
Hugh Jackman e Allison Janney em Má Educação: dupla entrega excelentes performances para uma história que se constrói a partir da desconstrução de seus personagens.
MÁ EDUCAÇÃO (Bad Education, 2019, de Cory Finley): Baseado na maior fraude envolvendo o sistema público de ensino dos Estados Unidos, o ótimo Má Educação, da HBO, explora o desmoronamento pessoal e profissional de personagens que se apropriaram do dinheiro destinado ao orçamento da Roslyn High School em benefício de suas próprias despesas particulares e familiares. E não qualquer dinheiro: cerca de 11 milhões de dólares foi o montante desviado pelo esquema que se tornou público em 2004. A melhor sacada do roteiro escrito por Mike Makowsky, com base no artigo “The Bad Superintedent”, de Robert Kolker, é não encenar como se deu essa grande fraude, e sim apresentar personagens aparentemente perfeitos para logo em seguida lançar a bomba do escândalo, desconstruindo cada um deles. A partir daí, começa um efeito dominó que funciona ainda mais para o público pouco familiarizado com a história real, pois é intrigante tentar entender quem faz parte de um crime que, de início, parece ter pequenas dimensões. Ao construir personagens através de suas respectivas desconstruções, Má Educação ganha força como uma experiência surpreendente, de ritmo envolvente e com uma atmosfera propositalmente incômoda (vale, por exemplo, prestar atenção nos tons frios da fotografia e na trilha sonora nada óbvia de Michael Abels). Elogios também se estendem a Hugh Jackman e Allison Janney, ambos excelentes. Jackman, ator com outros desempenhos admiráveis na carreira (Os Suspeitos, Logan, Os Miseráveis), acerta na vaidade engessada e na perfeição artificial de um homem que, tentando preservar as aparências, passa a perder o controle de tudo a sua volta. Já Janney, em papel coadjuvante, usa seu vasto repertório como uma talentosa intérprete para introduzir parte das as dúvidas e das desconstruções responsáveis por nortear o filme como um todo. Má Educação é outro acerto acerto muito bem-vindo na tradição tão característica da HBO de entregar ótimos telefilmes.
MÚSICA PARA MORRER DE AMOR (idem, 2020, de Rafael Gomes): Coautor do roteiro do belo De Onde Eu Te Vejo, Rafael Gomes volta a falar sobre relacionamentos amorosos na imensidão da cidade de São Paulo, dessa vez em forma de mosaico, acompanhando as turbulências românticas de vários personagens jovens que, apesar de decepções e sofrimentos, seguem acreditando no amor. Entre um coração partido e outro, Música Para Morrer de Amor traz uma trilha sonora com canções sobre as dores de se apaixonar, rendendo inclusive uma divertida sessão de karaokê onde Caio Horowicz e Denise Fraga cantam “Não Aprendi a Dizer Adeus”, a clássica música eternizada na voz da dupla Leandro e Leonardo. Contudo, o filme funciona melhor na teoria do que na prática. Talvez o principal problema seja a dificuldade do espectador em criar uma real conexão com personagens pouco empáticos e centrados nas especificidades da classe média branca, jovem e paulista. E mais: é difícil criar laços com figuras que fazem de tudo para sabotar os seus sentimentos e o dos outros. Na medida em que isso faz parte, claro, do confuso processo de se apaixonar e manter uma relação, Música Para Morrer de Amor prefere ilustrar tal turbilhão emocional com o máximo de atitudes erradas ou imaturas entre os personagens para, ao longo disso, refletir sobre as consequências desses atos e os sentimentos acerca deles com frases de efeito que parecem pensadas para postagens de Instagram. Isso pode ser reflexo da natureza teatral do projeto, uma vez que o roteiro é inspirado no espetáculo Música Para Cortar os Pulsos, também da autoria de Rafael e vencedor do prêmio APCA de Melhor Peça Jovem. Ainda assim, sinto falta de uma maior delicadeza e concisão nessa transposição, características que ele mesmo já havia apresentado ao discutir diferentes vertentes dos relacionamentos no já citado De Onde Eu Te Vejo, onde, aí sim, tive plena facilidade em me identificar ou me solidarizar com as atitudes tortuosas dos personagens em relação ao amor.
PALM SPRINGS (idem, 2020, de Max Barbakow): A comparação imediata é com Feitiço do Tempo, mas Palm Springs pouco se assemelha a essa adorada comédia dos anos 1990 estrelada por Bill Murray. À parte o fato de que ambos falam sobre protagonistas presos na repetição de um mesmo dia, Palm Springs apresenta para a plateia um personagem que há muito tempo já habita essa realidade. Ou seja, o roteiro escrito por Andy Siara não segue o longo e tradicional arco introdutório onde Nyles (Andy Samberg) descobre a cada cena uma nova particularidade de um estranho universo. O momento é outro: há anos confinado nessa misteriosa condição, ele de repente vê sua rotina abalada quando Sarah (Cristin Milioti) passa a viver a mesma realidade. O cenário é a festa de um casamento, onde, cercados de dezenas de pessoas, eles são os únicos que vivem juntos uma infinita repetição. Nesse confinamento, é claro que surge um interesse romântico entre os dois, o que mais uma vez não é desculpa para que Palm Springs seja óbvio: renegando caminhos tradicionais, o roteiro explora as particularidades de personagens agradáveis, descolados e carismáticos em um recorte que encena a diversão de amigos-logo-apaixonados em um universo onde eles podem fazer qualquer coisa sem consequência alguma (e o clima de festa de casamento ajuda muito nesse sentido!) quanto refletir sobre suas vidas passadas, a falta de perspectiva de um futuro e as sensações felizes e conturbadas de construir um relacionamento em uma circunstância deveras inimaginável. Em breves 90 minutos, o diretor Max Barbakow confere personalidade e muita graça ao resultado, impulsionado pela química de alta sintonia entre Andy Samberg e Cristin Milioti. É o tipo de entretenimento que, especialmente agora em um ano tão difícil como 2020, surge como uma excelente opção para aqueles dias em que queremos desligar a cabeça e curtir uma sessão com boas vibrações.
O TEMPO COM VOCÊ (Tenki No Ko, 2019, de Makoto Shinkai): Aos 44 anos, o diretor Makoto Shinkai viu Your Name, seu quinto longa-metragem, ultrapassar A Viagem de Chihiro, do mestre Hayao Miyazaki, como a maior bilheteria já registrada por um anime em escala mundial. É o caso onde o hype está proporcionalmente de acordo com a qualidade trabalho em questão: apesar da premissa batida, Your Name se desdobra como uma animação originalíssima e empolgante que jamais subestima o espectador (não por acaso, Hollywood já desenvolve uma adaptação live action dirigida por Marc Webb, ainda sem data prevista de estreia). O sucesso estrondoso inevitavelmente acabou criando expectativas em torno do trabalho seguinte de Shinkai, e o resultado é O Tempo Com Você, onde ele volta a pegar uma premissa muito simples para desfiá-la com um olhar mais adulto e menos previsível. O foco desse novo trabalho é a relação entre um jovem que foge sozinho para Tóquio e uma garota da sua mesma faixa de idade que tem o poder de controlar o tempo (não o do relógio, mas sim a chuva, o sol, o frio…). O Tempo Com Você lança um olhar muito adulto para a vida urbana, onde os dois protagonistas, apesar de muito jovens, enfrentam problemas financeiros, solidão, carências e angústias, tudo em meio a uma Tóquio reproduzida com impressionante realismo em suas lindas arquiteturas. É um espetáculo visual belíssimo, no padrão de tudo que Shinkai faz, mas aqui a influência de todo o peso de Your Name se faz sentir, já que há uma perceptível vontade do diretor em querer repetir a fórmula desse filme que lhe trouxe um recorde mundial. A última meia hora de O Tempo Com Você em especial é similar demais a Your Name, inclusive no que se refere à questão estética, com frames que parecem transferidos de um filme para o outro. O uso excessivo de uma trilha com canções sentimentais para dar emoção ao clímax também nos remete à vontade, seja ela involuntária ou não, de Shinkai evocar seu trabalho anterior, que, vale lembrar, ainda é comparativamente superior em objetividade de tramas, duração e ritmo.