
The Good Wife se despede com elenco desfalcado e uma de suas temporadas menos interessantes, mas não se engane: o programa ainda reserva para os momentos finais uma total compreensão de sua própria jornada.
Em Party, antepenúltimo episódio da derradeira temporada de The Good Wife, que encerrou sua trajetória na TV no último domingo (08), Alicia Florrick (Julianna Margulies) resolve seguir seu coração, apostar na espontaneidade e investir em uma nova paixão. Isso, conclui ela, foi a única coisa que aprendeu ao longo da vida: tudo pode acabar, e não existe momento mais certo para ouvirmos os nossos instintos do que agora. A cena, se retrocedermos para o início da série, é um verdadeiro choque. Ela não seria possível, por exemplo, na primeira temporada, quando uma retraída Alicia se vê desnorteada ao descobrir as infidelidades de seu marido político escancaradas em todos os noticiários. Afinal, se existe um tema que, passados sete anos anos, norteou a jornada da protagonista criada pela dupla Robert e Michelle King, esse foi a libertação.
Não há comparações entre a Alicia Florrick decidida e independente que nos deu adeus agora em 2016 e aquela tímida e sem personalidade que entrou em nossas vidas sete anos atrás. Mesmo terminando em uma de suas fases menos interessantes, The Good Wife ficará na memória por essa desconstrução cirúrgica que fez de uma heroína em constante autodescoberta. É bastante raro uma série de TV aberta conseguir fazer, com discrição e elegância, a remodelação de uma protagonista sem despencar em audiência, já que o público pouco liga para a dimensão psicológica, e o que importa é a agilidade. A atração não abriu mão nem da dimensão nem da agilidade, colocando, entre suas estratégicas básicas de sobrevivência, a estrutura de um caso jurídico por episódio (todos, em sua maioria, perfeitamente instigantes, bem construídos e próximos da realidade, ao contrário do que vemos nos tribunais fantasiosos de How to Get Away With Murder). Entretanto, o que sempre importou mesmo foi o que acontecia nos bastidores pessoais dessa esposa traída que volta a advogar para agora construir seu próprio caminho.

Amor ou responsabilidade? Enquanto Chris Noth acerta na ambiguidade de seu Peter Florrick, Julianna Margulies só cresce com as constantes autodescobertas de sua Alicia.
Estreando na TV já como um estouro ainda quando Damages, outra série sobre os bastidores do mundo da advocacia, fazia a grande Glenn Close brilhar, The Good Wife, por outro lado, custou a se tornar um relato mais particular. Não faltam fãs ao primeiro ano da série, que é concentrado mais nos casos jurídicos do que nas mudanças da protagonista, mas os episódios de certa forma patinavam porque, neles, Alicia Florrick ainda era a esposa tímida e recatada que não se dava ao direito de verbalizar o que sentia ou pensava. É claro que era um bom desafio para que Julianna Margulies, vencedora de um Globo de Ouro, dois Emmys e dois Screen Actos Guild Awards por seu desempenho, brilhasse ao interiorizar tudo da personagem. Só que não deixava de irritar e estagnar a trama o fato de Alicia ser tão inerte ao que acontecia em sua volta. Isso foi prato cheio para que a britânica Archie Panjabi roubasse a cena como a misteriosa investigadora Kalinda Sharma, que é, disparada, a personagem mais fascinante que passou pelo programa.
A situação muda por completo quando The Good Wife aproxima, no segundo ano, a protagonista de Kalinda, colocando, inclusive, as duas em uma rota de colisão pessoal que rende um dos ápices dramáticos do programa. Madura e frequentemente emocionante, a segunda temporada também se expande dramaticamente porque afunila, episódio a episódio, a relação entre Alicia e Will Gardner (Josh Charles), seu mais novo chefe e também um antigo amor mal resolvido dos tempos de faculdade. É nessa fase que empurra Alicia contra a parede em relação à amizade, casamento e passados ainda presentes que The Good Wife se engrandece e passa a desconstruir a protagonista com devidas doses de inteligência.

Julianna Margulies, Josh Charles e uma química impecável: o romance mal regulado e carente de timing entre seus personagens sempre foi um dos melhores combustíveis da série.
O que se sucede a partir daí são os anos de uma mulher que passa a escrever sua própria história. Libertando-se, a protagonista descobre mais, entre tantas coisas, sobre seus talentos profissionais, aptidões maternas e até mesmo ímpetos sexuais e afetivos. Estruturalmente, o ritmo que o programa ganha é viciante porque The Good Wife cria um humor muito próprio (principalmente no que se refere à legião atores consagrados que passam pela série como convidados), abre, fecha e retoma ciclos com uma simetria invejável e ainda faz com que a esperteza de uma história mais sofisticada dialogue com as exigências comerciais de uma atração de TV aberta. E se parecia impossível a série repetir os grandes momentos da segunda temporada, eis que, no quinto ano, a trama toma rumos completamente inesperados – e não estamos falando necessariamente de uma importante morte, mas do magnífico episódio Hitting the Fan, que transforma o programa em uma verdadeira arena de digladiação profissional e pessoal entre os personagens.
Curiosamente, The Good Wife só cai em qualidade a partir da conclusão dessa temporada, considerada por muitos como o auge da maturidade narrativa do programa. Eventuais falhas já eram perceptíveis antes disso, como o fato de Kalinda, sempre tão enigmática, ter sido jogada para o ostracismo com um texto no automático, e o de Peter Florrick (Chris Noth, certeiro em sua ambiguidade) se resumir ao personagem que basicamente só serve para atrasar a vida da protagonista com exigências durante infinitas e cíclicas campanhas políticas. Um fator decisivo para que The Good Wife amortecesse suas qualidades a partir do final do quinto ano foi, sem dúvida, a saída de personagens importantes como Will Garner e Kalinda Sharma. A decisão de abandonar a série foi dos próprios atores, e o programa soube lidar bem com o encerramento dos ciclos de cada um deles, mas, com isso, os roteiristas também se viram obrigados a criar, posteriormente, diversas subtramas e novos personagens – e eles não foram nada inspirados nas investidas, já que tudo passou a se resumir a advogados abandonando uma empresa para criar outra ou, então, a novas campanhas políticas (a própria Alicia resolve entrar no ramo durante a sexta temporada!).

Archie Panjabi deixou The Good Wife na penúltima temporada, mas sua Kalinda Sharma sempre será a personagem mais interessante a ter passado pelo programa.
Sem saber muito o que fazer após esses desfalques, The Good Wife trouxe Vanessa Williams e Margo Martindale, entre outros atores, para participações esquecíveis, criou romances improváveis entre coadjuvantes e introduziu personagens que eram claras tentativas de suprir a ausência de outros, a exemplo de Lucca Quinn (Cush Jumbo), que nunca chegou a construir com Alicia a cumplicidade antes existente com a Kalinda de Archie Panjabi. O elenco fixo permaneceu eficiente (a elegante Christine Baranski tem ótimos momentos na sexta temporada envolvendo posições políticas da personagem, Julianna Margulies é superlativa em uma cena na lavanderia do episódio Judged do sétimo ano) e a série nunca perdeu, principalmente, o tino para as particularidades de seu universo e de seu humor. O problema é que, dramaticamente, The Good Wife andava em círculos e não entregava absolutamente nada de novo – e por isso mesmo não deixa de ser admirável a sensibilidade da equipe em perceber que o programa deveria chegar ao fim.
A temporada derradeira rivaliza com o quarto ano como a menos inspirada de todo o conjunto. Por mais que os roteiristas tenham tido tempo para programar po desfecho, a sétima temporada patinou durante um bom tempo, e foi apenas nos momentos finais que a equipe parecia ter consolidado a influência de novos personagens como Jason Crouse (Jeffrey Dean Morgan) e a própria Lucca Quinn. Em sua reta final, The Good Wife fez direitinho o feijão com arroz, o que ainda era muito pouco para um programa que já havia alcançado níveis tão refinados. Só que a surpresa ficou literalmente para os 45 do segundo tempo: quando chega aos exatos 15 minutos finais de End, o último episódio, a série retoma grande parte dos seus diferenciais e entrega um desfecho corajoso. É provável que boa parte dos fãs deteste o tom, mas ele é forte: não me vem à cabeça, pelo menos agora, outro programa de TV aberta que tenha se despedido de forma pessimista e até mesmo propositalmente inconclusiva. Existe sim a vibe de que a vida sempre segue de um jeito ou de outro, mas nós não estávamos preparados para decisões tão francas, seja por The Good Wife não surpreender há tempos ou pela TV aberta não ter o costume de aderir a ideias como essa. Com isso, a afetiva participação de Josh Charles no capítulo final foi a menor das surpresas. Afinal, mesmo depois de fases problemáticas, os criadores Robert e Michelle King fizeram questão de nos lembrar, mais uma vez, nem que fosse nos minutos derradeiros, que The Good Wife será mesmo lembrada por sua sagacidade.