Cinema e Argumento

“Triângulo da Tristeza” é uma piada divertida e eficiente, ainda que no limite da repetição

In den wolken!

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Direção: Ruben Östlund

Elenco: Harris Dickinson, Charlbi Dean, Dolly De Leon, Vicki Berlin, Woody Harrelson, Zlatko Buric, Alicia Eriksson, Carolina Gynning, Amanda Walker, Sunnyi Melles, Iris Berben, Oliver Ford Davies, Ralph Schicha, Arvin Kananian, Henrik Dorsin

Triangle of Sadness, Suécia/França/Reino Unido/Alemanha/Turquia/Grécia, 2022, Comédia, 147 minutos

Sinopse: Modelos e influenciadores do mundo da moda, Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean) são convidados para um cruzeiro a bordo de um luxuoso iate na companhia de outros tripulantes multimilionários. Tudo termina de forma catastrófica quando eles ficam encalhados em uma ilha deserta, onde a hierarquia de classes sofre uma súbita reviravolta.

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Em sua cena mais catártica, Triângulo da Tristeza coloca dois personagens embriagados e de ideologias opostas para literalmente recitarem piadas sobre comunismo e capitalismo. Gosto de pensar que ela representa muito bem o novo filme do sueco Ruben Östlund, já que, pela primeira vez, o diretor parece ter decidido abandonar o verniz de filme sério ou de arte que sempre aplicou em seus projetos. Os questionamentos em torno da masculinidade em Força Maior e a acidez ao tratar o mundo da arte em The Square eram interessantes, mas bem menos originais ou profundos do que suas celebrações mundiais sugeriram. Já em Triângulo da Tristeza, não há pose ou meias palavras, e isso é muito saudável, pois se alinha com as verdadeiras qualidades e fragilidades de um diretor que agora revela ter até uma vocação mainstream.

Afirmo aqui, sem muito medo de errar, que Triângulo da Tristeza não mudará a opinião de ninguém sobre Östlund, para o bem e para o mal. É bem provável, inclusive, que esse filme potencialize os (des)afetos de cada um em torno do diretor. No caso do Festival de Cannes, é puro amor: em apenas cinco anos, foram duas Palmas de Ouro para Östlund, feito alcançado apenas por um seleto grupo que inclui nomes como Francis Ford Coppola, Ken Loach, Michael Haneke e os irmãos Dardenne. Fico em um meio terno, sem ir ao céu ou ao inferno. O que sempre acho interessante é o alvoroço causado por Östlund, pois as discórdias acabam sendo o combustível de seu nome e de suas obras. Digo que as opiniões sobre ele seguirão as mesmas porque Triângulo da Tristeza chuta o balde ao abraçar um caldeirão de temas efervescentes: diferença de classes, mídias sociais, o mito da beleza, o status do dinheiro… Não há economia na escolha de assuntos.

Além disso, Triângulo da Tristeza tem zero sutileza, encenando de grandes bebedeiras a vômitos incontroláveis, e já começa bastante explicativo, contando ao espectador que o tal triângulo da tristeza se refere à parte do rosto entre as sobrancelhas que os modelos contraem para parecerem sérios ou sensuais em ensaios fotográficos e desfiles. Tudo é ipsis literis, e essa falta de minúcias costuma ser vista como demérito. Mas, afinal, por que o escracho haveria de ser problema para um filme quando vivemos nesse mundo em que governantes parecem saídos de esquetes cômicas e pautas ressurgem como ainda mais força quando pensávamos que elas haviam sido superadas? Só é possível tratar os horrores dos nossos tempos com discrição? O ridículo não seria o registro dessa vida que vivemos e vemos todos os dias na TV?

Nesse sentido, o longa muito se assemelha a filmes como Não Olhe Para Cima e Medida Provisória porque considera a caricatura da vida real um elemento mais do que suficiente para a ficção. Não à toa, estamos falando de filmes que, em suas respectivas dimensões, foram sucesso de público. É por isso que afirmo a vocação mainstream do novo longa de Östlund: ela não se dá somente pelo tom cômico, mas também por essa nossa ampla familiaridade com os ricos patéticos e cafonas da trama, figuras universais em noticiários diários. De fabricantes de granadas a oligarcas russos, o iate de luxo de Triângulo da Tristeza é um amontoado de pessoas que, na situação de naufrágio anunciada já na sinopse, acabam não servindo para nada. Ao tratá-los com deboche, o filme garante que todos se tornem detestavelmente interessantes de acompanhar, efeito semelhante ao que Mike White alcançou no excelente seriado The White Lotus.

Entre o desprezo e o ridículo, Östlund oferece momentos catárticos, como a já famosa cena de jantar que estampa cartazes alternativos do filme. Eles abrem portas para que Triângulo da Tristeza, ao contrário de Força Maior e The Square, se comunique com mais plateias e principalmente nivele as vocações do diretor com aquilo que de fato ele entrega, sem disfarces. No que me toca, acho que o sueco convida o espectador para uma experiência com a qual é difícil rivalizar se houver sintonia com a atmosfera. Até mesmo os momentos escatológicos e as brigas fúteis de gente rica funcionam aqui, muito em função do ótimo elenco, com destaque para a faxineira vivida por Dolly De Leon e para a dinâmica entre Harris Dickinson e Charlbi Dean — ela, por sinal, em seu último trabalho devido a uma morte prematura aos 32 anos de idade.

Acontece que Triângulo da Tristeza não ressoa por muito tempo após a sessão, o que não costuma ser bom sinal. Apesar dos absurdos tão familiares e da assertividade de Östlund em não tentar dar um passo maior do que a perna, o longa carece de certa potência. E tenho lá alguns palpites para as razões desse desencontro. Um deles é a tendência do roteiro em às vezes se importar mais com os temas do que com os personagens, reduzindo coadjuvantes a piadas pontuais, por exemplo. O outro talvez seja mais importante. Com a velocidade que as coisas se movem nos dias de hoje, tendências e ideias têm prazos mais curtos de validade. O que é descoberta logo vira tendência – e, por fim, uma fórmula que precisa ser repensada, recriada, reimaginada. Triângulo da Tristeza não chega a soar como piada velha, mas está nessa linha tênue entre surfar na onda do momento e se tornar uma piada já contada repetidas vezes.

Rapidamente: “5 Casas”, “A Porta ao Lado”, “A Queda” e “Retrato de Mike Nichols”

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5 Casas foi o grande vencedor da mostra gaúcha de longas do 50º Festival de Cinema de Gramado.

5 CASAS (idem, de Bruno Gularte Barreto): Grande vencedor da mostra de longas-metragens gaúchos do Festival de Cinema de Gramado deste ano, 5 Casas é um documentário intimista que leva o diretor Bruno Gularte Barreto de volta a Dom Pedrito, pequena cidade onde nasceu no interior do Rio Grande do Sul. O foco está em cinco casas povoadas de histórias da sua infância, e o viés extremamente pessoal conferido ao projeto jamais se aproxima de uma viagem em torno do próprio umbigo. Pelo contrário: 5 Casas é melancólico e delicado ao costurar a história de Barreto com a de outras pessoas, entre elas, a de um jovem vítima de preconceitos por conta de sua homossexualidade e a de uma freira prestes a ser transferida da escola em que trabalhou por décadas. A melancolia se evidencia nesse contraste que o diretor faz entre quem ficou na cidade e quem foi embora, enquanto a delicadeza é depositada na maneira muito calma e nada invasiva com que os depoimentos são registrados. Intercalando e guiando o filme está a narração do próprio Barreto, sempre capaz de fazer observações certas nos momentos mais apropriados, além de conferir uma certa poesia a um filme já contemplativo em seu tom memorialístico. É um longa-metragem de estreia que revela um diretor promissor no olhar maduro atribuído a histórias cotidianamente íntimas e no seu relato inicialmente pessoal levado a um plano mais universal, trazendo nas histórias narradas um Brasil acometido, entre outras coisas, pela homofobia e pelos avanços das incorporadoras imobiliárias.

A PORTA AO LADO (idem, 2022, de Júlia Rezende): Foi um corpo estranho no último Festival de Cinema de Gramado, pois não conversava com a seleção extremamente engajada do ponto de vista social e político. À parte isso, realmente não me envolvi com A Porta ao Lado, oitavo longa-metragem de Júlia Rezende. O filme propõe um olhar contemporâneo sobre modelos de relacionamento, tendo dois casais no centro de história. Ambos reavaliarão seus conceitos e ideias sobre suas dinâmicas afetivas a partir do momento em que passam a ser vizinhos de porta. No entanto, falta certa perspicácia ao texto, que, a meu ver, é construído a partir de bases estereotipadas. No que se tange às possibilidades de uma argumentação, soa fácil demais colocar o casal monogâmico como certinho, rotineiro e de cabeça fechada, enquanto o par de relacionamento aberto é descolado, disruptivo e criativo. Talvez essa seja a amostragem comportamental mais expressiva das relações que adotam os respectivos formatos, mas ela não é de muita ajuda para tornar A Porta ao Lado uma leitura encorpada sobre como vivemos tempos que tanto questionam padrões. O elenco, apesar de entrosado, é irregular e fica sem ter muito para onde ir devido a esse olhar do roteiro. De qualquer forma, eles acabam por segurar uma trama de caminhos já conhecidos em muitos aspectos. Isso, por outro lado, deixa A Porta ao Lado em uma zona mais acessível e que, dada a vocação da filmografia de Júlia Rezende, pode lhe garantir outro sucesso comercial como Meu Passado Me Condena e De Pernas Para o Ar 3, o que, vale frisar, não é demérito.

A QUEDA (Fall, 2022, de Scott Mann): Há 20 ou 30 anos, teria feito certo sucesso. Hoje, não passa de uma tentativa empoeirada de causar frisson e medo com uma situação de risco muito curiosa e que se sobrepõe à preocupação de criar um bom roteiro. No caso, estamos falando de duas amigas que resolvem escalar sozinhas uma abandonada torre de rádio nos Estados Unidos. A altura é realmente de dar calafrios e, em certa dose, A Queda proporciona bons momentos ao brincar com a vertigem. Acontece que isso é pouco para sustentar um longa-metragem, especialmente quando ele é mal escrito e protagonizado por atrizes muito fracas. O roteiro exige imensa boa vontade do espectador para acreditar em circunstâncias das mais esdrúxulas — afinal, como acreditar que duas pessoas seriam tão tolas de escalar uma torre abandonada e de estrutura tão precária sem o mínimo de segurança ou contato com o mundo exterior? E por aí vai: bateria de celular durando mais de 48 horas, personagens tirando forças sabe-se lá de onde, cordas que não arrebentam em situação alguma… No meio de tudo isso, querendo dar algum peso dramático, o roteiro introduz os batidos traumas passados para que tudo resulte em uma experiência de superação e autoconhecimento. Tem como levar a sério? Claro que não, o que não seria um problema se A Queda fosse minimamente habilidoso ao causar angústia por méritos próprios e não por apenas se aproveitar dos medo e enjoos de uma situação já naturalmente incômoda.

RETRATO DE MIKE NICHOLS (Becoming Mike Nichols, 2016, de Douglas McGrath): Mike Nichols é, com certeza, um dos diretores do qual mais sinto falta no cinema norte-americano. Ele nos deixou em 2014, vítima de infarto, e seu legado é uma filmografia preciosa. Parte dela é recuperada nesse documentário-entrevista gravado quatro meses antes da sua morte, no Golden Theatre da Broadway. Obviamente, o formato assumido de entrevista, intercalado com imagens de filmes e momentos de sua carreira, acaba limitando o documentário do ponto de vista criativo, mas a conversa flui com grande naturalidade, tanto por Nichols ter sido um cineasta inteligente quanto pela condução de Jack O’Brien, diretor teatral e seu amigo muito próximo. O tom de intimidade traz leveza a um documentário que busca investigar o início da carreira de Nichols e sua escalada de sucesso até o Oscar de melhor direção por A Primeira Noite de Um Homem. Com esse recorte, ficam de fora marcos que renderiam outra grande conversa, a exemplo das espetaculares adaptações de Angels in America e Closer – Perto Demais e a prolífera parceria com Meryl Streep em obras como Lembranças de Hollywood, Silkwood e A Difícil Arte de Amar. Isso, entretanto, não é problema, ja que o início da carreira de Nichols é igualmente interessante. O olhar especial dado ao teatro se destaca, claro, por ser a origem de sua carreira artística e também porque seria a porta de entrada para a estreia no cinema, dirigindo, logo de cara, a dupla Elizabeth Taylor e Richard Burton em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Ou seja, por mais que Retrato de Mike Nichols se limite a ser apenas o registro de uma conversa, o resultado é plenamente compensado pelo brilhantismo de seu personagem.

Viola Davis define “A Mulher Rei” como a sua magnum opus — e é fácil entender o motivo

We have a weapon that they are not prepared for.

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Direção: Gina Prince-Bythewood

Roteiro: Dana Stevens e Maria Bello

Elenco: Viola Davis, Lashana Lynch, John Boyega, Hero Fiennes Tiffin, Sheila Atim,
Shaina West, Jordan Bolger, Jayme Lawson, Jimmy Odukoya, Masali Baduza, Thando Dlomo, Angélique Kidjo, Chioma Antoinette Umeala, Sivuyile Ngesi

The Woman King, EUA/Canadá, Ação, 135 minutos

Sinopse: Um épico histórico inspirado em fatos reais ocorridos no Reino do Daomé, um dos estados mais poderosos da África nos séculos XVIII e XIX. A história segue Nanisca (Viola Davis), general da unidade militar feminina, e Nawi (Thuso Mbedu), uma recruta ambiciosa, que juntas lutaram contra os franceses e tribos vizinhas que violaram sua honra, escravizaram seu povo e ameaçaram destruir tudo pelo que viveram.

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Tidas como mulheres altas, musculosas, de pele clara e cabelos compridos e negros, as Amazonas sempre habitaram o imaginário de Viola Davis como a representação máxima da presença feminina em campos de batalha. Seu ponto de referência, entretanto, passou a ser outro quando Viola recebeu o convite para fazer A Mulher Rei. A atriz ficou tão estupefata com a descoberta das Agojies, guerreiras negras que formavam o exército feminino do reino de Daomé na África, que o aceite para embarcar no projeto veio em um piscar de olhos, abrindo portas para uma viagem transformadora que hoje Viola diz ser a sua magnum opus — ou seja, a sua obra-prima, a sua grande arte de valor excepcional até aqui.

Bastam poucos minutos de projeção para entendermos as razões que levaram Viola a fazer uma afirmação tão contundente em uma carreira já repleta de trabalhos excepcionais. Isso porque é muito potente a imagem de Nanisca (Viola) se revelando para uma batalha junto ao seu exército de Agojies. Elas — não apenas mulheres altas ou fortes, mas de todos os portes e personalidades — partem para a luta com imensa garra, em uma sequência de ação devidamente calibrada em realismo e visceralidade. Mais do que isso, esse momento que abre A Mulher Rei já deixa muito claro que, para além do entretenimento, o filme chega aos cinemas para reescrever a história e redesenhar incontáveis imaginários.

A sequência de ação, no entanto, não é um sinal de que o longa Gina Prince-Bythewood será o típico blockbuster abarrotado de adrenalina e fórmulas fáceis. Vários elementos do gênero estão ali — a jornada de transformação da protagonista, a construção de uma nova heroína, um plot twist no meio disso tudo para ressignificar sentimentos —, só que A Mulher Rei é bem mais espirituoso do que a expressiva parcela de superproduções que povoam as salas de cinema de maneira desproporcional, começando pela ideia de apresentar as Agojies como mulheres que entendem o seu próprio valor e força em uma sociedade que lhe dá status por serem exatamente aquilo que elas são.

A autoestima das Agojies é contagiante nesta história de narrativa reversa para o ponto de vista hollywoodiano. Em A Mulher Rei, o povo africano é o detentor da narrativa, enquanto os colonizadores estão apenas de passagem por Dahome, que, por sinal, é retratado como um reino comprometido com o progresso e novas ideias. Para povoar esta terra, o roteiro de Dana Stevens coloca em cena personagens muito maiores do que a definição de “protagonistas fortes”. Da Nanisca de Viola Davis até a Izogie de Lashana Lynch, as Agojies são todas mulheres com nuances e camadas emocionais. Humanas antes de qualquer coisa, capazes de redefinir o que significa ser forte. Essa é uma diferença brutal em comparação aos blockbusters com personagens prontos e nivelados entre si.

Quem tiver a sensibilidade para apreciar detalhes como esses certamente será capaz de relevar, por exemplo, a forma superficial com que A Mulher Rei estabelece os conflitos políticos da trama, cometendo inclusive o equívoco de transformar a mulher do rei em uma figura unidimensional e antagonista em sua vaidade. Tal tratamento não condiz com o propósito do roteiro de dar dimensão a personagens que nunca parecem iguais. É nas pequenas fragilidades do texto que Gina Prince-Bythewood também sugere não ser necessariamente uma diretora de grandes ideias, constatação atenuada pelo fato de que, apesar disso, o filme como um todo é conduzido com bom pulso por ela.

Curiosamente, mesmo os pecadilhos de A Mulher Rei acabam por servir ao propósito de um filme que, com essa dimensão, deseja alcançar um número grande de espectadores. Talvez seja o lado mais “acessível” de um projeto autêntico da técnica à essência, mas que, com frequência, encontra uma maneira de fazer coisas diferentes, como a de não pesar a mão na quantidade de cenas de ação e a de transformar até mesmo uma reviravolta novelesca em um comovente elemento de redenção e reparação histórica. Viola, que está na dianteira, fortalece tudo isso, e traz ao projeto o simbolismo que ela própria vem cultivando para si nos últimos anos como atriz — o de ser uma agente da transformação através da arte, nada menos do que um papel simplesmente imbatível.

Envolto em rumores, “Não Se Preocupe, Querida” carece de personalidade e ideias próprias

Everyone’s acting like I’m crazy.

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Direção: Olivia Wilde

Roteiro: Carey Van Dyke, Katie Silberman e Shane Van Dyke

Elenco: Florence Pugh, Harry Styles, Chris Pine, Gemma Chan, Olivia Wilde, Kate Berlant, Nick Kroll, Timothy Simmons, Sydney Chandler, Douglas Smith, Dita Von Teese, KiKi Layne, Kaleigh Krause, Asif Ali, Monroe Cline, Wylie Anderson

Don’t Worry, Darling, EUA, 2022, Drama/Suspense, 122 minutos

Sinopse: Uma dona de casa (Florence Pugh) que vive em uma comunidade experimental começa a suspeitar que a empresa de seu marido (Harry Styles) está escondendo segredos perturbadores.

DON'T WORRY DARLING

A máxima de que nunca é um bom sinal quando fofocas repercutem mais do que o filme em si volta a se confirmar com Não Se Preocupe, Querida, que foi alvo até mesmo de especulações sobre uma possível cuspida do astro Harry Styles em seu colega de elenco Chris Pine no último Festival de Veneza. Vem ainda da época de filmagens as confusões tão alimentadas pela internet e pela imprensa, mas, como sempre, o que resta a ser avaliado é a obra em si — e, neste caso, Não Se Preocupe, Querida tem quase nada a dizer.

Com um argumento pífio e descaradamente plagiado de As Esposas de Stepford, de 1975 e refilmado em 2004 com Nicole Kidman sob o novo título de Mulheres Perfeitas, o roteiro assinado a seis mãos por Carey Van Dyke, Katie Silberman e Shane Van Dyke sequer consegue tirar proveito da eventual leitura crítica que poderia fazer sobre um mundo artificial em que mulheres vivem para servir seus maridos. Ao contrário, o conflito aqui é apenas o de uma protagonista às voltas com a suspeita de que algo está sendo escondido, seja lá o que for.

Sem entender o potencial das simbologias presentes em seu próprio projeto, Não Se Preocupe, Querida termina por descambar para o clichê da mulher em busca da verdade para provar que não está louca. Para tanto, repete alucinações de forma exaustiva e inventa desculpas medíocres para a história evoluir minimamente. Afinal, como levar a sério a ideia de que uma mulher, por exemplo, percorreria sozinha uma escaldante estrada de chão batido e infinito apenas porque ficou preocupada ao ver um avião caindo no outro lado da montanha?

É um tanto chocante que, sendo uma mulher, Olivia Wilde tenha deixado o longa resvalar em uma leitura deveras antiquada de gênero. E não há recompensa no looping de paranoia da protagonista, pois, ao longo de quase duas horas, Não Se Preocupe, Querida não entrega novos elementos para que o espectador possa se envolver na construção de descobertas ou soluções. Tudo é somente um interminável cacoete para que, faltando 15 ou 20 minutos, o roteiro despeje de uma vez só respostas e reviravoltas.  

Chamo de cacoete e não de exercício porque Wilde pouco cria em cima dos destacados trabalhos de design de produção e fotografia. Assumidamente inspirada em filmes como O Show de Truman e A Origem, ela tem alcance estético e conceitual limitado apenas a um ponto de partida que não vai a lugar algum e que é constantemente preenchido por distrações, a exemplo de uma sequência cansativa e dispensável em que Harry Styles faz uma apresentação de dança. Fica evidente que suas ideias fluem muito melhor quando as intenções são mais genuínas e o orçamento é três ou vezes menor como em Fora de Série, seu longa-metragem de estreia como diretora.

O único vislumbre real de dedicação e do mínimo de nuances está no desempenho de Florence Pugh, atriz que já provou ser boa o suficiente para sair ilesa de enrascadas como essa. Deslumbrante sem fazer esforço, Pugh mostra que só sai de casa para mergulhar de verdade em suas personagens, mesmo quando a água é rasa. São mil e um os malabarismos feitos por ela para vencer o roteiro vazio, a falta de atmosfera e a química inexistente com Harry Styles, que substituiu Shia Labeouf e nem chega a ser tão prejudicial na bagunça maior que é Não Se Preocupe, Querida como um todo.

Quando revela as peças finais do quebra-cabeça, o filme chuta de vez o balde e perde qualquer ambição de entregar algo consistente. Não estou falando da previsível frustração envolvendo a resolução principal, mas sim da pequena ação desenfreada que tenta encenar e, principalmente, das micro reviravoltas envolvendo personagens que, de uma hora para outra, descortinam ambições e motivações nunca antes sugeridas ou, então, dramas pessoais apresentados de última hora para inocentar personagens passíveis de julgamentos por suas atitudes.

Se Não Se Preocupe, Querida foi impulsionado até aqui por fofocas de bastidores, é bem provável que, chegando aos cinemas, caia no esquecimento, pois sua falta de entrega em termos de entretenimento, mistério e envolvimento é das mais alarmantes. Hoje aparentemente evitada por Florence Pugh como o diabo foge da cruz, Olivia Wilde sai do filme como a mais prejudicada. Além da imagem como diretora conturbada nos bastidores, ela aqui tem a proeza de fazer com que o espectador fique em dúvida se os elogios colecionados por Fora de Série talvez não se tratem de uma sortuda exceção.

Homenageando David Bowie, “Moonage Daydream” captura a essência de um personagem como poucos documentários conseguem

The greatest adventure that only one person could ever have.

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Direção: Brett Morgen

Roteiro: Brett Morgen

Alemanha/EUA, Documentário, 135 minutos

Sinopse: Moonage Daydream é um documentário-concerto que segue a vida e a carreira musical de David Bowie. O filme explora a jornada criativa, musical e espiritual do artista icônico e ilumina não apenas a vida, mas também a personalidade de Bowie, que além de atuar em música e cinema, explorou outras formas de arte ao longo de sua vida, incluindo dança, pintura, escultura, colagem, audiovisual, roteiro, atuação e teatro. Para criar uma experiência artística, a obra apresenta faixas musicais e arquivos pessoais de Bowie, além de registros inéditos.

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Guardados os méritos e afetos envolvendo documentários sobre músicos contemporâneos, nada consegue competir com produções desse mesmo gênero que tomam o devido tempo e a devida perspectiva para fazer reverência a uma obra. É óbvio que o tão digitalizado século 21 clama pela instantaneidade de registrar o íntimo de astros em ascensão, mas há grandiosidades que só nascem e são observadas com o passar do tempo, algo que Moonage Daydream exemplifica gloriosamente.

Talvez só o tempo mesmo seja capaz de dar conta de uma figura como David Bowie para além do sucesso estrondoso que já podia ser observado ao longo de sua carreira. Olhar para o homem e para o legado se torna uma tarefa ainda mais difícil se tratando de Bowie, que sempre jogou para o alto quaisquer regras e nunca teve medo de se arriscar, seja no plano profissional ou pessoal. Pior ainda: como definir um artista que sempre rejeitou definições?

Somente na sala de edição, o diretor Brett Morgen ficou quatro anos debruçado sobre incontáveis imagens e entrevistas de Bowie. Sua paixão pela ideia de realizar Moonage Daydream foi tanta que, pela primeira vez, o David Bowie Estate, instituto responsável pela preservação oficial da obra do música, concedeu acesso sem precedentes à extensa coleção, um privilégio raríssimo.

Brett canalizou toda a sua admiração por Bowie em criar um documentário que fosse, principalmente, uma ode à essência de um artista sempre em plena metamorfose. Esse posicionamento faz de Moonage Daydream uma obra que, portanto, dispensa cartilhas e propõe uma experiência. Ou seja, esqueça depoimentos de amigos e familiares, cronologias de álbuns, registros da infância ou ferramentas mais alinhadas a uma reportagem televisiva.

Em 135 minutos, o documentário traz David Bowie por David Bowie, como se ele estivesse narrando a sua própria história conforme ela passa. Entre depoimentos e entrevistas históricas, como aquela concedida em 1973 para Russell Harty, a sua primeira inteiramente televisionada, a montagem se propõe a emular o imaginário de seu personagem com trechos de shows, animações, efeitos visuais e muitas referências, jamais recorrendo ao óbvio.

A efervescência de referências apresentadas em Moonage Daydream vão de Georges Méliès a Philip Glass, de F. W. Murnau a Jack Kerouac, e são diversão garantida para quem aceitar o desafio de tentar identificá-las no ritmo assumidamente frenético do documentário, que revela, no final das contas, uma visão muito particular sobre a vida, inclusive provocando o espectador a reavaliar questões existenciais e a questionar os tempos atuais.

Brett Morgen é habilidoso ao falar sobre a vida através de um legado, muito em função de Bowie sempre ter sido uma pessoa que, mesmo reconhecendo sua inabilidade social, tinha reflexões e provocações de sobra para compartilhar sobre o estado das coisas. Em certo ponto, Bowie diz que sempre gostou de se colocar em riscos para, a partir daí, ver a arte e o mundo fora de sua zona de conforto. Essa visão em constante mudança do mundo — literalmente, pois ele se desafiou a morar em realidades diferentes da sua, seja nos Estados Unidos ou no Japão — é o que dá combustível ao lado existencial da obra.

Tão importante quanto as subversões do cantor que a mídia, desde sempre fascinada e desconfortável com o novo, tentava enquadrar em frases prontas ou colocar em caixinhas é o respeito de Moonage Daydream pelo David Bowie que, mais além, decidiu abraçar o amor romântico que um dia chamou de doença e abraçou uma fase cuja maior pretensão era “apenas” agradar o público. O que os jornalistas taxaram de domesticação, para ele, era uma nova compreensão de si mesmo e de como as coisas mudam ao longo da vida.

A trilha sonora inevitavelmente primorosa — Heroes!, Life on Mars!, Let’s Dance! — pavimenta essa viagem caleidoscópica, para não escapar do termo já definitivo para falar sobre o filme. Ela é tão enérgica que impulsiona Moonage Daydream mesmo quando o filme se prolonga e corre o risco de pesar a mão no frenesi ao quase não dar espaço para silêncios e respiros. Para além disso, casa perfeitamente com o vistoso e dedicado trabalho estético de um diretor que consegue equilibrar fan service com novas ideias. Mais artistas mereciam homenagens como essa.

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