
O astro argentino Leonardo Sbaraglia protagoniza, ao lado da brasileira Carolina Dieckmann, o segundo longa-metragem solo da carreira de Marco Dutra. Foto: Pedro Luque
Quem gosta de cinema brasileiro contemporâneo e ainda não conferiu qualquer trabalho da turma oriunda do coletivo Filmes do Caixote precisa urgentemente corrigir a falha no currículo. Afinal, desconhecer toda a criatividade transgressora do musical Sinfonia da Necrópole, de Juliana Rojas, ou toda beleza escondida por trás das tragédias femininas de O Que Se Move, assinado por Caetano Gotardo, por exemplo, é crime dos grandes. A chance para a correção é perfeita, pois agora Marco Dutra, que assinou, ao lado de Rojas, o celebrado Trabalhar Cansa, assina seu segundo longa-metragem solo: O Silêncio do Céu, cuja primeira exibição aconteceu na mostra competitiva do 44º Festival de Cinema de Gramado. A estreia não deixa de ser mais uma ambiciosa adição ao currículo do grupo do Caixote, visto que o longa protagonizado pelo astro argentino Leonardo Sbaraglia (o homem que vive uma verdadeira viagem ao inferno após ofender um motorista na estrada em Relatos Selvagens) busca problematizar, a partir de uma história rodada no Uruguai, as consequências na vida de um casal que se silencia após uma cena de estupro envolvendo a mulher (Carolina Dieckmann).
Particularmente, gosto menos de O Silêncio do Céu do que de Sinfonia da Necrópole ou O Que Se Move porque o filme de Marco Dutra, escrito por ele em parceria com Gotardo e Lucía Puenzo (filha do premiado diretor Luiz Puenzo, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro por A História Oficial), é mais interessante na forma do que na essência. Importante saber: a experiência não se trata de um filme-denúncia em tempos que o feminismo e questões importantes como a do estupro surgem cada vez mais urgentes. O que se vê em O Silêncio do Céu são os angustiantes dias desse homem chamado Mario que, impotente ao presenciar escondido o horror de ver sua mulher sendo estuprada, precisa lidar com uma paralisação posterior: ele volta para casa e não consegue verbalizar o assunto com a esposa, que, por sua vez, também não comenta nada sobre o ocorrido. A partir daí, o longa de Marco Dutra vira uma jornada bastante pessoal do marido para entender não apenas toda a situação envolvendo sua inércia e o trauma silencioso da mulher, mas também o ímpeto cada vez mais perigoso de fazer justiça com toda a situação.
É por se tornar basicamente um filme sobre uma crescente busca pelos instintos primitivos de vingança que, em uma análise fria da história, O Silêncio do Céu não se engrandece tanto. Falta uma certa complexidade porque o filme se preocupa pouco em contar a trama a partir do ponto de vista da mulher, deslocando seus holofotes quase que inteiramente para a investigação secreta desse marido que, dia a dia, se envereda em caminhos que o colocam frente a frente com essa violência que, por muitas razões que cabe ao espectador dizer quais, ele não conseguiu interromper. Em tese, não deixa de ser convencional o relato do sujeito que busca explicações através de seus próprios meios, mas o que faz com que o longa nunca se torne previsível é a habilidade de Marco Dutra em saber criar o tom de um suspense com uma pegada hitchcockiana sem se utilizar de ferramentas fáceis. Ou seja, o que pesa menos no texto é amplamente compensado pela direção firme e extremamente climática.
Méritos também devem ser creditados ao argentino Leonardo Sbaraglia, que tem a difícil missão de compor um homem comum que nunca é tratado como um frouxo, mas sim como um marido confuso que, tentando recuperar um casamento em crise, termina confrontado por suas próprias fragilidades e inseguranças. Enquanto Carolina Dieckmann é boa ao lidar com um material consideravelmente mais restrito (o que é resultado direto do filme não se focar tanto no íntimo de sua personagem), Sbaraglia rouba a cena, contribuindo para o suspense ao criar um sujeito que não entende muito bem o que está fazendo e muito menos o que pode fazer. Dessa forma, O Silêncio do Céu fortalece, na direção e em seu protagonista, resoluções e desenvolvimentos que parecem um tanto simplistas se comparado ao ótimo trabalho de Dutra na ambientação do filme. Mais um ponto para os talentos do Caixote!