Cinema e Argumento

“O Que Só Sabemos Juntos” (e com o teatro humanamente ímpar de Denise Fraga)

oquesossabemosjuntos

Na sala de estar, um homem dança com a música em volume máximo. Sua mulher, prestes a entrar em uma call, pede para que ele diminua o som. Ofendido, o homem desliga a música e diz que está sendo privado de curtir o momento. Não é verdade. A mulher apenas pediu para que ele diminuísse o som, e não que ele o desligasse, mas é tarde demais, a discussão já começou. Entre tudo o que um diz ao outro a partir dali, descortinando silêncios, mágoas e frustrações, há um componente que, no final das contas, é a cura e a doença de qualquer relacionamento: a palavra, hoje tão mal usada, frequentemente tratada com descaso e, acima de tudo, pouco escutada.

E não é de hoje que Denise Fraga fala sobre polir palavras. Neste seu mais novo espetáculo chamado O Que Só Sabemos Juntos, em cartaz pelo Brasil desde o último mês de abril, ela, dividindo o palco com Tony Ramos, traz para o palco inquietudes do mundo moderno, a partir de uma proposta que ela diz ter assumido com ela própria: a de buscar textos e reflexões que lhe são caras e importantes do ponto de vista pessoal. Desde A Alma Boa de Setsuan (2008), passando por Galileu Galilei (2015), A Visita da Velha Senhora (2017) e Eu de Você (2020), a atriz se apropria de obras de autores como Bertold Brecht e Friedrich Dürrenmatt para, então, polir as palavras e entregá-las às plateias de formas que elas percebam como certas questões são atemporais e universais — e como a arte nos ajuda pelo menos a sofrer mais bonito e em comunhão.

O Que Só Sabemos Juntos é uma potencialização de Eu de Você, espetáculo em que Denise Fraga, a partir de cartas enviadas por pessoas desconhecidas, entrelaçava a vida comum com o teatro, a música e a literatura. Tinha Paulo Leminski, mas também Zezé di Camargo e Luciano. Ou, então, Beatles e Chico Buarque para, logo em seguida, apresentar a história de um menino rejeitado por sua homossexualidade. Lá, Denise já rompia a fronteira entre o popular e o erudito. E mais: apagava as linhas que separam o público sentado na plateia do ator que se apresenta no palco. Em muitos sentidos, O Que Só Sabemos Juntos bebe da fórmula de sucesso de Eu de Você: novamente sob a batuta do diretor Luiz Villaça e agora acompanhada da sensibilidade de Tony Ramos, Denise torna o espectador um personagem do espetáculo, mas sem jamais se repetir.

A escuta é o farol norteador do espetáculo. Antes mesmo de subirem ao palco, Denise e Tony transitam na plateia, recebendo o público e entrando em contato com suas histórias. Algumas delas, chegam ao palco, onde a dupla interpreta mil e um personagens. Ora são Denise Fraga e Tony Ramos mesmo, ora são um casal fictício. No próprio caráter autobiográfico do texto, eles se multiplicam: Tony, por vezes, não é o ator com 60 anos de carreira e cerca de 140 personagens na conta — ele é também, e talvez até mais, o Toninho de sua mãe, garoto que pedia dois cruzeiros para ver o Oscarito no cinema e que ia até a sessão saltitando com seus calçados na areia. E Denise se transforma na garotinha que andava de táxi com seu tio Fausto, a quem ela relembrava nas imagens de uma câmera Super 8 projetadas na sala de estar da casa de sua vó. Eles são muitos. E são todos nós.

oquesossabemosjuntos2

O grande crítico de cinema Roger Ebert uma vez que escreveu que existe um paradoxo em filmes que são tão pessoais – ao invés de serem específicos, eles são, na verdade, universais, pois muitas das emoções e angústias compartilhadas pela humanidade são as mesmas. O Que Só Sabemos Juntos segue essa mesma lógica e é construído a partir de um desejo genuíno de ser uma conversa, e não algo erudito, ininteligível ou distante. O texto, por sinal, foi todo construído na sala de ensaio, sem estrutura prévia, compilando questões que Denise, Tony, Villaça e demais membros da equipe consideravam urgentes para esses nossos tempos. Só não valia uma coisa: ser didático. Missão cumprida na medida em que o espetáculo fala até sobre questões ambientais sem parecer algum tipo de panfletagem — pelo contrário, até nos dar o prazer de ver Tony Ramos declamando palavras do clássico Tio Vânia, de Chekov.

Parte da afetividade de O Que Só Sabemos Juntos ainda está na maneira como a memória é reverenciada, sejam a dos personagens em cena ou a da própria plateia, e como o texto nos propõe a olhar para o futuro e para, como bem ilustra o subtítulo de Tio Vânia, deixar algo aos que vierem depois de nós. A exemplo de Eu de Você e de tantos outros papeis de Denise, o espetáculo caminha no terreno fértil entre o drama e a comédia. Se a tal discussão do casal sobre baixar a música começa cômica, é questão de pouco tempo para que ela nos faça refletir sobre as dinâmicas espinhosas de um relacionamento e sobre o tratamento desrespeitoso e violento da sociedade para com as mulheres. Ao meu ver, o melhor momento da história contada. Trata-se de um mérito estendido, claro, ao diretor Luiz Villaça, em seu trabalho mais maduro nos palcos ao comandar uma peça de difícil definição, no melhor sentido da palavra — e, neste caso, por isso mesmo, tão instigante e diferente do que estamos habituados a ver.

Como um fã assumido de Denise e Villaça, digo que O Que Só Sabemos Juntos só poderia ter sido feito por eles, e por mais ninguém. Se, durante o tempo em que esperei para conferir o espetáculo desde sua estreia, fiquei me perguntando como ele não seria apenas uma versão 2.0 de Eu de Você, hoje me pego surpreendido com o resultado, que é comovente e humano em seu cerne, mas também de um exercício cênico inquieto, ao estilo do próprio texto. O prazer de ver Denise e Tony dançando, cantando, correndo, divertindo e emocionando obviamente salta aos olhos (e não teria como ser diferente, já que ela, em certo ponto, até solta a voz em um momento musical delicioso ao som da clássica I Will Survive), mas, para a nossa alegria e emoção, eles são parte de algo muito maior, algo coletivo e agregador. Algo que só existe com a presença do outro. Inclusive de nós próprios na plateia.

TIFF 2024, #11: “Bird”, “Flow”, “Nightbitch” e “Queer”

flowtiff

BIRD (idem, 2024, de Andrea Arnold): É o tipo de história que me comove e que a diretora Andrea Arnold (Cow, Docinho da América) aborda com melancolia e esperança: a de pessoas comuns sufocadas pelas dificuldades e pelo abandono da vida, mas que, mesmo assim, seguem em frente, quem sabe encontrando algum tipo de pertencimento. Neste caso, a protagonista Bailey (Nykiya Adams, uma revelação) procura, em outros lugares, a atenção que não recebe em casa do pai e do irmão. Lá pelas tantas, encontra Bird (Franz Rogowski), que também vive solitário em uma busca pessoal. Não demora para que Bailey e Bird passem a se reconhecer em suas ausências e lacunas, algo que Arnold explora com muita delicadeza. Por vezes, o longa tateia várias questões e tons sem necessariamente conseguir abordar todos com a devida unidade, mas Arnold conhece bem seus personagens e dilemas, tornando tocante os momentos mais simples, como aquele em que em que um grupo de homens embriagados canta Yellow, do Coldplay. Entre estranhezas e sinceridades, Bird é maduro na sua análise da juventude colidindo com a vida adulta. Contudo, tem seus melhores contornos quando adentra a generosidade entre Bailey e Bird. O próprio surrealismo empregado à maneira como a primeira eventualmente enxerga o segundo se constrói em cima de pura compaixão e esperança. Não por acaso, o filme termina com um otimismo agridoce que está, sim, impresso em palavras, mas que, em última instância, emociona mesmo é no silêncio e no quanto uma certa alegoria expõe um florescimento conquistado em cima de pequenas grandes batalhas.

FLOW (idem, 2024, de Gints Zilbalodis): Enquanto o duo Disney-Pixar continua obcecado em produzir live actions e sequências de seus filmes mais queridos, uma produção independente como Flow é um verdaeiro frescor. Vinda da Letônia, a animação se concentra na jornada de um gato solitário em meio a uma grande inundação de traços pós-apocalípticos. Para sobreviver, ele precisa conviver com outras espécies, desafiando sua convivência com as diferenças em todos os sentidos. De visuais que a revista Rolling Stone categorizou como muito semelhantes a de jogos de videogame como Zelda, Flow encontra beleza ao fugir do hiper-realismo cada vez mais desejado por grandes estúdios em suas técnicas de animação. O diretor Gints Zilbalodis prioriza outras que fazem toda a diferença, como a de não antropomorfizar os personagens. Gatos são apenas gatos. Cachorros são apenas cachorros. E eles se comportam como tais. Sem diálogos, Flow, portanto, explora a dinâmica dos animais a partir de suas características específicas, o que torna tudo instigante, principalmente porque gatos são seres tão curiosos quanto desconfiados, receita perfeita para esse mundo desconhecido em que o filme se passa. Zilbalodis, que escreve o roteiro ao lado de Matiss Kaza, proporciona sequências sublimes e divertidas, a partir de uma trama que deixa de lado grandes aventuras para se focar em aspectos básicos de uma luta por sobrevivência. Sempre é possível contar uma mesma história a partir de outras perspectivas. Merecidamente, Flow teve sua estreia mundial na prestigiada mostra Un Certain Regard do último Festival de Cannes.

NIGHTBITCH (idem, 2024, de Marielle Heller): Menos “estranho” do que o esperado, Nightbitch traz Amy Adams em um tipo de papel que, por diversas vezes, me remedeu a Tully, de Jason Reitman, o que, no meu caso, é excelente sinal. Dando vida a uma mãe sem nome, Adams parte da perspectiva muito realista de que a maternidade está longe de ser um mar de rosas — na verdade, é um dos períodos mais desafiadores da vida de qualquer mulher. Só que Nightbitch trabalha essa temática com outros contornos na medida em que a personagem abraça gradativamente o comportamento instintivo e, vez ou outra, selvagem enraizado na maternidade, considerando a ideia de que talvez esteja se transformando em um cão. Com isso, claro, o longa começa a ganhar traços mais surrealistas, algo bem dosado pela diretora e roteirista Marielle Heller (Poderia Me Perdoar?, Um Lindo Dia na Vizinhança). O fato de Nightbitch ser um bom entretenimento com uma proposta, digamos, atípica é importante porque mostra como Heller tem grande habilidade ao não deixar que o filme se torne inconvincente nos paralelos traçados entre a maternidade e os instintos caninos, muito menos que exponha os envolvidos a representações constrangedoras. Ao mesmo tempo, por justamente não se arriscar tanto nas possibilidades mais fantasiosas da transformação da personagem, o resultado perde a oportunidade de alçar certos voos. A verve que, de certo modo, falta ao filme pelo menos é equilibrada pela presença de Amy Adams, que se diverte e aproveita um frescor que não tem sido lhe oferecido muita frequência  em trabalhos recentes.

QUEER (idem, 2024, de Luca Guadagnino): O público que conhece apenas o Luca Guadagnino em função do hype de Me Chame Pelo Seu Nome e Rivais certamente sairá frustrado de Queer, o mais novo longa-metragem do diretor centrado em uma história de amor gay. Ambientado na Cidade do México dos anos 1940, o filme acompanha um expatriado americano que se apaixona por um homem muito mais jovem, embarcando em uma jornada de desejos reprimidos, vícios e a incomunicabilidade do amor. Queer, entretanto, é um dos trabalhos menos impactantes de Guadagnino, mesmo com uma performance marcante da carreira de Daniel Craig. O roteiro escrito por Justin Kuritzkes, com base no romônimo de William S. Burroughs, vai muito bem na primeira metade, quando se debruça em um minucioso estudo de protagonista e em como ele tem sua vida transformada pelo jovem Eugene (Drew Starkey). Inexplicavelmente, tudo vai por água abaixo a partir do momento em que Queer leva os personagens para a América do Sul em busca de ayahuasca. A viagem tira o filme de todos os eixos, inclusive do erotismo maduro e orgânico contruído até ali, pois Guadagnino entra demais nos efeitos alucinógenos e na loucura do vício. É uma estranheza que não tem efeito de imersão e que esvazia tudo o que Queer tinha de melhor, além de cometer o crime de desperdiçar uma grande atriz como Lesley Manville, ainda que ela, em um primeiro momento, reafirme a sua inegável versatilidade. Depois do empolgante Rivais, Guadagnino decepciona vertiginosamente.   

TIFF 2024, #10: “Disclaimer”, de Alfonso Cuarón

tiffdisclaimer

Trançando literatura com audiovisual, o mexicano Alfonso Cuarón escreveu e dirigiu todos os episódios da minissérie Disclaimer com certo apavoramento — afinal, quando recebeu o convite da Apple TV para comandar esse projeto, o cineasta deixou muito claro que não sabia dirigir séries e trabalharia a adaptação do livro homônimo de René Knight com a mesma lógica de um longa-metragem. É um tipo de abordagem que traz complicações, visto, por exemplo, Crisis in Six Scenes, série dirigida por Woody Allen para o Prime Video que ele próprio diz ter sido uma das experiências mais traumáticas da sua carreira. Não por acaso, ninguém assistiu — e o resultado foi solenemente ignorado até por críticos e premiações.

Embarquei em Disclaimer, portanto, com grande receio. Seria Cuarón capaz de não fazer apenas um longa-metragem visivelmente picotado em sete partes? Conseguiria ele trazer uma atmosfera seriada para a história, sem deixar os episódios indistinguíveis entre si? Pois o diretor é exitoso nesse desafio lançado a si próprio, a começar pela decisão de absorver bastante da essência literária da trama para transportá-la ao seu sempre admirável esmero técnico como realizador. O que quero dizer com isso é que, entre outras coisas, Disclaimer conta sua história a partir de múltiplas vozes que ganham vida nas narrações em off. Isso evoca tanto a amplitude com que a narrativa literária destrincha entrelinhas para desenvolver personagens quanto ao ritmo particular de uma obra escrita.

Não há, contudo, obviedades no uso das narrações. Pelo contrário, há personalidade, como acontece com o Stephen Bridgestocke de Kevin Kline, que desafia constantemente o espectador com as suas observações ácidas e sem amarras, ainda mais quando o alvo em questão é toda a família da jornalista Catherine Ravenscroft (Cate Blanchett). Ao se utilizar das melhores ferramentas de um exercício literário, Cuarón termina por driblar o seu pavor de não dominar uma narrativa seriada. Ainda que alguns episódios sejam melhor lapidados do que outros em termos de estrutura, existe raciocínio interno em cada um deles. Não é como se eles ficassem incompletos quando vistos de forma independente – e, quando porventura ficam, é porque deixam instigantes ganchos para os próximos capítulos, algo sempre bem-vindo em séries.

Sem pressa alguma, Disclaimer vai revelando as peças de um quebra-cabeça cujo grande conflito se concentra no pânico de Catherine ao receber um livro que estaria revelando erros gravíssimos de seu passado — erros esses que ela sempre tentou guardar a sete chaves, inclusive da sua própria família. Há um quê de Animais Noturnos na proposta, mas as semelhanças param por aí. Disclaimer, intitulada no Brasil como Difamação, reencenará passagens do livro em questão ao mesmo tempo em que criará uma ciranda de (re)ações acerca do passado da protagonista. Se a famosa lei do retorno dá conta de nos devolver tudo o que entregamos ao universo, sejam elas coisas boas ou ruins, a minissérie não se atém apenas a isso: até o último episódio, o roteiro será prismático e questionará como cada um impõe as suas verdades e faz os seus próprios julgamentos, incluindo nós, espectadores. 

Tento ser o mais subjetivo possível sobre a trama porque ultrapassar essa fronteira é entregar boa parte das maneiras com que ela avança e recompensa. O público feminino, em particular, terá boas análises para fazer do conjunto final. Ainda assim, sem revelar detalhes e o desfecho, sobram outros elogios que eu não poderia deixar de registrar, todos em dose dupla: para Emmanuel Lubezki e Bruno Delbonell, que fotografam uma Londres cinzenta e uma Itália ensolarada como poucos; para Finneas O’Connell e o Atticus Quartet, que, nessa ordem, compõem e performam a sublime trilha sonora; e, claro, para Cate Blanchett, mas, especificamente, para Kevin Kline, que há muito tempo não recebia um papel à altura de seus repertório e que, por diversos momentos, me lembrou a Barbara Covett de Judi Dench em Notas Sobre Um Escândalo. Um time ímpar a serviço de uma das melhores minisséries do ano.

 

Ler mais

TIFF 2024, #9: “Babygirl”, de Halina Reijn

babygirlmovie

“As pessoas chamam de bravura quando uma atriz se desnuda, se atira no desconhecido e mergulha nas partes mais sombrias do que significa ser humano, mas eu não acho que seja bravura. Acho que é amor. Acho que ela ama isso. E acredito que essa é a maior qualidade que um ator pode ter: uma mistura de apetite, curiosidade e atrevimento.”, disse Meryl Streep ao entregar o AFI Lifetime Achievement Award em abril deste ano para a colega Nicole Kidman.

A descrição é perfeita porque, afinal, desde sempre, Nicole foi uma atriz muito instintiva na hora de escolher projetos diferentes e arrojados, mesmo quando eles, ao saírem do papel, não estivessem à altura do prometido. Entre erros e acertos, sua carreira foi tudo, menos previsível. E Babygirl, que lhe rendeu a Volpi Cup de melhor atriz na última edição do Festival de Veneza, é mais uma adição interessante à sua múltipla e extensa lista de papéis. 

Como Romy, a renomada CEO de uma grande empresa que começa a ter um caso com seu mais novo estagiário, Nicole mostra, outra vez, a sua total e sempre bem-vinda falta de julgamento acerca das suas personagens. Ela abraça as contradições e complexidades de uma mulher às voltas com seus ímpetos sexuais reprimidos sem cerimônias, seja se ajoelhando para tomar leite em um potinho como uma completa submissa ou navegando nos sentimentos mistos de uma profissional dividida entre a autoridade e a fragilidade.

Seja pela performance isolada ou pelo que ela representa dentro de seu rol de personagens, a atriz é quem captura o interesse do espectador por um filme cujas discussões não são exatamente novas se relembrarmos, por exemplo, o drama Secretária, de 2003, em que Maggie Gyllenhaal interpreta uma jovem que, trabalhando com o dono de um escritório de advocacia, passa ter com ele relações sexuais em que os limites de dominação e submissão são testados.

Quando assisti ao filme em uma sessão para a imprensa no TIFF, ouvi muitos colegas se referindo a Babygirl como “intenso” ou “corajoso”, especialmente quando queriam fazer alusão ao teor sexual do longa. Lembro de retrucar — e eles acabarem concordando: para os padrões norte-americanos de cinema, sim, o filme da holandesa Halina Reijn (Morte Morte Morte) pode ser visto dessa forma, mas só por quem não é familiarizado com a crueza da filmografia de uma atriz como a francesa Isabelle Huppert — que, aliás, presidiu o júri responsável por conceder à Nicole o prêmio de melhor atriz em Veneza. 

Como um thriller erótico, Babygirl entretém nesse samba de quase uma nota só, onde a protagonista tenta manter em segredo o seu envolvimento sexual com o novo estagiário. Também tem bons insights ao trazer à tona a reflexão sempre importante sobre como as mulheres são reprimidas sexualmente pela sociedade. Porém, o roteiro é menos arrojado do que o esperado, e a recompensa do desfecho se revela comportada eaté previsível. Se não fosse por Nicole e sua entrega, Babygirl seria apenas um filme trivial.


BABYGIRL REVIEW

“People call it bravery when an actress bares all and leaps off into the unknown, she dives deep into the darker parts of what it is to be a human being. But I don’t think it’s bravery. I think it’s love. I think she just loves it. And I think that’s the greatest attribute an actor can have, is that blend of appetite and curiosity and recklessness.”, said Meryl Streep when presenting the AFI Lifetime Achievement Award this April to her colleague Nicole Kidman.

The description is perfect because, after all, Nicole has always been an instinctive actress in choosing daring and unique projects, even when the end result might not live up to its promise. With hits and misses, her career has been anything but predictable or conventional. Babygirl, which won her the Volpi Cup for Best Actress at the latest Venice Film Festival, is yet another fascinating addition to her diverse and expansive range of roles.

As Romy, the esteemed CEO of a major company who begins an affair with her new intern, Nicole once again displays her refreshing and complete lack of judgment toward her characters. She embraces the contradictions and complexities of a woman struggling with her repressed sexual impulses unreservedly, whether by crawling on all fours to drink milk from a bowl as a submissive or by navigating the mixed emotions of a professional torn between authority and vulnerability.

Whether for the performance itself or what it signifies within her repertoire, Nicole captures the audience’s interest in a film whose themes aren’t entirely new. For instance, consider the 2003 drama Secretary, where Maggie Gyllenhaal plays a young woman who enters a BDSM relationship with her boss, testing boundaries of domination and submission.

At the TIFF press screening, I overheard many colleagues describing Babygirl as “intense” or “brave,” especially when referring to its sexual content. I recall countering them — and they agreed: by American cinema standards, the Dutch director Halina Reijn’s (Bodies Bodies Bodies) film could indeed be seen this way, but only by those unfamiliar with the rawness of an actress like France’s Isabelle Huppert—who, incidentally, chaired the jury that awarded Nicole Best Actress at Venice.

As an erotic thriller, Babygirl entertains in its nearly one-note plot, where the protagonist attempts to keep her relationship with the intern a secret. It also offers valuable insights, particularly through its thought-provoking reflections on how women are still sexually repressed by society. However, the script isn’t as clever as one might hope, and the ending’s payoff is rather tame, directed in a somewhat predictable way. If not for Nicole, Babygirl would be a trivial film.

TIFF 2024, #8: “Saturday Night”, de Jason Reitman

Saturday Night não tem a intenção de ser um filme sobre o programa Saturday Night Live propriamente dito. Para o diretor e roteirista Jason Reitman (Juno, Obrigado Por Fumar, Amor Sem Escalas), o objetivo sempre foi lançar um olhar sobre a efervescência de ideias e imprevistos que antecederam os minutos da estreia desse clássico da televisão norte-americana. E haja efervescência nisso: em quase duas horas de duração, Saturday Night traz incontáveis personagens, situações e dilemas para remontar o nascimento de um programa que, de 1975 até os dias de hoje, molda boa parte da forma como o público estadunidense enxerga o humor e o entretenimento.

Roteirista de mão cheia, Reitman encena o caos, mas não o controla. Tudo em Saturday Night é hiperbólico, com uma enxurrada de referências e piadas que parecem não caber em um roteiro já verborrágico por natureza. Muito se deve ao fato de que o filme tenta emular a essência do programa, o que não chega a ser uma justificativa. O grande empecilho está no quanto ele é autocentrado, fascinado consigo mesmo. Reitman quer impressionar a todo custo como diretor, seja com as longas sequências pensadas para explorar a esmerada reconstituição de época e cenários ou com o infinito desfile de personagens que entram e saem de cena. Tudo em alta velocidade, ao mesmo tempo.

O desejo de deslumbrar o espectador é tanto que Saturday Night torna excessivo até mesmo o uso da ótima trilha sonora de Jean Batiste, que improvisou seu trabalho in loco, fazendo as composições conforme as filmagens se desenrolavam. A mesmíssima lógica se aplica ao elenco, pois, não bastasse o extenso número de personagens em cena, Reitman ainda garante que haja a maior quantidade possível de rostos famosos os interpretando, mesmo em papéis minúsculos. Com isso, nomes como Willem Dafoe, J.K. Simmons, Rachel Sennott, Matthew Rhys, Nicholas Braun (com dois papéis!), Dylan O’Brien, Tracy Letts e Cooper Hoffman se transformam em praticamente distrações revezadas.

Imagino que, para os familiarizados com os bastidores do Saturday Night Live, a experiência é das mais divertidas, já que o longa se apropria bem do formato do programa para traduzi-lo em personagens e na imaginação do que teria acontecido naqueles momentos antes de uma estreia histórica. Um dos acertos do longa, aliás, é conseguir emular a urgência e o suspense que acometeram a equipe através de uma narrativa quase em tempo real, mérito mais do formato do que do roteiro em si. Em contraponto, para os leigos como eu, acredito que Saturday Night é pouco interessante e orgânico, quando não aborrecido mesmo.


SATURDAY NIGHT REVIEW

Saturday Night doesn’t aim to be a movie about Saturday Night Live itself. For director and screenwriter Jason Reitman (Juno, Thank You for Smoking, Up in the Air), the goal was always to take a look at the whirlwind of ideas and unpredictability that preceded the minutes before the premiere of this classic American TV show. And there’s a lot of whirlwind: in almost two hours, Saturday Night brings countless characters, situations, and dilemmas to recreate the show that, from 1975 until today, has shaped much of how the American public views humor and entertainment. 

A skilled screenwriter, Reitman stages the chaos but doesn’t control it. Everything in Saturday Night is hyperbolic, with a flood of references and jokes that seem too much for an already verbose script. This is partly due to the fact that the film tries to emulate the essence of the show, which isn’t quite a justification. The major obstacle is how self-centered it is, fascinated with itself. Reitman is eager to impress as a director at any cost, whether through the long sequences designed to explore the painstaking period reconstruction and sets, or through the endless parade of characters entering and exiting scenes. Everything happens at high speed, all at once.

The desire to dazzle the viewer is so overwhelming that Saturday Night even makes excessive use of Jean Batiste’s excellent soundtrack, which was improvised on-site, with compositions created as the filming unfolded. The same logic applies to the cast; despite the already large number of characters on screen, Reitman still ensures that as many famous faces as possible portray them, even in minor roles. As a result, actors like Willem Dafoe, J.K. Simmons, Rachel Sennott, Matthew Rhys, Nicholas Braun (in two roles!), Dylan O’Brien, Tracy Letts, and Cooper Hoffman become practically rotating distractions.

I imagine that for those familiar with the behind-the-scenes of Saturday Night Live, the experience is highly enjoyable, as the film effectively captures the format of the show to translate it into characters and the imagination of what might have happened in those moments before a historic premiere. One of the film’s strengths, in fact, is its ability to emulate the urgency and suspense that gripped the crew through an almost real-time narrative, a credit more to the format than the script itself. On the other hand, for outsiders like me, I believe Saturday Night is less interesting and organic, if not downright boring at times.