Cinema e Argumento

Adeus, 2015! (e as melhores cenas do ano)

Como já é tradição aqui no blog, encerro 2015 escolhendo as melhores cenas do ano. O que muitas delas têm em comum? A simplicidade. Boa parte do que vi de melhor no cinema este ano me pegou muito mais pela emoção do que por ambições estéticas ou narrativas. Já a lista de melhores do ano fica para quando voltarmos em 2016, pois muito ainda deve ser visto para compensar o ano menos acelerado que tive no cinema. Seria injusto finalizá-la agora. Por enquanto, ficamos com a lista das nossas cenas favoritas (todas elencadas aleatoriamente) enquanto fazemos uma breve pausa para recarregar as baterias e colocar os filmes em dia. Logo voltamos a nos encontrar por aqui, combinado? Um bom final de ano a todos e obrigado pela companhia em 2015!

•••

scene45years

Kate e Geoff dançam Smoke Gets in Your Eyes em 45 Anos

O maior testamento do grande desempenho de Charlotte Rampling em 45 Anos está na cena derradeira deste filme escrito e dirigido por Andrew Haigh (do ótimo Weekend). Sem uma palavra sequer, a veterana, muito bem acompanhada por Tom Courtenay, transmite um universo de angústias ao espectador quando dança Smoke Gets in Your Eyes com o marido- e poucas vezes os exatos últimos cinco segundos de um filme foram tão assombrosamente dolorosos.

scenefuryroad

Qualquer perseguição de Mad Max: Estrada da Fúria

Cheio de adrenalina do início ao fim, Mad Max: Estrada da Fúria é um filme de ação simplesmente impecável. Por ser impossível escolher apenas um momento da longa, insana e criativa fuga dos protagonistas em pleno deserto escaldante, nada mais justo do que nomear todas elas. Afinal, vai dizer que teve alguma que não deixou você sem fôlego?

scenewhiplash

Os minutos finais de Whiplash: Em Busca da Perfeição

Em poucos minutos, o diretor Damian Chazelle dá um baile em muitos colegas que passam anos sem chegar a um momento magistral como o que encerra Whiplash: Em Busca da Perfeição. Difícil não suar com os personagens neste clímax que une tudo o que o cinema pode fazer pelos sentidos e encerra com perfeição um longa já repleto de som e fúria.

scenehoras

Val e a piscina em Que Horas Ela Volta?

Quando bem conduzidos, momentos de libertação podem emocionar mais do que qualquer lágrima. No caso específico de Val (Regina Casé), uma mulher que nega a si mesma o livre arbítrio e até o devido extravasamento de sentimentos, o ápice do seu adeus às amarras acontece em uma piscina – e a diretora Anna Muylaert conseguiu extrair o melhor do talento de Regina Casé e do seu próprio como realizadora.

cassiaellerfilme

Maria Eugênia ganha a guarda de Chicão, e Cássia Eller se encerra com O Segundo Sol

O Brasil é referência na produção de documentários, mas Cássia Eller está mesmo entre os mais emocionantes dos últimos anos. Ao longo de tantas passagens tocantes do filme, aquela em que Maria Eugênia ganha a guarda de Chicão na justiça traz o auge da beleza do legado da cantora. E tinha maneira mais bonita de encerrar o filme logo após com depoimentos de amigos e familiares ao som de O Segundo Sol

scenebirdman

O voo de Riggan em Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

Trabalho mais completo da carreira do mexicano Alejandro González Iñárritu, Birdman está cheio de cenas inovadoras e marcantes, mas o voo de Riggan Thomson (Michael Keaton) pelas ruas de Nova York rumo ao teatro que abriga seu mais novo espetáculo é aquela que você vê e já sabe instantaneamente que é emblemática. Executado com o devido realismo e encantamento, o momento é também pra lá de simbólico na vida do protagonista.

scenewild

Qualquer lembrança envolvendo Bobbi em Livre

É fruto de uma montagem impecável toda a emoção causada pelas lembranças que Cheryl (Reese Witherspoon) tem de sua mãe Bobbi (Laura Dern). Introduzindo com precisão importantes fatos e revelações sobre o passado das duas, as breves memórias aparecem no filme como na própria vida: aqui ou ali, sem razão aparente, onde colocamos uma nova luz sob momentos que antes nos pareciam tão corriqueiros. Em função desse imenso carinho com a importância da figura materna, qualquer lembrança envolvendo a personagem de Laura Dern parte o nosso coração – e, de brinde, você nunca mais sairá ileso da bela El Condor Pasa, de Simon & Garfunkel.

snowpiercer

O primeiro discurso de Mason em Expresso do Amanhã

Com óculos de Margaret Thatcher, pose de tirana e transformada por uma ótima maquiagem, Tilda Swinton é o centro das atenções toda vez que aparece no criativo Expresso do Amanhã. A primeira aparição de Tilda, entretanto, é a mais emblemática porque já nos mostra o quão tosca mas perigosa pode ser uma ditadora como a sua Mason. Qualquer semelhança com tantas figuras reais dessa mesma natureza que já habitaram a história mundial não é mera coincidência.

sceneinsideout

Riley volta para casa em Divertida Mente

Há quem chore horrores com o desfecho do elefante rosa, mas o momento que me derruba mesmo em Divertida Mente é aquele em que a protagonista Riley volta para casa. Consegue me derrubar porque fala, em poucas palavras, sobre milhares de questões de forma muito delicada: o amadurecimento, o valor da família, a importância de sentirmos a tristeza uma vez ou outra, e por aí vai… De cortar o coração! 

scenesicario

O último encontro de Alejandro e Kate em Sicario: Terra de Ninguém

Sicario: Terra de Ninguém é aquele tipo de filme que deixa um peso nas costas do espectador após o fim da sessão. A história contada pelo canadense Dennis Villeneuve é densa por si só, mas o último encontro de Alejandro (Benicio Del Toro) e Kate (Emily Blunt) perturba particularmente por sua veracidade e intensidade ao sintetizar até que ponto o ser humano vai para fazer o que julga ser certo em um ambiente que “possibilita” a justiça pelas próprias mãos.  E o mais angustiante: tudo sem um tom elevado, com uma discrição afiadíssima.

Marília, o mundo não esqueceu você

43º Festival de Cinema de Gramado – Marília Pêra recebe o troféu Oscarito dos filhos: Ricardo Graça Mello, Esperança Motta, Nina Morena. Foto:Edison Vara/Agência Pressphoto – www.edisonvara.com.br

Em agosto deste ano, Marília Pêra recebeu dos três filhos o troféu Oscarito em homenagem a sua carreira no Festival de Cinema de Gramado. Foto: Edison Vara/Pressphoto

Não costumo ser um jornalista que se estremece ao entrevistar. Com Marília Pêra foi diferente. Lembro de estar com as mãos frias antes de conversar com ela para produzir seu perfil oficial como homenageada do Festival de Cinema de Gramado este ano. E a delícia desse nervosismo era das melhores: como conversar com uma atriz tão emblemática, uma profissional tão completa e uma dama tão digna quanto as reconhecidas veteranas britânicas? Muito se dizia sobre seu gênio complicado ou sobre como ela era uma pessoa de difícil acesso, mas o que me intimidava mesmo era a missão de falar sobre sua vida profissional, que lhe permitiu ir de Carmem Miranda à Coco Chanel no cinema e nos palcos. Elegante, respondeu tudo com a maior calma possível. Emocionada, não escondia a felicidade de ser homenageada pelo evento. Chegou até a revelar que este sempre foi um sonho dela, que todo ano aguardava ansiosamente a ligação que enfim lhe convidaria para a honraria. Falou com carinho dos amigos, agradecendo aos que ainda estão aqui e mandando energias positivas para os que já se foram. Foi realmente uma dama, fazendo com que meu nervosismo simplesmente desaparecesse ao longo da conversa.

Depois veio Gramado, onde os colegas jornalistas com longa trajetória no evento disseram que talvez nunca se tenha visto uma homenagem tão marcante no evento quanto a dela. Na roupa, no caminhar e na pose para as fotos, fez jus ao seu título de diva. Desfilou pelo tapete como se soubesse, sem arrogância alguma, que de certa forma aquilo lhe era muito merecido. No palco, foi surpreendida pela chegada de seus três filhos, que estavam na cidade para sua homenagem sem que ela soubesse. Entrevistei Ricardo, o garoto do trio, que dizia que “quem entende do balacobaco sabe que ela é demais” e que talvez não existisse atriz no mundo como sua mãe. São poucos os que conseguem realmente fazer o outro sentir o amor cultivado por alguém, escapando de discursos prontos ou frases fáceis. Hoje, quando acordei com a notícia da morte precoce de Marília Pêra (sim, aos 72 ainda há muito o que se fazer na vida), relembrei todos esses dias que fiquei de alguma forma submerso em sua vida. Afinal, ser jornalista tem disso: por um determinado espaço de tempo, nos intrometemos e mergulhamos no universo de nossos entrevistados. Por isso, pensei muito nos filhos de Marília e no seu legado indiscutível. Como é de triste praxe no Brasil, ela só trabalhava mesmo porque tinha em Miguel Falabella um fiel escudeiro. O tempo não é justo com os atores, independente de suas grandezas. A eternidade, pelo menos, consegue lhes dar o devido valor. E Marília ainda vai ficar conosco por muito tempo.

Deixo abaixo essa emocionante interpretação dela de um clássico de Roberto Carlos. A cena emociona porque mostra o quão completa e sensível Marília era como profissional. E, de repente, com sua despedida, a letra da música ganha contornos diferentes, mas com um adendo: não, Marília, o mundo não esqueceu nem nunca esquecerá você!

Os grandes desempenhos femininos de 2015

O ano de 2015 ainda não chegou ao fim (falta pouco!), mas, parando para analisar, já dá para perceber que a missão de escolher o melhor desempenho feminino desta temporada será um verdadeiro desafio! Temos mulheres protagonistas arrebentando em ação, comédia ácida, drama brasileiro, filme naturalista francês, adaptações e até mesmo em western (esse gênero tão esquecido nos dias de hoje)! Perdeu de conferir alguma delas? Pois resolvemos fazer um apanhado do que vimos de melhor até agora em 2015 envolvendo essas mulheres incríveis, todas em desempenhos que você não pode deixar passar. E também deixamos a pergunta: tem como escolher qual delas é a melhor? A ordem da lista é aleatória.

•••

Depois de anos e muitas injustiças, Julianne Moore finalmente ganhou um Oscar por Para Sempre Alice, mas seu grande desempenho de 2015 está em Mapas Para as Estrelas. O filme é difícil (e não foi muito bem recebido por aqui), mas sintetiza perfeitamente o tipo de cinema e interpretação que colocou a atriz entre as mais importantes de sua geração. Como a  perturbada atriz Havana Segrand, que vê a possibilidade de voltar a brilhar no cinema depois de anos amargando uma carreira decadente, Julianne Moore se despe de vaidades em um desempenho bastante corajoso. Se o Globo de Ouro inexplicavelmente deu o prêmio de melhor atriz em comédia para Amy Adams por Grandes Olhos, pelo menos temos como consolo (e que consolo!) o fato de Cannes ter premiado Moore por sua atuação no filme de David Cronenberg. Ela não era a melhor na disputa, mas, se tratando dela, isso não vem muito ao caso, especialmente em um filme como esse…

Voltando ao assunto de Cannes, quem realmente merecia o prêmio de melhor atriz no festival francês era Marion Cotillard, que tem mais uma atuação marcante em Dois Dias, Uma Noite. Merecia não só porque seu histórico em Cannes já é longo, mas porque a francesa tem a carreira mais exemplar da atualidade (qual atriz estrangeira equilibra com tanta qualidade trabalhos no seu país de origem e nos Estados Unidos?) e porque ela está realmente fantástica no mais recente filme dos irmãos Dardenne. Como Sandra, mulher que perde o emprego após uma votação que lhe exclui do ambiente para que seus colegas possam receber um bônus de final de ano, Cotillard eventualmente emociona quando não contem o choro, mas impressiona de verdade quando aposta na discrição de uma personagem extremamente crível. Se não fosse por Piaf – Um Hino ao Amor, que é coisa de outro mundo, este certamente seria seu momento mais marcante.

Ainda entre as francesas, Juliette Binoche esteve novamente superlativa em Acima das Nuvens, repetindo um nível de excelência cujo último marco deve ter sido Cópia Fiel. E não está sozinha: acompanhada de uma surpreendente Kristen Stewart, La Binoche forma com a jovem atriz uma das parcerias mais interessantes deste ano. Enquanto a francesa tem obviamente um papel muito mais complicado (a atriz que é chamada para fazer o remake de um filme de sucesso que protagonizou anos atrás, mas agora com um papel diferente), Stewart não se intimida frente à veterana e responde à altura, especialmente nas cenas de ensaio onde realidade e ficção constantemente se confundem. É um trabalho complementar e de pura sinergia que extrai o melhor de cada uma delas.

O cinema ganhou uma nova heroína nos filmes de ação e, de repente, o mundo se tornou um lugar melhor. A saudade dos tempos em que Sigourney Weaver marcou gerações como a forte protagonista da quadrilogia Alien já era grande, mas George Miller veio colocar ordem na indústria machista. Charlize Theron, que funciona muitíssimo bem quando comandada pelos diretores certos, é um verdadeiro ícone em Mad Max: Estrada da Fúria. Tom Hardy fica praticamente de escanteio quando Theron entra em cena e passa a movimentar toda a frenética trama deste filme que também é um marco do cinema contemporâneo. A atriz dá conta do trabalho físico e do drama, com uma interpretação cheia de personalidade e que mostra que a vida na sétima arte seria muito melhor se mais figuras femininas liderassem histórias como essa. Bravo!

A torcida para Regina Casé chegar ao Oscar é grande, e Que Horas Ela Volta? tem tudo para chegar entre os escolhidos da Academia pelo menos na categoria de filme estrangeiro. Só que, na boa, Casé pode até dar um show, mas é impossível lembrar de sua Val sem dar o devido reconhecimento à Camila Márdila como a jovem Jéssica. É mais um trabalho fantástico de duas atrizes na mesma cena em 2015, onde o roteiro de Anna Muylaert dá todas as chances para as duas brilharem: mãe e filha se conhecem e reconhecem em uma história muito brasileira mas ao mesmo tempo bastante universal. A química entre as duas é perfeita, o que proporciona ao filme – já inteligente por si só – momentos realmente belos, tocantes e até mesmo provocadores. No elenco de suporte, Karine Teles também faz bonito como a patroa Bárbara. Que Horas Ela Volta? é o show das mulheres!

Mais uma européia para a lista: a britânica Charlotte Rampling, que está marcante em 45 Anos. Ela foi a única concorrente ao Urso de Prata do Festival de Berlim deste ano que conferi, mas acho difícil contestar a honraria para Rampling, cujo papel é dos mais interessantes: a da agora atormentada esposa que precisa rivalizar com um fato inalcançável do passado de seu marido (Tom Courtenay, também premiado em Berlim como melhor ator). Como boa britânica, Rampling interioriza os sentimentos de sua Kate a cada cena, tornando a angústia da personagem – e consequentemente a nossa – ainda maior diante do novo comportamento do marido. É brilhantismo que talvez só veteranas como ela possam trazer, principalmente em sequências como a de encerramento, bonita por si só mas que ganha uma força inesperada nas mãos de Rampling.

MENÇÕES HONROSAS: Em Dívida de Honra, surpreendente western dirigido por Tommy Lee Jones, Hilary Swank sai da zona de sua zona de conforto para entregar um desempenho firme e ao mesmo tempo delicado | Quase não visto aqui no Brasil, Dois Lados do Amor traz uma Jessica Chastain inspirada na trágica história de um romance despedaçado Com Ricki and the Flash, Meryl Streep afirma (pela milésima vez) que não existe atriz mais camaleônica do que ela em atividade – e talvez na história! | Emily Blunt é excelente comediante, mas também manda muito bem no drama, e Sicario: Terra de Ninguém lhe dá um dos papeis mais importantes da sua carreira.

Diário das minhas artes #2: sobre Schmidt e democracia cultural

artschmidtSempre digo que tenho dois filmes favoritos. O primeiro representa, digamos, a razão: As Horas, o trabalho mais coeso que já vi no cinema. O segundo fala pela emoção: As Confissões de Schmidt, que gosto de dizer que foi o filme que fez eu me apaixonar pela sétima arte. Ambas as produções são adaptações literárias e, por disponibilidade, li primeiro As Horas, de Michael Cunningham. Li o livro depois de ter visto o longa de Stephen Daldry, e só me apaixonei ainda mais pela versão cinematográfica, que é uma transposição perfeita e autoral de uma obra difícil e complexa. Não tenho dúvidas de que essa é a minha adaptação favorita de todos os tempos. Depois de muito procurar, sem sucesso, Sobre Schmidt, de Louis Begley, que inspirou As Confissões de Schmidt, o livro veio parar no meu colo por um feliz acaso do destino: um presente carinhoso e inesperado de aniversário. Confesso que, passado quatro meses, só agora o peguei para ler. A demora não foi só pela falta de tempo, mas também por receio, pois finalmente chegou a hora de eu conferir o material de origem do filme que injetou o cinema na minha veia.

Cinco páginas até agora e o susto já foi grande – a ponto de me fazer parar um pouco a leitura para organizar as ideias. Na versão de Begley, Warren Schmidt é advogado e não estatístico. Sua esposa, Mary, não morre em função de um derrame repentino, mas sim em pleno sofrimento enfrentando uma doença terminal. Já na primeira página o protagonista desata a chorar em frente à filha ao saber do casamento dela. No filme, as lágrimas de Schmidt chegam apenas ao final, em um momento emocionante justamente pela demonstração inesperada de uma humanidade escondida. É claro que sou irremediável defensor da ideia de que filmes e livros são independentes e que, mesmo que seja brilhante quando ambos são capazes de dialogar, não devem ser julgados um em função do outro. Só que dessa vez é mais delicado: não é fácil ver o meu filme favorito ser desconstruído dessa maneira. Na realidade, foi quase um desafio embarcar nestas cinco páginas e espero que, pelas próximas, consiga me desligar de comparações para poder aproveitar. Desejem-me forças.

•••

Saindo da temporada 2015 do espetáculo Ensina-me a Viver, já mergulhei profissionalmente em outro evento: a Oktoberfest de Igrejinha. Maior festa comunitária do Brasil (são cerca de 3 mil voluntários que fazem a função toda acontecer), a Oktoberfest transfere todo o lucro arrecadado para obras de melhorias na cidade. Uma iniciativa belíssima para uma comunidade apaixonada pelas raízes alemãs e por sua própria cidade. Neste terceiro ano fazendo a festa como parte da equipe de assessoria de imprensa, me peguei refletindo novamente sobre algo que todo ano me impressiona por lá: sempre existem culturas além dos nossos horizontes. Explico. No domingo da semana passada (18), o parque de eventos Almiro Grings, local onde acontece a Oktober, veio abaixo com o show da dupla sertaneja Marcos & Bellutti. Não os conhecia. Nem mesmo a tal Domingo de Manhã, que, descubro agora, foi a música mais tocada nas rádios brasileiras em 2014.

A moral da história é que, além de não conhecer a dupla, não curto sertanejo, mas faço justiça: nunca condeno ou julgo qualquer gosto de qualquer pessoa. Podemos criticar, desgostar ou odiar o que quisermos, mas nunca diminuir alguém por apreciar determinado artista ou obra. Afinal, o que significa a minha voz frente a outras 35 mil (o público esperado na Oktober naquele domingo) que grita, chora e canta junto a esta dupla? Para mim, ver Marcos & Belutti ao vivo pode ter sido uma experiência esquecível musicalmente, já que não me interesso pelo estilo musical deles. Já para boa parte dos igrejinhenses e dos moradores da região, é bem provável que tenha sido um dos shows de suas vidas. E que lindo testemunhar esse momento tão especial para eles. Com um choppe na mão, fiquei encantado pela plateia, e reconheci o apelo dos caras, que levaram o público ao delírio. Curti o momento porque, afinal, em algum outro recorte de tempo e espaço, eu sou eles assistindo com imensa comoção ao show do Keane em São Paulo ou do Philip Glass em Porto Alegre. E tenho certeza que nenhum deles julgaria as minhas lágrimas também. Vida eterna à democracia cultural!

Diário das minhas artes #1

Todas as artes se complementam. O cinema se torna mais imersivo com a música. Uma peça de teatro pode ficar ainda mais brilhante se você leu o material de origem e pensa na adaptação do espetáculo. Coisas assim. O Cinema e Argumento carrega a sétima arte no título, mas sempre senti a necessidade de falar sobre tudo o que me encanta nas outras. É este o propósito dessa nova coluna que inauguro agora: fora o cinema e eventualmente as séries que comento aqui, decidi inaugurar este espaço mais democrático e informal para falar sobre música, teatro, literatura ou o que der na telha. E, já para a estreia, temos muito o que comentar… Vamos lá!

•••

ensina-me a viverTerminou neste domingo a nova temporada de Ensina-me a Viver, cuja última parada foi aqui em Porto Alegre. É o oitavo ano do espetáculo na estrada (o sucesso está em números: mais de 500 mil pessoas já viram essa adaptação estrelada por Glória Menezes e Arlindo Lopes), e o retorno dela à capital gaúcha tem um gostinho muito especial para mim. Conferi o espetáculo quando ele debutou anos atrás e, agora em 2015, fiz o trabalho de divulgação da peça na empresa onde trabalho como assessor de imprensa. Adoro essas coincidências da vida.

Na revisão, feita novamente no lindo teatro que é o São Pedro, passei a compreender melhor o espetáculo. E, quando digo compreender, é em termos de sentimentos mesmo, passando pelas vivências e aprendizados que tive desde os meus 17 anos até este novo encontro com a peça. Não gosto de dizer que Ensina-me a Viver é uma história de amor, mas sim uma homenagem à liberdade proporcionada pelas descobertas. Já dizia Six Feet Under que nessa vida não existem regras ou julgamentos, apenas aqueles que criamos e aceitamos para nós mesmos. É exatamente para isso que Harold (Arlindo Lopes) abrirá os olhos em seu encontro com Maude (Glória Menezes), que, antes de se tornar um interesse amoroso, é uma pessoa que lhe encanta pela falta de amarras com qualquer coisa. Não contive minhas lágrimas com essa mensagem da peça, principalmente porque a Rhineheart, canção do Beirut que toca no final, é de arrepiar – e João Falcão, em uma direção pra lá de carinhosa e criativa, a utiliza em momentos cruciais. O teaser abaixo usa essa linda música como trilha.

Ainda refletindo sobre a vida, terminei de ler recentemente o livro Tomo Conta do Mundo – Conficções de Uma Psicanalista, da gaúcha Diana Corso. Tenho um fraco pelo lance da psicanálise, pela liquidez de Zygmunt Baumant, pelas análises do dr. Paul Weston em In Treatment. Por isso era inevitável eu me apaixonar pelos escritos de Diana. O livro, que é uma coletânea de crônicas publicadas por ela ao longo de sua carreira como colunista, faz reflexões inteligentes mas comum a todos nós sobre pequenas coisas da vida, além de se utilizar das mais variadas fontes artísticas para propor discussões. Toy Story? Harry PotterA Bússola de Ouro? Tudo é material para Diana Corso pensar um pouquinho sobre o cotidiano. Irresistível.

Entre as séries, minha disciplina começou boa com as estreias, mas acompanhar cinco séries por semana deve logo se tornar um malabarismo, tenho certeza. Passado o badalo da vitória no Emmy, Viola Davis voltou em alto nível com How to Get Away With Murder, que não perdeu tempo ao já resolver um mistério da temporada passada no primeiro episódio e ao derrubar mil forninhos quando subverteu ainda mais a maravilhosa Annalise Keating em uma cena com Famke Janssen. O resto do elenco continua horrendo, mas Viola é tão sensacional que permanece como um motivo suficiente para manter a série na minha lista de prioridades. E perceberam como o programa está cada vez mais próximo de Damages no sentido de trabalhar mais afundo um caso jurídico que norteia acontecimentos futuros dos personagens? No mesmo balaio de atrizes maravilhosas está Taraji P. Henson, sempre impecável com sua Cookie Lyon, em Empire. Não tenho dúvidas de que a personagem é repetitiva, mas a persona criada por Henson é das mais marcantes – o que está totalmente de acordo com o tom novelão da série, que, apesar de continuar com um protagonista detestável e um roteiro cercado de previsibilidades, já estreou quebrando novos recordes: foi o programa que mais incrementou a sua audiência de uma primeira para uma segunda premiere (o recorde era de House).


Leftovers-2Enquanto isso, The Affair teve uma boa estreia de segundo ano, agora com novos personagens mostrando a sua percepção da história de traição do título. Gosto da série, e o retorno dela manteve o bom nível, mas o conflito principal já terminou e, como é de praxe na maioria dos projetos da Showtime, parece que o assunto acabou também. Tomara que surpreenda, especialmente agora com essa nova arquitetura de roteiro que pode dar certo (ou errado na mesma proporção). Em termos de ter que surpreender, o mesmo pode ser dito de The Good Wife, uma das melhores opções da TV aberta, que começou seu sétimo ano tendo como ponto alto um nome bastante inusitado: o coadjuvante Alan Cumming, que promete ter ótimos momentos ao lado da convidada Margo Martindale. Ao que tudo indica, a trama deve seguir o caminho da reciclagem… Afinal, alguém ainda se motiva com eleições e criações de novas empresas de advocacia? E o que dizer da nova personagem que é uma substituição descarada da Khalinda? Os roteiristas que me desculpem, mas a investigadora de Archie Panjabi é insubstituível. Não forcem a barra.

Deixo o melhor para o final: a nova temporada de The Leftovers. É bem possível que este seja o meu seriado favorito em exibição, e ainda tento aceitar o fato de que ele não é devidamente reconhecido (ficando apenas na parte técnica: Max Richter não ter sequer sido indicado ao Emmy por sua magnífica trilha sonora é um dos maiores absurdos em décadas!). Por outro lado, entendo a aversão, pois The Leftovers é drama dos mais desafiadores, seja no tema complexo (o luto de pessoas que perderam conhecidos em um repentino e inexplicável desaparecimento de 2% da população mundial), no flerte com a religião e o sobrenatural e na própria condução, que, no início deste segundo ano sofreu mudanças drásticas. É ousada a atitude da HBO de seguir contando uma história que já utilizou todo o seu material de origem (o livro homônimo de Tom Perrotta), colocando os personagens em novos cenários e situações – e com uma mistura que se assemelha cada vez mais a Lost (tomara que não!). E que coragem retomar os protagonistas só no terço final de Axis Mundi, o capítulo de estreia. O retorno do programa mexeu muito comigo, seja pela construção episódio em si ou pela beleza que é ver uma série arriscando e saindo do lugar comum em todos os sentidos, começando por uma bela introdução ambientada na pré-história. Assistam!