
Felicity Huffman é a diretora que se vê diante de uma crise iminente: ela, como grande atriz que é, mais uma vez se sai muito bem ao lidar com um dos papeis mais difíceis de American Crime.
John Ridley já tinha uma vasta mas despercebida carreira como roteirista quando ganhou o Oscar por sua adaptação de 12 Anos de Escravidão em 2014. Engana-se, no entanto, quem pensa que esse profissional nascido em Milwaukee, nos Estados Unidos, e afeito à literatura (até agora, já são sete romances publicados), sumiu do mapa e, principalmente, deixou de se dedicar às causas do racismo e do preconceito. Afinal, basta sair um pouco da cerca criada pelo Netflix ou do universo badalado de megaproduções como Game of Thrones para encontrar American Crime, programa criado e eventualmente roteirizado e dirigido por ele que tem a proposta de discutir tais questões a partir de crimes muito recorrentes não apenas no cotidiano norte-americano, mas também, por que não, em qualquer lugar do mundo. Para desenhar esse mapa de violência e preconceitos, Ridley optou pelo formato que Ryan Murphy popularizou recentemente com American Horror Story: a cada temporada, uma nova história protagonizada pelo mesmo elenco.
A ABC tem levado muito a sério a inclusão em toda a sua programação, e American Crime vem reforçar esse conceito cada vez mais enraizado na emissora. É importante a lembrança porque estamos falando de um canal aberto que vem fazendo história com seriados populares como Scandal e How to Get Away With Murder, que desconstroem a ideia do que está reservado para atrizes negras na TV, por exemplo. Já com American Crime, a emissora escancarou de vez as discussões. Prefiro, no entanto, não me ater ao primeiro ano da série, que era óbvio em sua totalidade e não passava de um caldeirão temático frágil, desfocado e quase panfletário, mas sim me concentrar na segunda temporada, excepcional ao reunir sua equipe para repensar escolhas, descartar o que deu errado, maximizar potenciais e apostar em discussões mais delicadas e refinadas. American Crime foi passada a limpo – e as correções foram nada menos do que perfeitas.

Lili Taylor tem o desempenho de sua carreira como a problemática mãe que entra em uma jornada para defender o filho violentado.
É em uma escola de ensino médio que American Crime encena a violência de sua segunda temporada. No caso, na nebulosa noite em que Taylor Blaine (Connor Jessup, ótimo) participa de uma festa do time de basquete, bebe demais e acaba sendo fotografado em estado deplorável após o grande porre. Só que as imagens acabam vazando na internet e, conservadora por ser frequentada por jovens de classe alta, a escola acaba suspendendo Blaine. Anne, a mãe do garoto que tanto trabalha para lhe garantir um bom ensino, não se conforma e, após pressionar o filho sobre o que de fato aconteceu na fatídica noite, ouve algo mais perturbador: ele, entre as amnésias causadas pela bebida, acredita ter sido estuprado por um de seus colegas. Procurando imediatamente a escola, Anne não encontra apoio, uma vez que a diretora Leslie (Felicity Huffman) acredita que estupros só acontecem com meninas. Na realidade, Leslie só quer conter a crise para que ela não chegue aos ouvidos de uma comunidade rica e, como descobrimos posteriormente, repleta de preconceitos.
Propositalmente ou não, John Ridley parece ter se inspirado em exemplos muito dignos do cinema para construir a nova história de American Crime. É facilmente perceptível e bem-vinda a pegada dramática de Dúvida, filme estrelado por Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman: assim como no longa de 2008, a temporada nunca encena o crime em questão e, a partir dos confrontos das relações de poder, deixa o espectador à deriva apenas com a palavra de cada um dos personagens. Ou seja, cabe a você escolher em quem acreditar. E se o programa é corajoso ao trazer uma importante ruptura em sua narrativa já revelando no quarto episódio o que de fato aconteceu, logo o segundo ano de American Crime pega o melhor de Gus Van Sant no controverso Elefante para falar sobre bullying no ambiente escolar e levar o cotidiano na Leyland Knights High School para caminhos cada vez mais tortuosos. Tudo sem parecer cópia, com personalidade própria e devidas doses de sutileza e intensidade.

“Deus odeia bichas”. O preconceito, em maior ou menor grau, está literalmente estampado em todos os núcleos de American Crime.
O amadurecimento de Ridley ao pensar a série é notável aqui porque suas criações para discutir preconceitos são muito mais sofisticadas. Enquanto no primeiro ano tudo era muito óbvio (famílias ricas e brancas com filhos supostamente violentados por suspeitos latinos ou negros desprovidos de dinheiro), aqui o criador prefere inteligentemente inverter todos os clichês possíveis: o menino negro envolvido nas suspeitas, além de eventualmente preconceituoso, é criado por pais de boa posição financeira; o capitão do time que também levanta questionamentos da polícia não é o tradicional gostosão bem de vida que arranca suspiros das meninas; a escola é comandada por uma mulher, o que faz com que suas decisões mais firmes a coloquem como vilã diante de vários colegas; e o próprio menino supostamente violentado esconde outras questões íntimas que o tiram da mera vitimização. Ou seja, a segunda temporada de American Crime não tem construções fáceis, tocando em feridas não somente em fatos e acontecimentos, mas também no próprio contexto de cada um dos personagens.
Dando corpo e alma a essas figuras, o elenco do segundo ano é um acerto por estar na lista de tópicos repaginados pelo programa. É fundamental American Crime ter se livrado ou colocado para escanteio atores ruins que eram destacados em demasia na temporada passada porque obviamente isso tira o peso de estarmos vendo intérpretes problemáticos na tela e não personagens, ainda dando oportunidade para outros bons profissionais se engrandecerem aqui. É definitivamente o caso de Lili Taylor, atriz que nunca conseguiu se livrar da antipatia de sua Lisa Kimmel em Six Feet Under, mas que aqui entrega o melhor desempenho de sua carreira. Fazendo excelente dupla com o jovem Connor Jessup, ela é destemida e frágil como a mãe recém recuperada de um surto de depressão que busca, entre ímpetos, erros e acertos, estar presente para o filho depois de tantos anos. As mulheres, por sinal, são o melhor do elenco, passando ainda por uma Felicity Huffman que tira de letra um papel dificílimo (na primeira temporada ela já era um dos destaques com a polêmica Barb) e por Regina King, agora sim finalmente merecedora do Emmy de atriz coadjuvante que levou equivocadamente pela série em 2015.

Assim como em The Leftovers, Regina King, premiada no Emmy pelo primeiro ano de American Crime, integra novamente um elenco repleto de ótimas interpretações femininas.
Inclusivo também atrás das câmeras com sua equipe, Ridley traz várias diretoras mulheres para assinar boa parte dos episódios, e é necessário dar destaque para o que Kimberly Peirce (a capitã do intenso drama Meninos Não Choram, que rendeu a Hilary Swank seu primeiro Oscar de melhor atriz) faz no oitavo episódio ao mesclar depoimentos de pessoas da vida real envolvidas em tragédias e preconceitos particulares com os intensos acontecimentos do capítulo anterior assinado por Ridley. É por ter essa reta final com dramas acentuados que o desfecho pode incomodar muitos espectadores, principalmente porque, na TV aberta, o público não aceita bem qualquer tom mais inconclusivo ou pessimista (The Good Wife só amargurou críticas ao optar por esse caminho recentemente), mas gosto de dizer que escolhas como essa representam a ideia de que os roteiristas nos tratam como adultos e que eles acreditam que dramas nem sempre precisam de finais felizes ou círculos perfeitos para alcançar a excelência – e American Crime, ao discutir com uma dignidade surpreendente questões delicadas como “sou gay, mas não sou bicha”, realmente aposta na nossa maturidade ao longo de todos os seus dez episódios.
Ótimo texto, parabéns! Outra coisa muito interessante dessa série são as câmeras, que ficam frequentemente muito perto do rosto dos personagens, causando um desconforto em quem assiste – sempre me sentia como se estivesse invadindo suas vidas, encarando-os em seus medos e tragédias.