49º Festival de Cinema de Gramado #3: “A Suspeita”, de Pedro Peregrino

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Glória Pires em A Suspeita: atriz interpreta investigadora que descobre ter Mal de Alzheimer ao mesmo tempo em que passa a ser alvo de investigação de seu próprio departamento.

É tão louvável quanto perigosa a decisão de investir em um gênero cinematográfico sem muita tradição em determinada cinematografia. Tratando-se de A Suspeita, que marca a estreia de Glória Pires como produtora, temos o gênero policial, circunscrito em um cinema brasileiro que não costuma explorá-lo com tanta frequência. Há, claro, dois caminhos: o do acerto, onde um realizador pode ser bem sucedido em sua aposta, entregando algo bastante diferente do que estamos acostumados a ver, ou o do erro, capaz de transformar a tentativa em um exercício pouco orgânico ou crível, especialmente se o filme cair na tentação de emular a fórmula e a atmosfera de outras produções de países consolidados no gênero. Infelizmente, em que pese a boa intenção dos envolvidos, A Suspeita se enquadra no segundo caso.

Trabalho de estreia de Pedro Peregrino na direção de longas-metragens, o filme traz Glória Pires como Lúcia, uma renomada investigadora policial que, aos 55 anos de idade, descobre ter Mal de Alzheimer, ao mesmo tempo em que acaba se tornando alvo de uma investigação de seus próprios colegas. Não há muita naturalidade na confluência da vida pessoal e profissional da protagonista, ainda menos quando o projeto dá o azar de vir logo após uma produção tão bem resolvida neste aspecto: a minissérie Mare of Easttown, da HBO, onde Kate Winslet também interpreta uma investigadora workaholic que precisa equilibrar seus dias como detetive e uma vida pessoal conturbada. A Suspeita se desarmoniza na costura de perspectivas de sua protagonista, mas o problema é anterior: seja como drama policial ou pessoal, o longa tem poucas ideias.

Mulher solitária que dedica seus dias ao trabalho, Lúcia tenta tocar a vida ignorando a gravidade do Alzheimer precoce que acaba de a acometer. Para tentar se agarrar a algum tipo de referência no futuro, passa a deixar lembretes, comentários e relatos guardados em seu computador, exatamente como a personagem de Julianne Moore fazia em Para Sempre Alice, filme que, entre tantas outras inspirações, serviu de clara referência para a equipe. O problema é que o roteiro escrito por Thiago Dottori utiliza a doença mais como artifício para embaralhar as investigações policiais de Lúcia, que esquece e lembra de fatos conforme é mais ou menos conveniente para cada momento, do que como uma investigação sobre os dramáticos labirintos que começam a desestruturar a mente da protagonista — e, mais uma vez, A Suspeita dá o azar de suceder uma produção brilhante como Meu Pai, desde já um filme definitivo sobre o doloroso processo da perda de memória.

Já no plano profissional de Lúcia, os problemas do longa se equivalem e até mesmo se ampliam, uma vez que todo o enredo envolvendo a personagem como alvo de uma investigação dita os rumos do filme como um todo. Entretanto, as situações são vagas ou pouco instigantes, inclusive deixando várias lacunas, como as razões não muito claras para um determinado criminoso ser considerado tão perigoso e os próprios dilemas morais e profissionais da protagonista, que são abordados de maneira muito passageira, sem dar musculatura para o filme dimensionar dois pontos centrais: as denúncias de corrupção e a dinâmica de Lúcia em relação a seus colegas e ao sistema em que está inserida. O fato de A Suspeita se passar em 2013 na cidade do Rio de Janeiro tampouco faz diferença, pois não há necessariamente uma análise robusta de toda a engrenagem que move os trabalhos da protagonista.

No processo de costura dessas duas abordagens, a montagem de  Joana Collier acaba sendo de pouca ajuda e, na verdade, até desorganiza diversos momentos do filme com cortes anticlimáticos nas (poucas) cenas de ação e ao manter diálogos corriqueiros e que nada acrescentam entre Lúcia e seus colegas. Talvez haja por trás dessas impressões o conceito de que a montagem tenta reproduzir a visão fragmentada e nebulosa da protagonista diante de acontecimentos recentes devido ao avanço do Mal de Alzheimer, mas comigo o efeito foi de um estranhamento que jamais associei à condição de Lúcia. Interpretada por Glória Pires, a personagem, portanto, não estabelece uma grande conexão com o espectador, seja por tudo citado até aqui ou também pela constatação de que Glória não parece combinar com o papel mesmo. A soma de todos esses fatores faz de A Suspeita um filme sem atmosfera e que, ao seguir algumas fórmulas básicas ao invés de propor experimentações em um gênero de pouca tradição, termina com pouco a dizer.

3 comentários em “49º Festival de Cinema de Gramado #3: “A Suspeita”, de Pedro Peregrino

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  3. Só lendo a tua crítica pude entender esse filme…

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