Na TV… “Transparent” e a verdadeira família moderna

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“Este sou eu”. Em Transparent, primeira série da Amazon, Jeffrey Tambor vive um pai de família que assume para a família a sua vida transgênera.

Ao vencer o Globo de Ouro 2015 de melhor série cômica (uma classificação de gênero um tanto questionável, diga-se de passagem), Transparent foi saudada como mais um marco nas revoluções envolvendo a produção de seriados. O programa criado por Jill Solloway está para a Amazon assim como House of Cards está para a Netflix. Ou seja, não é exibido originalmente na TV e nos mostra como é amplo o número de plataformas onde pode existir a realização de audiovisual atualmente. Não podemos negar a mudança desse panorama e muito menos o fato de Transparent ter novamente suscitado nossa atenção para este mercado, mas, na realidade, o principal parece ter ficado em segundo plano: a história estrelada por Jeffrey Tambor (também vencedor do Globo de Ouro por seu desempenho) coloca valiosíssimas questões envolvendo sexualidade e transgeneridade em pauta, mostrando como são realmente constituídas as verdadeiras famílias modernas dos dias de hoje.

Discussões como o fato de um homem mais velho ser casado com uma mulher décadas mais jovem, um estadunidense pedir uma latina em casamento ou um casal gay entrar com os papeis de um pedido de adoção já são ultrapassadas. Precisamos avançar no que é mostrado na dramaturgia. E Transparent o faz com uma sutileza rara. A premissa é bastante simples: o pai de família (Tambor) que, após anos vivendo uma vida que claramente não era a sua, resolve assumir para a família que há anos se veste secretamente como mulher. Não, ele não quer trocar de sexo. Também não passou a gostar de homens. Morton, agora Maura, simplesmente se sente melhor circulando com apliques no cabelo, vestidos, aneis, brincos, maquiagens e unhas pintadas. Simples assim. A partir de sua revelação, a série acompanha todos os efeitos que a mudança surte no clã dos Pfeffermans. Para não estragar as gratas surpresas, não citarei nomes, mas é lindo ver a filha assumindo sua longa paixão com uma mulher após ser de certa forma inspirada pela coragem do pai ou simplesmente a que, totalmente desprovida de julgamentos, acha o máximo ir a um shopping comprar roupas e perfumes com a sua mais nova “mãe”.

Em programas mais convencionais, a mudança de Maura resultaria em infinitos episódios onde uma família seria plenamente desestabilizada pela revelação e personagens passariam por crises existenciais intermináveis. Transparent não se exime de mostrar a confusão de algumas figuras, mas usa este turbilhão de questões com outros propósitos: certo personagem, por exemplo, chega inclusive a ter despertada uma grande curiosidade pelo universo transgênero, procurando, até mesmo em relações sexuais, uma resposta para as suas próprias indagações físicas e sentimentais. Não é apenas um choro aqui e outro lá. Ver um pai de família abandonando os hábitos masculinos não é necessariamente o fim do mundo para os personagens de Transparent. É, na realidade, uma chance para que eles se tornem mais generosos e humanos em relação ao próximo – e também mais suscetíveis a se darem o benefício da dúvida. Quando Maura pergunta a um familiar em determinado momento como ele se sente em relação a sua nova vida, recebe a seguinte resposta: “Estou feliz por você ter se tornado quem realmente você sempre quis ser. Deveria ser assim com todo mundo”. E, nesta frase, está sintetizada toda a beleza singular do seriado.

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Transparent impulsionou a trajetória dos estúdios Amazon ao vencer o Globo de Ouro 2015 nas categorias de melhor série e ator de comédia/musical.

A trama de Transparent só poderia vir de alguém como Jill Solloway. Não só a criadora tem uma vasta experiência com dramas sobre pessoas comuns (esteve envolvida como produtora ou roteirista em mais de 30 episódios da excepcional Six Feet Under) como também se inspirou em sua própria viada para narrar a vida da família Pfefferman: dois anos atrás, na vida real, o pai de Solloway se assumiu para a família exatamente como o protagonista de Transparent, fazendo com que ela passasse a encarar o mundo de uma outra forma. Uma história biográfica, então. E talvez somente ela, tão próxima de uma situação como essa, pudesse narrar com tanta sutileza a jornada de aceitação dos personagens e também as próprias evoluções do protagonista. Em um misto de comédia e drama, Solloway, porém, não cambaleia no balanço entre os dois gêneros: ela sabe muito bem a hora certa de extrair humor de uma situação ou até que ponto deve explorar os dramas de determinados personagens. Não existem excessos em Transparent.

Por mais que seja um seriado sobre a universalização de importantes temas, Transparent, contudo, não é uma série necessariamente popular. Mas, por trás da leveza dos episódios e da extrema discrição do texto, existem situações muito belas, daquelas em que a lógica de que pequenos momentos podem também ser grandes prevalece. O auge desta primeira temporada de dez episódios encomendada pela Amazon é, sem dúvida, o episódio Best New Girl, dirigido pela própria Jill Solloway. Nele, acompanhamos o momento em que, pela primeira vez, Morton foi Maura em um local onde isso não era problema algum. Ainda que o capítulo acompanhe também um recorte da vida dos filhos e apresente diversas situações que os ajudaram a moldar suas respectivas personalidades, é no olhar encantado de Maura em uma festa ou a sua naturalidade em finalmente poder transitar livremente de salto alto sem julgamentos que Best New Girl alcança uma beleza singular.

Com um elenco altamente entrosado, Transparent consegue dar ainda mais verossimilhança ao seu enredo por meio dos atores. Da naturalidade de Amy Landencker interpretando a filha mais interessante e melhor explorada ao bom humor de Judith Light como a mãe de família que foge totalmente dos padrões vistos em seriados, não existe, no entanto, quem supere o show de Jeffrey Tambor. Conseguindo se libertar de qualquer efeito colateral de sua carreira cômica (foram cerca de 60 episódios de Arrested Development ao longo de dez anos), Tambor encontra o tom ideal para a sua Maura Pfefferman. Intenso na hora de um confronto (a briga com a filha Ali no último episódio é o seu ponto alto nesse sentido), mas econômico e eficiente quando precisa comunicar tudo com uma simples expressão ou olhar (impossível não se comover com a sua apresentação em The Symbolic Exemplar), o ator compreendeu sua personagem em corpo, mente e espírito. Mesmo que algumas construções de personagens se mostrem tortuosas, como a da filha Ali – que, com o passar dos episódios, se torna facilmente a figura menos interessante do clã -, e que certas dinâmicas não rendam resultados muito instigantes (Josh com a tal rabina), nada, porém, remete ao clichê, ao forçado ou muito menos ao desnecessário. Transparent, em sua simplicidade, realmente é uma preciosidade. Estávamos precisando de uma série sobre todos nós. Confira o trailer da primeira temporada:

3 comentários em “Na TV… “Transparent” e a verdadeira família moderna

  1. Pingback: Os desajustes humanos da terceira temporada de Transparent | Cinema e Argumento

  2. Kamila, que bom que uma série com a importância temática de “Transparent” teve uma merecida visibilidade! Tomara que mais pessoas conheçam o programa a partir de agora.

  3. Li pela primeira vez sobre essa série aqui. Acho que os prêmios conquistados no Globo de Ouro chamaram a atenção para “Transparent”. Parabéns pelo belo texto, Matheus!

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