Das páginas para as telas, “Fim” medita sobre a vida a partir da morte e é excelente adaptação de Fernanda Torres para seu próprio romance

Dez anos separam o lançamento do livro Fim e a estreia de sua versão para o audiovisual. Há várias alterações na adaptação, e elas sempre preservam a essência da obra original.
Lembro de ler Fim, romance de estreia da atriz Fernanda Torres, com grande deslumbre. À época, mais especificamente no ano de 2013, Fernandinha já havia se provado o suficiente, seja com suas consagrações como intérprete, aventurando-se na escrita de roteiros como o de Redentor ou trabalhando sua escrita observadora e apurada em crônicas assinadas para o jornal Folha de São Paulo e para as revistas Piauí e Veja Rio. Só que escrever um romance é uma história completamente diferente e, por que não, uma ambição que poderia descambar para um mero capricho. Isso se não estivéssemos falando de Fernanda Torres. Fim não só alcançou o status de best seller com centenas de milhares de cópias vendidas como ganhou um prêmio Jabuti, o mais prestigiado do mercado brasileiro. Ou seja, ela, mais uma vez, provava ser imparável e uma das nossas artistas mais múltiplas em atividade.
Dez anos depois, o raio volta a cair no mesmo lugar com a adaptação de Fim para uma minissérie estruturada em dez episódios, todos também escritos por ela. Ser uma boa adaptação por si só já seria o bastante, pois o romance homônimo tem uma estrutura narrativa tão única e uma condução tão própria de Fernanda para o formato literário que o transpor para o audiovisual seria um desafio difícil de resolver. Como roteirista, entretanto, sua opção foi das mais sábias e desprovidas de vaidade, dispensando o zelo excessivo com material original para a escritora dar lugar à roteirista. Ao longo de seus episódios, Fim traduz na tela a vocação folhetinesca e rodrigueana de sua premissa com linguagem própria, não deixando vestígios de traços literários ou algo similar. É uma adaptação com várias alterações em formato, mas preservando o frescor de sua essência.

Fábio Assunção e Marjorie Estiano são Ciro e Ruth, um dos tantos casais em transformação que Fim explora a partir de idas e vindas no tempo.
A narrativa deixa de ter um personagem como foco a cada episódio para misturar todos eles com idas e vindas no tempo, além de uma adição mais do que acertada: as mulheres em pé de igualdade com os homens, o que garante que a versão em minissérie de Fim tenha como norte as relações afetivas vividas por Ciro, Neto, Álvaro, Ribeiro e Silvio, o quinteto de boêmios cariocas que, ao atravessar décadas a partir dos anos 1960, experimenta todas as surpresas e transformações inerentes à vida como a conhecemos. O roteiro é exitoso em muitos aspectos, a começar pela notável habilidade em transitar entre pelo menos uma dezena de personagens e diferentes linhas temporais sem causar confusão. Pelo contrário. As diversas portas abertas por Fim só colaboram para sublinhar a proposta de falar sobre a vida por meio da morte e, principalmente, sobre o que fazemos (ou deixamos de fazer) com a irrefreável passagem do tempo.
Não há como assistir à minissérie sem tentar se encontrar em algum daqueles personagens — ou melhor, em algum daqueles pares (trios?). Do casal apaixonado e fiel até a morte de um deles, passando por outro que desconstrói a ideia de que a vida finalmente entra nos trilhos após o casamento, ao mulherengo convicto e independente que abandona a mulher e os filhos para viver como sempre bem entendeu, Fim nos lembra de que não existem modelos certos ou errados de relacionamentos e que, na verdade, são as nossas decisões em torno deles que moldam boa parte de quem nos tornamos. Nesse sentido, o vai e vem entre os diferentes tempos jamais se apresenta como mera muleta para revelar segredos ou montar uma intrincada ciranda de afetos, e sim como uma excelente ferramenta dramática, pois ao encontrarmos os personagens já envelhecidos, decadentes ou à beira da morte, a experiência de vê-los tão jovens, vivos e otimistas se torna no mínimo agridoce.
Sob o comando dos diretores Andrucha Waddington e Daniela Thomas, o elenco reflete a harmonia da minissérie como um todo. Na realidade, é um verdadeiro prazer acompanhar a diversidade de talentos e instintos de intérpretes tão diferentes e complementares entre si. Como Ciro e Ruth na juventude, Fábio Assunção e Marjorie Estiano esbanjam carisma para, com o passar dos anos, mergulharem nas dores e frustrações de um casal diante do desmoronamento do seu castelo de conto de fadas. Já na pele de Neto e Célia, Heloísa Jorge e David Junior traduzem o afeto, mas também a firmeza, de quem mostra que, sim, o “felizes para sempre” é possível quando tudo é conversado às claras. Por outro lado, Thelmo Fernandes, como o tragicamente ingênuo Álvaro, e Debora Falabella, dando vida à uma afiada Irene, mostram os machucados e desencontros de duas pessoas unidas por mera pressão das convenções da época. Por fim, enquanto Emilio Dantas captura a eterna falta de perspectiva afetiva de Ribeiro, Bruno Mazzeo (em seu melhor momento) e Laila Garin são ótimos ao contrastar as diferenças de duas pessoas com visões de mundo muito diferentes e que só concordam em discordar sobre a forma como enxergam a vida e suas responsabilidades.

Destaque dado a personagens femininas garante que Fim não seja celebração masculina em épocas marcadas pelo machismo normalizado.
Além de dividir a direção dos episódios com Daniela Thomas, Andrucha Waddington ficou a cargo de toda a concepção artística de Fim, uma missão árdua, tendo em vista as várias décadas contempladas, o fato de o elenco permanecer o mesmo durante toda trama e o próprio tom a ser empregado diante de um material amplo em sentimentos e personagens. Para isso, ele se utiliza de uma parte técnica primorosa que também captura em detalhes o bairro de Copacabana ao longo dos anos. A direção de arte assinada por Kiti Duarte e Rafael Cabeça, por exemplo, é meticulosa na reconstituição de época, assim como a trilha sonora de Gabriel Ferreira e do mestre Antonio Pinto cadencia os diferentes gêneros explorados com temas nada óbvios, como aquele marcante que encerra cada um dos capítulos. Andrucha concebe Fim artisticamente garantindo a alternância de fases da trama sem artificialismos, e isso é muito importante, pois evita distrações e garante fluidez na maneira como a minissérie contextualiza o espectador.
Aos 32 anos, tenho a felicidade de preservar grandes amigos, e Fim me pega muito nesse aspecto. Além de encenar os momentos de festa e diversão experimentados por Ciro, Álvaro, Neto, Silvio e Ramiro, a história coloca os amigos em conflito com a finitude de suas juventudes, de seus laços e, claro, de suas vidas. Por que um deixou esse plano antes do outro? Quem será o próximo? Em que momento eles deixaram de ser incansáveis foliões para se tornarem dependentes de remédios? Como a vida foi distanciando pessoas que um dia já foram tão íntimas? Impossível não se colocar no lugar deles — e no de suas esposas e namoradas, figuras essenciais para que Fim não seja a celebração de homens em uma época de machismo normalizado, mas sim daquilo que Fernanda Torres chama de “epitáfio do macho”. Se realmente não houver outra vida, eles todos se deparam com a conclusão aterradora de que certos erros nunca poderão ser consertados e de que biografias não podem ser reescritas. O que resta é, parafraseando a canção “Divino Maravilhoso”, seguir atento e forte, sem medo de temer a morte — porque, afinal, ao contrário do que diz Álvaro em uma das cenas mais bonitas de Fim, ela deveria, sim, ensinar alguma coisa a todos nós.
“Assassinos da Lua das Flores” traz olhar mais íntimo de Martin Scorsese para um importante registro histórico
My color.

Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Eric Roth e Martin Scorsese, baseado no livro “Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI”
Elenco: Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, Tantoo Cardinal, Cara Jade Myers, Janae Collins, William Belleau, Jillian Dion, Jason Isbell, John Lithgow, Brendan Fraser, Scott Shepherd
Killers of the Flower Moon, EUA, 2023, Drama/Policial, 206 minutos
Sinopse: Na virada do século 20, o petróleo trouxe uma fortuna para a nação Osage, que, da noite para o dia, tornou-se uma das mais ricas do mundo. A riqueza desses nativos americanos atraiu imediatamente intrusos brancos, que manipularam, extorquiram e roubaram dinheiro Osage antes de recorrerem a assassinatos.

Não é um whodunit, e sim um who-didn’t-do-it. Nas palavras do próprio diretor Martin Scorsese, Assassinos da Lua das Flores não coloca o espectador na busca pela identidade de quem teria cometido uma série de crimes contra a nação Osage, nos Estados Unidos, em meados dos anos 1920. A tragédia foi tamanha que o filme sabiamente dispensa o mistério para refletir sobre a moralidade (ou a falta dela) através de um recorte em que o crime é dado como hábito. O difícil mesmo é descobrir quem não está por trás de uma conspiração em busca de território, fortuna e poder que, como tantas outras, expõe as cicatrizes da formação dos Estados Unidos como nação.
Baseado no livro homônimo de David Grann, Assassinos da Lua das Flores poderia ser, em linhas gerais, um clássico policial com a marca de Scorsese. Entretanto, o cineasta vem munido de grande sensibilidade ao equilibrar uma áurea épica com as jornadas íntimas dos personagens. Para chegar neste equilíbrio, uma mudança de perspectiva foi fundamental: aquela proposta por Leonardo DiCaprio de que o roteiro não fosse focado, como inicialmente escrito, na investigação dos crimes pelos olhos de um xerife, e sim na vivência de quem abraçou e perpetuou a violência contra a nação Osage.
Ao concordar com a ideia de DiCaprio, o roteirista Eric Roth e o próprio Scorsese tecem uma trama protagonizada por figuras conflituosas, afinal, os crimes eram arquitetados, majoritariamente, por homens que se casavam com as mulheres herdeiras da fortuna adquirida a partir da descoberta de petróleo nos territórios Osage. De explosivos implantados em pontos estratégicos a um esquema médico que envolvia injeções adulteradas de insulina, os métodos variavam conforme conveniência de cada golpe, e são vistos no filme a partir da relação entre Ernest (DiCaprio), que é envolvido pelo tio William Hale (Robert De Niro) no esquema, e Mollie (Lily Gladstone), que vê a sua comunidade ameaçada diante dos crimes.
A alternância entre o corrompimento de Ernest e o contido desespero de Mollie é o que faz de Assassinos da Lua das Flores o trabalho mais instigante entre os lançados por Scorsese nos últimos anos. As características que lhe tornaram Scorsese seguem presentes, mas com outro ritmo, outra atmosfera. Por sinal, ainda que tenha custado mais de 200 milhões de dólares, o projeto é comedido em escala, seja ela a técnica ou a emocional, como podemos perceber na trilha sonora de Robbie Robertson, sutil até mesmo quando precisa criar algum sentimento de tensão, e no excelente elenco, com destaque para a interpretação econômica e ao mesmo tempo muito contundente de Lily Gladstone, que rouba o filme para si toda vez que entra em cena, e para Robert De Niro, que se equilibra habilmente entre o verdadeiro caráter de seu personagem e o que ele busca transparecer para a sociedade.
São mais de três horas de projeção que o diretor conduz com admirável unidade, o que nem sempre costuma acontecer, como é possível constatar em O Irlandês, seu trabalho anterior. Isso talvez venha de um perceptível afeto de Scorsese pelo romance original, que também foi cotado para adaptação por diretores como JJ Abrams e George Clooney. Difícil imaginar outra pessoa contando essa história, mesmo que ela, inevitavelmente, seja frequentemente mais inclinada para abordagens já conhecidas de Scorsese com seus personagens masculinos gananciosos do que para de fato uma inédita representatividade temática. À parte isso, Assassinos da Lua das Flores é, sim, um dos filmes imperdíveis do ano.
51º Festival de Cinema de Gramado #7: “Mussum, o Filmis”, de Silvio Guindane

Se há alguma magia a ser alcançada por qualquer cinebiografia, essa deveria ser a de conseguir emular, em seu próprio espírito, as razões que popularizaram um personagem a ponto de ele ser digno de virar filme. Não são muitas as que conseguem, mas podemos creditar bons exemplos a filmes como Rocketman, que se apropria da imaginação de Elton John para contar sua história por meio de um musical, e até mesmo o documentário Cássia Eller, que, mesmo convencional em formato, consegue capturar a verve da cantora-título ao fazer escolhas certeiras de depoimentos ou recortes específicos. E, por mais que reproduza a cartilha de sempre das cinebiografias, Mussum, o Filmis se junta a esses resultados felizes em que um projeto parece mesmo tomado pela energia de seu personagem.
A estreia nos cinemas brasileiros está prevista para o dia 3 de novembro, e não será surpresa alguma se o filme de Silvio Guindane conseguir mobilizar plateias com a boa mistura alcançada entre humor, samba e dramas familiares. Mussum, o Filmis é, antes de qualquer coisa, muito brasileiro e habilidoso ao construir uma fácil comunicação com o público, principalmente porque não tenta engrandecer a todo custo a história do protagonista, sempre visto com um homem simples e comum, sem aqueles tradicionais arcos de ascensão, fama e queda que já são de praxe no gênero. O longa acerta em preferir o ser humano ao ícone cômico do início ao fim, o que confere grande dignidade tanto a Mussum (Aílton Graça) quanto a figuras importantes de sua vida.
É nos encontros que ele tem com, por exemplo, Grande Otelo, e na relação estabelecida com a mãe que o personagem ganha nosso afeto. Entretanto, tais conexões não teriam a mesma eficiência se o elenco reunido por Guindane não fosse tão coeso. Os louros dados a Aílton Graça são mais do que justificados, além de serem um presente para esse ator prolífero e que aguardava um momento de destaque como esse, mas todos merecem nota, sejam aqueles em pontas importantes, como o próprio Grande Otelo de Nando Cunha, ou os que estão ali para fazer transições, a exemplo do Mussum mais jovem de Yuri Marçal e das mães vividas por Cacau Protásio e Neusa Borges. Todos eles contam com um excelente trabalho de caracterização que se estende à personificação de outros ícones como Elza Soares e Jorge Ben.
Ao mesmo tempo em que tais acertos tiram a experiência do clima enfadonho que já é característico das tantas cinebiografias produzidas atualmente, eles não nos distraem da falta de ousadia no formato, da escolha por evitar polêmicas (o maior conflito, por assim dizer, é a separação muito discreta dos Trapalhões em função de Didi) e dos discursos literais e edificantes, como aquele em que, próximo ao final da projeção, o protagonista dá a um grupo de crianças carentes. Contudo, na hora de fechar a conta, Mussum, o Filmis pode até não ser um grande longa, mas tem coração de sobra para já ser melhor do que a média das dramatizações que chegam aos cinemas envolvendo figuras da vida real.
51º Festival de Cinema de Gramado #5: “Mais Pesado é o Céu”, de Petrus Cariry

No melhor da linha tênue entre o pessimista e o realismo, Mais Pesado é o Céu pinta o retrato de um Brasil já terminado, com dois protagonistas que, apesar das duras adversidades, precisam olhar para frente, mas que sequer conseguem abrir os olhos. Eles são Antônio (Matheus Nachtergaele) e Teresa (Ana Luiza Rios), estranhos à beira da estrada que acabam unidos pelo aparecimento de um bebê abandonado. Seria essa pequena criança um vislumbre de esperança para uma vida repleta de incertezas e desprovida de perspectivas?
Mais Pesado é o Céu pode ser resumido a partir desse recorte. No entanto, o segundo longa-metragem do cearense Petrus Cariry é mais sobre atmosfera e menos sobre uma história propriamente dita. Aliás, leva um certo tempo para que o espectador, naturalmente inclinado a desvendar o que acontecerá com os personagens em termos de acontecimentos, acostume-se à ideia de que o objetivo do diretor está em se comunicar por meio de imagens e, principalmente, sensações, convidando a plateia para um mergulho na vida de duas pessoas que mal sabem como ou onde estarão ao final do dia.
Também fotógrafo do filme e autor do roteiro ao lado de Firmino Holanda e Rosemberg Cariry, Petrus registra a estrada não como a esperançosa via para se chegar a um destino, mas como um não-lugar em que pessoas estão vivas sem necessariamente estarem vivendo. O bebê que poderia ser o símbolo de um futuro diferente ou, quem sabe, da construção de uma família logo exige de Antônio e Teresa sacrifícios ainda maiores em comparação ao que estavam acostumados em suas vidas como andarilhos, colocando-os praticamente em queda livre.
Mais Pesado é o Céu não economiza na dureza com que trata seus protagonistas, ao mesmo tempo em que também lhes observa com outros traços. Uma cena que exemplifica muito bem essa mistura é aquela em que Antônio, a partir de um gesto muito natural, toma o resto de leite da mamadeira do bebê. Trata-se de algo ao mesmo tempo incômodo, tragicômico e compreensível, pois mostra a decisão errática tanto de um homem que rouba o já escasso alimento de uma criança quanto a de um desamparado também estado de fome.
Na estrada de Petrus Cariry, bebês são abandonados, mulheres precisam se prostituir para garantir seu sustento e homens são tão medíocres quanto violentos. Entretanto, Mais Pesado é o Céu reserva, sim, espaço para algum tipo de luz no fim do túnel, seja nas entrelinhas do desfecho violentamente vertiginoso ou nas personagens de suporte vividas por Danny Barbosa e Silvia Buarque, ambas mulheres que tentam, na medida do possível, dar algum ombro ou acolhimento para a sofrida Teresa.
“O que a gente fez com a gente?”, pergunta, em certo ponto, o Antônio de Matheus Nachtergaele. A pergunta representa perfeitamente o que Mais Pesado é o Céu coloca na tela em imagens, seja por meio da excelente fotografia do próprio Cariry ou da intensa e atmosférica trilha sonora de João Victor Barroso. Não é para qualquer tipo de público — assim como, de imediato, logo após a sessão, pensei que não fosse para mim —, mas trata-se de uma experiência no mínimo fora da curva e que, mesmo difícil e pesada de se digerir, pode muito bem se engrandecer conforme é relembrada e refletida.
51º Festival de Cinema de Gramado #4: “Tia Virgínia”, de Fabio Meira

O diretor Fabio Meira diz que levou dez anos para escrever o roteiro de Tia Virgínia, mas que, na verdade, a gênese está em uma “pesquisa” de 43 anos observando a sua própria família e as mulheres que o formaram como ser humano. Assim é o cinema de Fabio: inspirado em lembranças pessoais e cercado de delicadeza para falar sobre aquilo que lhe é muito próximo, conhecido e, claro, familiar. As Duas Irenes, seu precioso trabalho de estreia, era baseado em histórias que o diretor ouvia e, agora, Tia Virgínia coloca na tela momentos que ele próprio testemunhou. Isso explica muita coisa sobre um longa-metragem tão bem apropriado de suas personagens e das relações estabelecidas entre elas.
A tia Virgínia do título é vivida por Vera Holtz. Trata-se de uma mulher que viu o tempo passar e não realizou nada na vida. Hoje, cansada e refém de uma rotina extenuante, cuida da mãe mais velha e que está em uma cadeira de rodas sem sequer conseguir falar. E, mais do que exausta, não estaria tia Virgínia enlouquecendo um pouco também? Sua tragédia pessoal não é esse contexto em si, mas sim a constatação de que ela está do jeito que está porque suas duas outras irmãs jogaram para ela a responsabilidade de cuidar da mãe, ainda que se abstenham de reconhecer qualquer parcela de autoria nisso. É nessa ciranda familiar que Tia Virgínia concentra ressentimentos, sonhos perdidos e, quem sabe, o vislumbre de uma ruptura.
Assim como no Álbum de Família de Tracy Letts, a tia Virgínia de Vera Holtz mal abre as janelas e as cortinas da casa, traduzindo o sufocamento vivido pela personagem e, logo em seguida, trazido pelas irmãs que chegam para o Natal. O grande atrito encenado pelo filme de Fabio Meira mora nessa interferência que as irmãs Valquíria (Louise Cardoso) e Vanda (Arlete Salles) insistem em fazer no modo como Virgínia vive sua vida e até mesmo cuida da casa e da mãe. Como o excelente roteirista que é, Meira transcende a abordagem clássica de irmãs que amam e se odeiam para também deixar o espectador curioso sobre o que a protagonista, frequentemente surpreendente e imprevisível, reserva para uma véspera de Natal em que promete fazer um importante anúncio.
Há muito mais do que a mistura entre drama e comédia no texto de Tia Virgínia. A cena em que a protagonista, por exemplo, cai em uma gargalhada descontrolada na hora do almoço é um passeio pelas variadas emoções dela própria e dos outros personagens à mesa, com diversão, estranhamento e até constrangimento. Ter as irmãs questionando a sanidade da irmã torna tudo ainda mais interessante tanto porque nos coloca nesse mesmo lugar quanto nos faz entender que muitas das “loucuras” de Virgínia são uma maneira da personagem extravasar aquilo que a manipulação não tão velada das irmãs varre para debaixo do tapete em um constante jogo de aparências.
Para dar vida às personagens, Fabio Meira reuniu um elenco de primeira. Impossível não começar a falar sobre ele sem esbaldar reconhecimento para o grande desempenho de Vera Holtz, que não costuma receber protagonismos como esse no cinema brasileiro. Ela encontra o equilíbrio perfeito entre todas as facetas de Virgínia e tem momentos que levaram a plateia do 51º Festival de Cinema de Gramado à apoteose, com direito a aplausos em cena aberta. Vera está muitíssimo bem acompanhado de Arlete Salles e Louise Cardoso, seja pela performance individual de cada uma ou pela inegável química como um trio. Ainda há o pequeno papel de Antônio Pitanga, que diverte sem se estabelecer como um simples alívio cômico.
Como diretor, Fabio Meira comanda Tia Virgínia com esmero, fazendo escolhas interessantíssimas e, por que não, ousadas, a exemplo de quando deixa fora de quadro um embate catártico da trama, entregando ao espectador a missão de tentar imaginar aquilo que não conseguimos ver. A mise-em-scéne garante que o resultado não se assemelhe a uma peça de teatro filmada (o que costuma ser uma dificuldade para longas ambientados em um único espaço) e a cuidadosa direção de arte comunica discretamente a história daquele núcleo familiar. Se, com As Duas Irenes, Fabio Meira já era um cineasta a se acompanhar, agora, com Tia Virgínia, consolida sua identidade como realizador e deixa a curiosidade se o que vem por aí é, quem sabe, o último capítulo de uma trilogia inspirada em suas crônicas familiares.