma segunda temporada já foi encomendada, e é o caso de renovação que me deixa muito alegre, pois, mesmo que a história pudesse terminar tranquilamente neste primeiro ano, há material e potencial de sobra para vermos mais dos personagens no futuro. Aplaudo também a sensibilidade da Amazon em ter abraçado um projeto tão humano sobre uma personagem trans e sobre pessoas tão comuns quanto imperfeitas desse Brasil, começando com a protagonista Cassandra (Liniker), uma motogirl que, às noites, canta em um bar e, de repente, descobre ter um filho que nunca imaginou ter. Sua vida é muito batalhada, e a chegada do menino acaba sendo um caminho sem volta para a forma como ela vê o mundo.
Não está errado quem classifica a primeira temporada de Manhãs de Setembro como previsível ou até mesmo clichê — sabemos que o coração de Cassandra amolecerá e que ela se transformará em uma pessoa completamente diferente —, mas isso não é demérito quando a série trata os seus conflitos mais óbvios como o retrato fiel da vida como ela é. Agora, se há algo que não pode ser chamado de clichê em Manhãs de Setembro, esse é o tratamento dado à personagem Cassandra. Liniker se sai muito bem ao interpretar uma protagonista que não tem em sua identidade de gênero (ou na aceitação ou rejeição dela) o conflito norteador da trama. Pelo contrário: como uma pessoa aplicada na busca por uma vida melhor e pela realização de seus próprios sonhos, Cassandra é feliz no palco, cultiva um relacionamento amoroso e tem orgulho de se sustentar com as próprias pernas. Isso é inspirador e mais do que bem-vindo.
Tipo de temporada que é possível ver de uma única vez tanto pela objetividade dos episódios quanto pela fluidez, Manhãs de Setembro também brilha no elenco coadjuvante de primeira, que traz nomes como Gero Camilo, Thomás Aquino, Paulo Miklos e até Elisa Lucinda fazendo a voz da cantora Vanusa, figura importante no desenrolar da série e cujo repertório é homenageado com grande beleza por Liniker. Em termos de interpretação, contudo, a maior das joias é Karine Teles, uma das nossas melhores atrizes em atividade e que aqui demonstra, pela milésima vez, o quanto o seu repertório camaleônico vem de uma fonte inesgotável de talento. É tocante as escolhas que ela faz ao conduzir uma personagem tão errática quanto repleta de boas intenções, trazendo para o plano da compreensão uma figura que poderia apenas servir de muleta para alguns dos conflitos principais. A exemplo de Manhãs de Setembro como um todo, essa é uma qualidade que faz da primeira temporada uma pérola caracterizada por beleza, envolvimento e delicadeza ao ler os acontecimentos mais familiares do cotidiano com grande humanidade.

“The White Lotus” (1ª temporada, HBO Max)
Tem sido catártica essa nova anda de séries que lançam um olhar sobre a hipocrisia, o privilégio e a falta de noção de uma população branca privilegiada e situada em uma bolha própria, alheias ao mundo real e sem o mínimo senso de compreensão ou conexão por qualquer coisa que fuja do raio traçado por seu status social e econômico. A sensacional Succession, da HBO, talvez seja o maior e mais célebre exemplo dessa visão crítica aplicada a personagens atuais e críveis em seus absurdos, mas agora ela já pode dizer que tem uma irmã caçula: The White Lotus, também da HBO, já com uma segunda temporada planejada em formato de antologia. Ainda que ambas tenham em comum todos os elementos citados, além de um fascinante sentimento de incômodo e constrangimento pelos personagens, as duas séries são inegavelmente autênticas e distintas.
Criada por Mike White, autor da singular Enlightened que Laura Dern estrelou em em 2011, The White Lotus tem como cenário um resort paradisíaco no Havaí. Lá, acompanhamos alguns dos funcionários que, trabalhando dia e noite, precisam estar à disposição dos hóspedes. E também seguimos de perto as pessoas hospedadas no local, todas riquíssimas, brancas e cercadas de todos os tipos de privilégio. Por adotar duas visões diferentes e diretamente opostas, The White Lotus encenará uma série de conflitos entre classes. A diferença é que quase toda a tensão entre esses dois núcleos tão diferentes está nas entrelinhas, no silêncio forçado, no jogo de palavras e no sorriso forçado para mascarar sensações internalizadas. É por isso que sempre há um tom de algo prestes a explodir, mesmo que, com exceção de um flashforward do primeiro episódio, a história não chegue a se focar em algum clima de suspense ou mistério. Afinal, há conflito de sobra nas relações estabelecidas entre pessoas desse nosso mundo tão desigual em muitas camadas, e a série bebe dessa fonte.
Proporcionalmente, The White Lotus se foca mais nos hóspedes do que nos funcionários, o que permite que Mike White, diretor e roteirista de todos os episódios, explore as nuances de tantos personagens insuportáveis entre si. Da mulher carente que viaja para jogar as cinzas da mãe no mar e que, através de diferentes maneiras, suga qualquer pessoa à frente para suprir sua solidão ao homem recém-casado que entra em um surto gradual por não ser colocado no quarto que havia reservado. Em cada um deles, surgem as maiores qualidades de um texto desconfortavelmente contemporâneo e que discute muitos pontos sobre como dinheiro e privilégios colocam pessoas em uma realidade paralela, onde elas acreditam ser donas da verdade em toda opinião omitida simplesmente por falarem de uma posição onde tudo está ao seus pés. Não à toa, o mundo de cada um deles entra em colapso ao menor sinal de que suas ideias certezas podem estar sendo ameaçadas. Essa espécie de surto em baixa fervura é traduzido por uma trilha sonora hipnótica do canadense Cristobal Tapia de Veer e por um elenco irretocável, onde destaco a peculiar e inteligente performance de Jennifer Coolidge. Cômica sem necessariamente ser uma comédia e intrigante por não ter definições óbvias, The White Lotus é um inteligente registro dos nossos tempos com as qualidades que sempre fizeram a HBO ser HBO.