Três atores, três filmes… com Bruno Carmelo
Crítico de cinema desde 2004, Bruno Carmelo já passou por diversos veículos de comunicação, como AdoroCinema, Papo de Cinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua – Revista Universitária do Audiovisual, além de ser mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III. Ao longo de sua trajetória, também se tornou membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Acompanho o trabalho do Bruno há certo tempo e sabia que viria coisa boa da sua seleção para a coluna. Ele não só contabilizou mais uma menção à Giuletta Masina, tornando-a a atriz mais citada entre os 60 convidados que já passaram por aqui, como selecionou o primeiro trabalho de dublagem citado aqui, no caso, o de Pat Carroll como a inesquecível Ursula de A Pequena Sereia. Confiram abaixo todas as escolhas e comentários!
Giulietta Masina (Noites de Cabíria)
A atriz italiana foi uma das maiores intérpretes da sua geração, capaz de representar a fusão entre o estilo bruto no neo-realismo e as formas mais poéticas de atuação que se abriram ao cinema na Itália. Os livros de História costumam reduzi-la ao rótulo machista de “musa” de Federico Fellini, seu marido. No entanto, Masina também teve participações excelentes em obras de outros realizadores. Noites de Cabíria representou o ápice de sua carreira, não apenas em termos de premiações, mas de composição. A prostituta sonhadora, longe de qualquer idealização de beleza ou sedução, poderia se transformar numa vítima piedosa, excessivamente ingênua. A grande atriz injeta em Cabiria um vigor e uma melancolia impressionantes, mostrando-se excelente tanto nos silêncios quanto nos diálogos, nos instantes sozinha ou cercada de outras prostitutas. O rosto expressivo da artista marcou o imaginário de muitos cinéfilos.
Joanne Woodward (O Preço da Solidão)
A propósito de atrizes trabalhando com seus maridos, Joanne Woodward comprovou o imenso talento para papéis complexos e ingratos ao trabalhar com Paul Newman, enquanto diretor – com o diferencial, neste caso, de que ela sempre conquistou maior reconhecimento popular e crítico, enquanto atriz, do que o marido na função de diretor. Este belíssimo filme, de título muito mais intrigante originalmente do que na pálida tradução brasileira (algo como O Efeito dos Raios Gama nos Cravos-de-Defunto), é inteiramente focado na mulher histriônica e agressiva, considerada pelos vizinhos como a louca da cidade, para o desespero e vergonha das filhas. Ora, o espectador é convidado aos poucos a descobrir o motivo pelo qual se porta com tamanha violência com o meio ao redor. Woodward equilibra o teor da atuação de modo a provocar comoção por uma figura controversa, triste, que expressa um amor abusivo por ser a única maneira que aprendeu a amar. Beatrice é uma das grandes personagens da história do cinema, e a cena em que esta mãe visita a peça da filha na escola, gritando com todos ao redor (“Meu coração está cheio!”) representa um dos instantes mais fortes e dolorosos do cinema norte-americano.
Pat Carroll (A Pequena Sereia)
Assim como a história do cinema valoriza muito mais a imagem do que o som, a apreciação de atores também está mais ligada ao trabalho de corpo do que ao trabalho de voz. Ora, o cinema trouxe atuações brilhantes de voz original, algo indispensável a tantas animações clássicas. Pat Carroll foi uma figura essencial neste processo, e caso as premiações reconhecessem seu devido valor, ela seria listada no panteão de grandes intérpretes do cinema. Em especial, construiu a vilã Ursula, uma das melhores personagens da história do cinema animado, em A Pequena Sereia. Carroll injeta sedução, malícia, agressividade e uma dose inesperada de erotismo (e mesmo homoerotismo) quando o cinema ainda era ingênuo (ou esperto demais) para introduzir tais elementos numa produção familiar sem despertar a ira dos conservadores. Seja cantando ou falando, em tom introvertido ou exaltado, Ursula possui uma variação, uma intensidade e intencionalidade na voz que a situa entre as adversárias mais bem construídas da sétima arte – seja em animação ou live-action. Poor unfortunate souls são aqueles que nunca realmente reconheceram o papel artístico e expressivo da voz de um ator.
Três atores, três filmes… com Otávio Almeida
Os colegas e amigos entusiasmados por cinema que a vida na internet me trouxe se tornaram pessoas que, inevitavelmente, eu conheci e passei a ter como referência também através da escrita. Desbravei meus primeiros textos sobre cinema lendo, por exemplo, a Kamila Azevedo, que já participou aqui da coluna, e não tardou para que outros se somassem ao time, como o Otávio Almeida, que hoje é o 60º convidado desta seção sempre cercada de carinho. Acho simbólico ter Otávio como o rosto deste marco justamente em função dos tantos anos virtuais compartilhados com escrita e muitos filmes. Autor do Hollywoodiano (hoje em sua versão no Instagram), ele ainda pode ser encontrado no podcast Era Uma Vez em São Paulo. Em ambos, faz jus ao nome do projeto com o qual cravou bandeira na internet: analisa, como ele próprio gosta de dizer, os filmes da indústria Hollywoodiana de forma debochada, exagerada, mas coerente com sua visão sobre cinema. Não é diferente aqui na coluna. Aproveitem!
Al Pacino (O Poderoso Chefão)
Sou suspeito pra falar da trilogia sagrada de Francis Ford Coppola, mas, como considero o original de 1972 meu filme favorito, não tinha a menor possibilidade aqui de destacar minha atuação preferida em outra produção. Não, não estou falando de Marlon Brando, que é monumental, mas de Al Pacino, que provavelmente ninguém entre nossos pais e avós conhecia na época. Talvez seja o cartão de visitas mais impactante entre os atores do cinema americano. É a viagem ao lado sombrio da Força ou o Breaking Bad mais sutil e impressionante que já testemunhei. O pacífico Michael Corleone dando um passo de cada vez rumo ao inferno do poder, ciente de que isso corrompe e fecha a porta sem dó na cara da esposa (e do público) na cena final. Todo o trabalho de Pacino na trilogia é uma aula, mas é no primeiro filme que ele ganha todo o nosso amor na mesma proporção do ódio. Sublime!
Bette Davis (A Malvada)
Desculpa, mas Bette Davis é a melhor atriz do mundo em A Malvada. Podemos falar de Meryl, Viola, Nicole, Isabelle Huppert, Cate Blanchett ou Katharine Hepburn, eu entendo. Obviamente, Bette Davis está nesse patamar, porém, cada palavra, postura, gesto e energia desferidas pela atriz na obra-prima de Joseph L. Mankiewicz acertam o coração e o estômago não só do restante do elenco (fica feio pra colega de cena Anne Baxter, a Eve do título original), mas do próprio público. Ela é monstruosa e traz aqui tudo que qualquer jovem atriz precisa saber para arriscar ao menos 10% desse talento na profissão.
Gloria Swanson (Crepúsculo dos Deuses)
Eu disse que Bette Davis é a melhor atriz do mundo em A Malvada? Bom, confesso que eu mesmo fico na dúvida eterna quando (re)vejo Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses (ou Sunset Boulevard, como nós cinéfilos preferimos falar). Não apenas pela icônica cena final, mas por todas as aparições sinistras que botam o grande William Holden no chinelo.
Três atores, três filmes… com Felipe Bragança
Já são mais de 20 títulos entre trabalhos como diretor e roteirista, entre eles Não Devore Meu Coração, Praia do Futuro, O Céu de Suely, Mormaço e, mais recentemente, Um Animal Amarelo, filme que tive o prazer de premiar, junto aos meus colegas de júri da crítica, como o melhor longa-metragem brasileiro do 48º Festival de Cinema de Gramado. Certamente é um currículo que atesta o quanto o carioca Felipe Bragança se tornou um dos realizadores mais interessantes da atualidade. Seu apuro estético e domínio como diretor, aliado a sua fina criatividade como roteirista, traz para esta coluna um olhar muito especial sobre a arte de interpretar, representada aqui por escolhas que transitam entre o Brasil, a Itália e os Estados Unidos, com duas grandes atrizes e um ícone do cinema nacional. Super obrigado por ter topado o convite, Felipe!
Tantas são as camadas que ligam uma personagem a um filme, suas presenças e seus recortes dentro das narrativas que optei por citar três momentos em que duas atrizes e um ator encarnaram não só um personagem, mas um filme — fizeram do filme seu corpo e vice-versa. São três dos meus atores/atrizes favoritos em todos os tempos, com quem teria uma alegria imensa de ter criado algo junto. Uma norte-americana, uma italiana e um brasileiro.
Giuletta Masina (A Estrada da Vida)
Criar uma fragilidade assim tão afiada, a ponto de conseguir conjugar encantamento e estranhamento, ternura e angústia, dentro dos mesmos gestos, é um trabalho primoroso de camadas, máscaras e afeto. Uma personagem que desmonta a realidade a seu redor não pelo que atua, mas pelo desacerto de seus gestos, de seus olhares. Masina cria um personagem que é uma peça fora da engrenagem do mundo e, ainda assim, é também todo o mundo. Precisão, ruptura e afeto. Inimitável.
Gena Rowlands (Noite de Estreia)
Minha atriz favorita de todos os tempos, com quem sonharia ter trabalhado em um filme. Gena é aqui força, desespero, firmeza, fábula, loucura, concretude e crônica cotidiana da vida de uma atriz — tudo brotando de seu corpo e de sua voz. A forma como ela consegue misturar todas essas camadas no turbilhão vivido pela personagem é de uma precisão e de uma visceralidade avassaladoras. Gena parece conseguir engolir a câmera de cinema e cuspi-la de volta, modificada.
Grande Otelo (Rio Zona Norte)
A cena em que Espírito canta seu samba para Ângela Maria e a reação que Otelo constrói com seu olhar, sorriso e corpo ao ver que sua canção foi bem recebida, essa cena, só ela, por si só, já merecia ser apresentada em looping em qualquer escola de atuação do mundo. Como pode um ator conseguir coreografar até o brilho de seus olhos? Como pode alguém conseguir modular entre a graça cômica e melancolia mais comovedora dentro de um mesmo plano, com tanta fluidez? Grande Otelo podia. E o fez. Diversas vezes ao longo de sua brilhante carreira. O maior ator brasileiro de todos os tempos, no meu sincero sentimento.
Extra: Helena Ignez
Poderosa criadora do cinema brasileiro, citada aqui não tanto por uma personagem só, mas pela rede de experimentações de cenas e gestos que ela conjuga em seus filmes e que nos abrem os olhos para o vasto mundo que nos cerca para além das regras já postas do que “se deve e que não se deve” fazer em cinema. Helena é o futuro.
Três atores, três filmes… com Thiago Kistenmacker
É revigorante encontrar profissionais do cinema que, apesar das adversidades vividas atualmente no Brasil em muitos aspectos, seguem acreditando no poder transformador da arte e batalhando para que múltiplas vozes sejam ouvidas por meio dos filmes. Recentemente, conheci o Thiago Kistenmacker, cineasta vencedor do Kikito de melhor montagem por Aquarela, membro da Academia Brasileira de Cinema e que se enquadra exatamente nesta definição. Apaixonado por seu ofício, ele apresentou, no último Festival de Cinema de Gramado, o curta-metragem Memória de Quem (Não) Fui, uma excelente crônica sobre identidade, gênero e a família que temos (ou, principalmente, a que escolhemos ter). Sou suspeito para falar porque estive na comissão que selecionou o curta do Thiago para a competição, mas ali realmente está o tipo de voz que nosso cinema precisa. De Fernanda Montenegro a Paulo Gustavo, ele também encontrou espaço para Jamie Lee Curtis na coluna, agrupando obras de drama, comédia e terror em escolhas bastante plurais e, claro, pessoais. Valeu, Thiago!
Sempre fico fascinado com pessoas que conseguem apontar facilmente qual é o seu filme, ator ou diretor favorito. Quando mais novo, era fácil eu definir rápido assim, mas o status de “favorito” hoje me soa definitivo demais. Nós mudamos, o mundo muda, filmes novos saem. Quando a gente aponta algo “inesquecível” há ainda mais peso nessa atribuição. Passei as últimas duas semanas debatendo internamente se compilaria uma lista de interpretações inesquecíveis para mim ou para um consenso acadêmico de cinema. Sinto que o consenso acadêmico é achado em qualquer lista no Google, então decidi me desprender e ser 100% pessoal. Então, essas são as performances que o Thiago de 2021 considera as mais inesquecíveis.
Fernanda Montenegro (Central do Brasil)
Sei que essa interpretação já foi citada mais de uma vez, mas eu não consigo pensar em compilar uma lista sem Fernanda Montenegro como Dora. Central do Brasil é uma referência do nosso cinema e de sua potência. Eu poderia citar outras performances incríveis da Fernanda, como A Falecida e Eles Não Usam Black-tie, mas, toda vez que eu penso na atriz, automaticamente a trilha de Central do Brasil surge no fundo do meu ouvido. Essa interpretação não só sobreviveu ao teste do tempo como parece que ganhou ainda mais força — se é possível — na sua reverberação. Não tive a chance de viver o impacto de Central do Brasil no seu lançamento, pois era uma criança na época. Talvez eu tenha essa perspectiva de que o filme só se valoriza com o tempo porque tenho uma relação razoavelmente recente com ele. Aqui Fernanda está absolutamente impecável em todas as nuances, manipulando o espectador a amar, odiar, rir e chorar com Dora, dosando perfeitamente entrega e domínio. É irônico que o filme termine com a personagem pedindo que seu parceiro de cena não a esqueça, porque nós, como público, definitivamente nunca a esqueceremos.
Jamie Lee Curtis (Halloween, 1978 e 2018)
Halloween, de 1978, é uma referência do terror. O orçamento era tão baixo que os créditos do longa apresentam cerca de 12 profissionais de equipe técnica, e os bastidores dependiam da colaboração do elenco para tarefas como pintar cenários. Os envolvidos não imaginavam que, 40 anos depois, haveria uma franquia. Dito isso, tenho consciência de que Jamie Lee Curtis protagoniza o filme ainda imatura como atriz. Trata-se de uma performance irregular em técnica e que traduz alguns maneirismos que não sobreviveram ao tempo, mas esses fatores não tornam sua Laurie Strode menos icônica. A personagem é a primeira “final girl” (protagonista feminina que luta e sobrevive ao terror de seus filmes), e a atriz definiu características de performance que seriam replicadas à exaustão nos filmes de terror dos anos 1980 e 1990. No primeiro filme, Jamie Lee Curtis criou uma personagem pela qual o público torce e traduziu, na continuação de 2018, todo o trauma dos eventos de 40 anos atrás, dessa vez com domínio técnico sobre sua atuação e influência assumida no roteiro. Nessa leitura, eu considero os dois filmes. Jamie Lee Curtis criou história no terror e habitou a juventude de muitos. Inclusive a minha.
Paulo Gustavo (Minha Mãe é Uma Peça)
Eu assisti à peça original em um teatro aqui do subúrbio do Rio. Na época, eu não acessava teatros com frequência, muito pela distância geográfica deles, e essa foi uma das poucas peças de grande repercussão que alcançou meu território quando eu tinha meus 17 anos. Anos depois, o filme saiu, e eu fiquei feliz em ver as salas de cinema cheias com um produto nacional. Mais adiante, em algum momento, eu me vi seguindo, como cineasta, uma rota diferente da que Paulo Gustavo seguia. Às vezes, a gente sente que é obrigado a levar as coisas a sério demais pela seriedade em que as coisas se encontram. Mas a realidade é que, toda vez que algo da dona Hermínia chegava até mim, eu ria. Assim, o principal objetivo Paulo Gustavo como ator de comédia era atingido. E o público não apenas riu com a dona Hermínia. O filme também emocionou muita gente que a abraçava pelo seu reflexo afetuoso de tantas mães. Com alguns sacrifícios, ele sensibilizou, em drag, muita gente preconceituosa que, se não fosse por sua performance, nunca veriam nada além do homem gay de peruca e vestido. Sinto que a gente cai no erro de não encarar performances de comédia como performances com demandas tão complexas quanto as enraizadas num realismo dramático. E, montando essa lista, ele não poderia estar de fora. A Dona Hermínia de Paulo Gustavo de fato é uma personagem que não se apagará da nossa memória coletiva.
Menções honrosas que quase entraram para o corte final: Leandro Firmino da Hora (Cidade de Deus), Meryl Streep (O Diabo Veste Prada) e Tim Curry (The Rocky Horror Picture Show).
Três atores, três filmes… com Daniel Rodrigues
Quem mergulha fundo na singular discografia de um grande compositor como Philip Glass só pode ser boa pessoa, e o Daniel Rodrigues, convidado da vez aqui na coluna, não foge à regra. Ao longo dos anos, nós nos conectamos, entre outras coisas, por meio dessa admiração em comum por Glass, mas a verdade é que, nos caminhos do Jornalismo e da crítica de cinema, sempre aprendi muito com a sensibilidade do Daniel (e vocês também poderão constatá-la nas grandes atuações escolhidas por ele logo abaixo). Estamos diante de um profissional múltiplo: jornalista, crítico de cinema, radialista, escritor, blogueiro… Há 13 anos, coedita o blog cultural Clyblog e, desde 2017, apresenta o programa Música da Cabeça da Rádio Elétrica. Como escritor, é autor do livro “Anarquia na passarela: a influência do movimento punk nas coleções de moda”, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura em 2013. Passeando pelos universos de Giuletta Masina, Leonardo Villar e Marlon Brando, Daniel esbanja, agora aqui no blog, o seu grande conhecimento e apreço pelos filmes. Aproveitem!
Giulietta Masina (A Estrada da Vida)
A Estrada da Vida é sem dúvida um dos grandes filmes de Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poética e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme O Amor (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulietta Masina na linha de frente, A Estrada da Vida seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulietta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.
Leonardo Villar (O Pagador de Promessas e A Hora e a Vez de Augusto Matraga)
Sempre quando falo sobre grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulietta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de cinco anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de O Pagador de Promessas, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). E na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre A Hora e a Vez de Augusto Matraga, certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados, não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são – até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual – desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.
Marlon Brando (O Poderoso Chefão)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de Little Wing? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em O Poderoso Chefão. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que quase se esquece que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.