Cinema e Argumento

Na TV… crime, castigo e traição em “The Affair”

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Dominic West e Ruth Wilson, os protagonistas de The Affair: enquanto ele não passou da indicação, ela se consagrou com uma vitória no Globo de Ouro 2015 por seu desempenho. A série também foi vitoriosa na categoria principal da premiação.

Se existe uma emissora que frequentemente surpreende com premissas inovadoras para o formato televisivo, essa é a Showtime. Quem não lembra de Dexter, que trazia Michael C. Hall como um inspetor forense que, na realidade, também era um serial killer? Ou de The Big C, onde Laura Linney interpretava uma professora de história que, após a descoberta de um câncer, resolve viver tudo o que protelou ao longo dos anos? Prêmios Homeland também teve de sobra ao mostrar as obsessões de uma agente do FBI na secreta investigação pelas verdadeiras intenções de um soldado estadunidense recém libertado por terroristas. Sim, todas tramas atípicas e diferenciadas – só que no bom e no mau sentido. Se por um lado é instigante acompanhar propostas que fogem do lugar-comum das opções na TV, por outro também existe uma certa preocupação ao acompanhá-las, já que são todas histórias que não parecem ter material suficiente para render várias temporadas. DexterThe Big CHomeland andaram de mãos dadas nesse sentido: começaram muito bem, mas perderam audiência e prestígio com o tempo porque patinaram em temas que não poderiam ser tão prolongados e que exigiam objetividade – ou melhor, uma vida curta. 

É interessante fazer esse retrospecto porque The Affair, a mais nova queridinha da Showtime, já começou sua trajetória com grande festa. Na última edição do Globo de Ouro, o programa criado pela dupla Hagai Levi e Sarah Treem conquistou os prêmios de melhor série dramática e melhor atriz para Ruth Wilson. A fórmula novamente é inovadora: um caso de traição contado a partir de diferentes visões. Primeiro, a de Noah Solloway (Dominic West), um escritor frustrado que anseia por escrever algo de relevante enquanto passa as férias na casa litorânea de seus sogros. Depois, a de Alison Bailey (Ruth Wilson), uma garçonete que tenta superar a trágica morte de seu filho de seis anos. Intercalando as duas abordagens e cenas do futuro onde Noah e Alison dão depoimentos a um investigador acerca de um misterioso assassinato, a proposta se revela pra lá de interessante, mas repete a dúvida: será que com ideias suficientes estruturar uma série com duração expressiva (episódios de quase uma hora) e em várias temporadas? Os criadores já anunciaram que pensaram o arco dramático para três temporadas, mas é possível esse programa escapar da máxima dos seriados da Showtime que arrancam bem mas não conseguem dar continuidade na inovação?

Complicado saber para onde The Affair caminhará depois do primeiro ano. Que fique registrado, no entanto, que, na temporada de estreia, o programa dá conta do recado, com a novidade felizmente se sustentando aqui. O terreno é delicado, mas os roteiristas saem ganhando ao falar sobre traição onde os dois envolvidos na relação são casados. Isso mesmo, não é sobre um homem de meia idade encantado por uma mulher mais nova. Muito menos sobre uma ninfeta carente que ficará implorando para que ele deixe a mulher e vá viver com ela. Ambos tem algo – e uma família inteira – a perder nesse envolvimento. Mesmo que fique claro que a vida de Noah é a menos interessante (ele é o típico homem em crise de meia idade que já não nutre mais entusiasmo pela mulher rica e pelos quatro filhos pequenos e adolescentes), fica claro que existem sim aspectos complexos a serem abordados, como a sua eterna vontade de significar algo para alguém em uma derrotada carreira como escritor e o fato de que, após uma longa vida seguindo todas as regras e realizando as vontades dos outros, ele finalmente sente o desejo de transgredir ou achar uma voz que seja realmente sua.

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Alison (Ruth Wilson) e o marido Cole (Joshua Jackson): nas costas dele, uma tatuagem que lembra a tragédia que abalou a relação. Na versão de Alison, os conflitos são mais complexos e densos.

Driblando as obviedades envolvendo Noah e encontrando diferentes possibilidades para esse personagem que não se revela necessariamente um cretino mas sim apenas um homem confuso, The Affair, no entanto, concentra a maior parte de sua complexidade em Alison. E não é só por ela estar vivendo um luto interminável que a personagem vivida por Ruth Wilson interessa mais dramaticamente. O luto em si funciona, na realidade, como influenciador direto nas decisões de Alison. Ela se envolve com Noah por carência? Por raiva da vida? Por amor mesmo? Ou simplesmente por atração sexual? Sua insegurança e principalmente seu comportamento inconstante são claras consequências de uma mulher que, após uma tragédia inimaginável como a que viveu, de repente já não se reconhece mais. Assim como Noah, Alison tenta achar algo de novo na vida. Talvez aí resida a crucial intersecção dos dois. 

Ter duas visões ao longo de um episódio enriquece The Affair porque a série não reprisa simplesmente as cenas, mas reconstrói diálogos e por vezes muda drasticamente a abordagem dependendo do personagem. Cabe a você decidir qual foi o tom de uma conversa e a intensidade de um acontecimento, por exemplo. The Affair nunca julga seus protagonistas e deixa para que o espectador o faça. Tais questões muitíssimo delicadas quase se diluem em uma ideia simplória: a de construir a trama a partir de um misterioso – e suposto – assassinato. Já vimos essas idas e vindas no tempo para explicar um crime várias vezes e aqui os roteiristas simplesmente não souberam lidar bem com a ideia. Não espere uma revelação instigante envolvendo a identidade da vítima ou muito menos resoluções mirabolantes para a situação, até por que ainda há muito a ser respondido na segunda temporada. Infelizmente, a investida frustra, tira tempo da série e nada acrescenta à construção dramática da história. 

The Affair ainda encontra fragilidades nos fáceis estereótipos que cria da mãe megera e indiferente ou da filha adolescente aborrecida que não se comunica com os pais. Na construção de cenas decisivas também tem seus deslizes, como quando coloca um personagem frente a uma arma que o faz tomar uma importante decisão que deveria acontecer de maneira menos extrema e mais inteligente. Coisa de novela mexicana. Mas muito além da decepção final envolvendo o desfecho e as bobeiras relacionadas aos personagens coadjuvantes, The Affair deixa boas lembranças quando vista como um todo. Ao passo que Dominic West e Ruth Wilson conduzem com segurança seus difíceis personagens (especialmente ela), a série, vale repetir, tem seu grande valor por escapar conceitualmente de escolhas fáceis. Agora, se o material rende outra temporada de qualidade como essa… Bom, aí é outra discussão. E o histórico da emissora não entusiasma.

Na TV… Viola Davis e a rara oportunidade de “How to Get Away With Murder”

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Com duas indicações ao Oscar, Viola Davis é o ponto alto de How to Get Away With Murder. Sua interpretação já lhe valeu o Screen Actors Guild Awards 2015 de melhor atriz em série dramática.

Muito mais do que qualquer consagração ou número musical, o Oscar 2015 ficou marcado por uma efervescente safra de discursos contra sexismo, homofobia e racismo. Só que se engana quem acha que tais feridas só foram cutucadas nessa premiação. Poucas semanas antes, Viola Davis já havia roubado a cena no Screen Actors Guild Awards com um discurso muito honesto sobre as dificuldades em Hollywood para os atores negros. Ao ganhar o prêmio de interpretação feminina em série dramática por How to Get Away With Murder, ela agradeceu à equipe do seriado por ter confiado a ela, uma mulher negra de 49 anos, o protagonismo da história. E não estamos falando de qualquer protagonista: uma advogada poderosa, confusa, sexualizada, misteriosa e por vezes inescrupulosa. Em tempos que mulheres negras recebem em sua maioria papeis de escravas (Lupita Nyong’o em 12 Anos de Escravidão), empregadas (Octavia Spencer e a própria Viola em Histórias Cruzadas) e mães abusivas (Mo’Nique em Preciosa) é revigorante ver uma grande atriz como ela receber um papel que explore devidamente as suas possibilidades de criação. Ou seja, já na escolha de sua protagonista, How to Get Away With Murder prova que não veio para brincar.

Criado por Peter Nowalk, How to Get Away With Murder bebe exatamente das mesmas lógicas que fizeram outros programas produzidos por Nowalk alcançar o sucesso. Se você acompanha Grey’s Anatomy ou Scandal, é bem provável que também vá embarcar neste novo programa conduzido por ele. Não à toa o criador chamou sua colega Shonda Rhimes, criadora dessas duas últimas séries onde ambos trabalharam juntos, para também produzir seu programa. Portanto, temos aqui o DNA nato de uma série de TV aberta, com seus prós e contras. Dessa vez, acompanhamos a história de Annalise Keating, uma advogada responsável pela disciplina que dá título à série em uma faculdade. Observando seus alunos em aula, ela escolhe quatro deles para que sejam seus estagiários e a ajudem nos casos que defende paralelamente à vida acadêmica. No entanto, uma tragédia toma conta da vida do quarteto e a série, com idas e vidas no tempo, começa a juntar as peças de um intrigante quebra-cabeça envolvendo mortes, fugas e mentiras.

Só pela essência de How to Get Away With Murder já dá para perceber que a série não traz nada de novo. Quem acompanhou Damages anos atrás sabe exatamente o que é ver a história de uma advogada pontuada por um assassinato narrado de forma não-linear. Mais recentemente, as idas e vindas no tempo para explicar uma morte também já viraram moda em seriados com The Affair True Detective. Mas o programa estrelado por Viola Davis funciona. E muito. É claro que os ganchos ao final de cada episódio não podem faltar, muito menos uma gama de personagens pensada para todos os gostos (o gay, o engraçadinho, o nerd, a sonhadora, a confusa, etc) e a narrativa ágil e pop, mas How to Get Away With Murder consegue resultar em um excelente guilty pleasure. Até mesmo os clichês e as obviedades são releváveis nessa série envolvente que chega a contar com participações especiais de Cicely Tyson (realizando um antigo sonho de Viola, que diz ter virado atriz por causa dela) e Marcia Gay Harden. 

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Annalise Keating (Viola Davis) e a sua turma de faculdade: mesmo com detalhes dramáticos que não condizem com a realidade, a série criada por Peter Nowalk é um suspense irresistível.

How to Get Away With Murder é instigante desde o primeiro episódio, mas frequentemente patina para achar sua verdadeira vocação. Se metade da temporada desperdiça inúmeras chances ao se focar excessivamente no quarteto jovem que assiste a protagonista em suas batalhas judiciais (e nenhum dos atores escolhidos é necessariamente talentoso), logo a série percebe que toda a sua força está mesmo em Annalise. Antes fosse Viola a razão exclusiva para isso, mas a personagem é sim bem escrita e desenvolvida sem escolhas fáceis. Impiedosa ao defender seus clientes no tribunal e respeitável professora, Annalise vive, no entanto, um momento complicado em sua vida pessoal – o que posteriormente interferirá diretamente em seu trabalho, tornando-a ainda mais imprevisível por colocar em confronto os princípios que prega na sua vida profissional e os seus instintos de uma simples mulher com um matrimônio em crise. Por sorte, a fama de “mãos de ferro” não a limita como uma personagem fria e sem coração: suas atitudes são frequentemente justificáveis ou pelo menos compreensíveis frente a uma vida profissional exigente e a uma turbulência de pressões e situações complicadas nas relações que estabelece intimamente.

Além de trazer uma mulher negra como a detentora de todo o poder da narrativa, How to Get Away With Murder ainda não hesita ao encenar cenas de sexo gay com frequência (e isso para a TV aberta é uma grande ousadia) e de colocar em xeque nossa adoração por determinados personagens quando eles tomam atitudes que normalmente não seriam tomadas em séries mais preguiçosas. Todos cometem erros graves e conscientes na série, o que quebra a barreira que costuma nos separar de programas onde o mocinho só faz o bem e o vilão só faz o mal. Fora o fato de nos deixar em dúvida sobre a culpa ou a verdadeira identidade de determinadas figuras até o último minuto (a revelação do assassino não é particularmente interessante, mas a série sabe lidar muito bem com o pós-revelação), How to Get Away With Murder ainda nos brinda, claro, com uma inspiradíssima Viola Davis em um dos melhores momentos de sua carreira até aqui. Novamente, uma grande atriz encontra uma bela chance na TV enquanto o cinema só reserva, em grande parte, papeis coadjuvantes ou estereotipados como os já citados.

Para criar e manter uma audiência fiel, How to Get Away With Murder precisa obviamente se utilizar de ferramentas fáceis. Altamente explicativo em certas passagens, o programa é por vezes desprovido de realidade: percebam como Annalise basicamente não perde um caso sequer, como só o quarteto protagonista se voluntaria para responder as perguntas da professora em aula, como a personagem de Marcia Gay Harden surge apenas para iniciar um suspense gratuito quando a série está pegando fogo (ela logo sai da trama sem qualquer um fechamento maior) ou como Annalise levanta o tom frequentemente em longos monólogos de acusação direta no tribunal sem que seja devidamente punida ou até mesmo interrompida. Fácil encontrar ainda arcos dramáticos clichês, como o do gay lindo e sedutor convicto que encontra o amor em um pretendente improvável e que passa a reavaliar sua vida de conquistador após não conseguir controlar o seu mais novo interesse. Coisas de TV aberta.

Entretanto, com 15 episódios de aproximadamente 45 minutos, How to Get Away With Murder oxigeniza o universo dos guilty pleasures. O resultado em si já desperta uma parcela de respeito por trazer um papel digno para uma atriz do calibre de Viola Davis e ela é, sem dúvida alguma, muito maior do que a série, mas, para quem se propor a embarcar no na proposta sem maiores julgamentos, a experiência pode ser uma das mais interessantes da atualidade. O público comprou a proposta (uma segunda temporada já foi encomendada) e, julgando pelo cliffhanger do último episódio, ainda existe muito a ser resolvido. Se continuar com a dosagem apresentada no primeiro ano, How to Get Away With Murder está no caminho para construir uma trajetória bem sucedida. Aqui no Brasil, a série ganha sua primeira exibição hoje às 21h30, na Sony.

Na TV… “Transparent” e a verdadeira família moderna

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“Este sou eu”. Em Transparent, primeira série da Amazon, Jeffrey Tambor vive um pai de família que assume para a família a sua vida transgênera.

Ao vencer o Globo de Ouro 2015 de melhor série cômica (uma classificação de gênero um tanto questionável, diga-se de passagem), Transparent foi saudada como mais um marco nas revoluções envolvendo a produção de seriados. O programa criado por Jill Solloway está para a Amazon assim como House of Cards está para a Netflix. Ou seja, não é exibido originalmente na TV e nos mostra como é amplo o número de plataformas onde pode existir a realização de audiovisual atualmente. Não podemos negar a mudança desse panorama e muito menos o fato de Transparent ter novamente suscitado nossa atenção para este mercado, mas, na realidade, o principal parece ter ficado em segundo plano: a história estrelada por Jeffrey Tambor (também vencedor do Globo de Ouro por seu desempenho) coloca valiosíssimas questões envolvendo sexualidade e transgeneridade em pauta, mostrando como são realmente constituídas as verdadeiras famílias modernas dos dias de hoje.

Discussões como o fato de um homem mais velho ser casado com uma mulher décadas mais jovem, um estadunidense pedir uma latina em casamento ou um casal gay entrar com os papeis de um pedido de adoção já são ultrapassadas. Precisamos avançar no que é mostrado na dramaturgia. E Transparent o faz com uma sutileza rara. A premissa é bastante simples: o pai de família (Tambor) que, após anos vivendo uma vida que claramente não era a sua, resolve assumir para a família que há anos se veste secretamente como mulher. Não, ele não quer trocar de sexo. Também não passou a gostar de homens. Morton, agora Maura, simplesmente se sente melhor circulando com apliques no cabelo, vestidos, aneis, brincos, maquiagens e unhas pintadas. Simples assim. A partir de sua revelação, a série acompanha todos os efeitos que a mudança surte no clã dos Pfeffermans. Para não estragar as gratas surpresas, não citarei nomes, mas é lindo ver a filha assumindo sua longa paixão com uma mulher após ser de certa forma inspirada pela coragem do pai ou simplesmente a que, totalmente desprovida de julgamentos, acha o máximo ir a um shopping comprar roupas e perfumes com a sua mais nova “mãe”.

Em programas mais convencionais, a mudança de Maura resultaria em infinitos episódios onde uma família seria plenamente desestabilizada pela revelação e personagens passariam por crises existenciais intermináveis. Transparent não se exime de mostrar a confusão de algumas figuras, mas usa este turbilhão de questões com outros propósitos: certo personagem, por exemplo, chega inclusive a ter despertada uma grande curiosidade pelo universo transgênero, procurando, até mesmo em relações sexuais, uma resposta para as suas próprias indagações físicas e sentimentais. Não é apenas um choro aqui e outro lá. Ver um pai de família abandonando os hábitos masculinos não é necessariamente o fim do mundo para os personagens de Transparent. É, na realidade, uma chance para que eles se tornem mais generosos e humanos em relação ao próximo – e também mais suscetíveis a se darem o benefício da dúvida. Quando Maura pergunta a um familiar em determinado momento como ele se sente em relação a sua nova vida, recebe a seguinte resposta: “Estou feliz por você ter se tornado quem realmente você sempre quis ser. Deveria ser assim com todo mundo”. E, nesta frase, está sintetizada toda a beleza singular do seriado.

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Transparent impulsionou a trajetória dos estúdios Amazon ao vencer o Globo de Ouro 2015 nas categorias de melhor série e ator de comédia/musical.

A trama de Transparent só poderia vir de alguém como Jill Solloway. Não só a criadora tem uma vasta experiência com dramas sobre pessoas comuns (esteve envolvida como produtora ou roteirista em mais de 30 episódios da excepcional Six Feet Under) como também se inspirou em sua própria viada para narrar a vida da família Pfefferman: dois anos atrás, na vida real, o pai de Solloway se assumiu para a família exatamente como o protagonista de Transparent, fazendo com que ela passasse a encarar o mundo de uma outra forma. Uma história biográfica, então. E talvez somente ela, tão próxima de uma situação como essa, pudesse narrar com tanta sutileza a jornada de aceitação dos personagens e também as próprias evoluções do protagonista. Em um misto de comédia e drama, Solloway, porém, não cambaleia no balanço entre os dois gêneros: ela sabe muito bem a hora certa de extrair humor de uma situação ou até que ponto deve explorar os dramas de determinados personagens. Não existem excessos em Transparent.

Por mais que seja um seriado sobre a universalização de importantes temas, Transparent, contudo, não é uma série necessariamente popular. Mas, por trás da leveza dos episódios e da extrema discrição do texto, existem situações muito belas, daquelas em que a lógica de que pequenos momentos podem também ser grandes prevalece. O auge desta primeira temporada de dez episódios encomendada pela Amazon é, sem dúvida, o episódio Best New Girl, dirigido pela própria Jill Solloway. Nele, acompanhamos o momento em que, pela primeira vez, Morton foi Maura em um local onde isso não era problema algum. Ainda que o capítulo acompanhe também um recorte da vida dos filhos e apresente diversas situações que os ajudaram a moldar suas respectivas personalidades, é no olhar encantado de Maura em uma festa ou a sua naturalidade em finalmente poder transitar livremente de salto alto sem julgamentos que Best New Girl alcança uma beleza singular.

Com um elenco altamente entrosado, Transparent consegue dar ainda mais verossimilhança ao seu enredo por meio dos atores. Da naturalidade de Amy Landencker interpretando a filha mais interessante e melhor explorada ao bom humor de Judith Light como a mãe de família que foge totalmente dos padrões vistos em seriados, não existe, no entanto, quem supere o show de Jeffrey Tambor. Conseguindo se libertar de qualquer efeito colateral de sua carreira cômica (foram cerca de 60 episódios de Arrested Development ao longo de dez anos), Tambor encontra o tom ideal para a sua Maura Pfefferman. Intenso na hora de um confronto (a briga com a filha Ali no último episódio é o seu ponto alto nesse sentido), mas econômico e eficiente quando precisa comunicar tudo com uma simples expressão ou olhar (impossível não se comover com a sua apresentação em The Symbolic Exemplar), o ator compreendeu sua personagem em corpo, mente e espírito. Mesmo que algumas construções de personagens se mostrem tortuosas, como a da filha Ali – que, com o passar dos episódios, se torna facilmente a figura menos interessante do clã -, e que certas dinâmicas não rendam resultados muito instigantes (Josh com a tal rabina), nada, porém, remete ao clichê, ao forçado ou muito menos ao desnecessário. Transparent, em sua simplicidade, realmente é uma preciosidade. Estávamos precisando de uma série sobre todos nós. Confira o trailer da primeira temporada:

Na TV… o peso da amargura em “Olive Kitteridge”

Em Olive Kitteridge, Frances McDormand e Richard Jenkins são complementos perfeitos para personagens extremamente distintos

Em Olive Kitteridge, Frances McDormand e Richard Jenkins são complementos perfeitos para personagens extremamente distintos

Deve ser pesado estar na pele de Olive Kitteridge (Frances McDormand). Rígida professora de matemática e pessoa muito distante da imagem que temos de uma mãe, a personagem-título desta nova minissérie da HBO dirigida por Lisa Cholodenko (Minhas Mães e Meu Pai) não parece sentir felicidade em qualquer momento da vida. Nem o sensível marido ou um simples desconhecido que a abraça despertam em Kitteridge alguma sensibilidade. Quase antipática, ela pesa o ambiente com ácidas observações e uma visão pessimista do mundo. Tal abordagem seria um tremendo obstáculo para uma minissérie envolver o espectador. Só que, com uma protagonista muito bem justificada e uma Frances McDormand inspiradíssima, Olive Kitteridge acaba, de fato, fazendo jus a seu slogan de que nenhuma vida é simples.

Baseada no romance homônimo escrito por Elizabeth Strout em 2008 (vencedor do Pulitzer no ano seguinte), a minissérie dirigida por Cholodenko começa de forma interessante, mostrando a protagonista já envelhecida, com uma arma em punho e prestes a se matar. Eis que, na sequência, retrocedemos e vemos uma Olive muito mais jovem, casada com um farmacêutico e mãe de um garoto que estuda na mesma escola onde leciona. A partir daí, são mostrados os 25 anos seguintes, a partir de um olhar bastante cotidiano da vida de uma mulher que, por diversas razões, não dá qualquer indício de ver prazer na vida. Só que PharmacyIncoming Tide, os dois primeiros episódios, são bastante estranhos porque cometem o erro de deixar Olive quase de escanteio para se focar em outros personagens que, sim, são interessantes, mas não a ponto de se igualarem à protagonista em termos de envolvimento e complexidade.

Neste tempo que Olive está quase como uma coadjuvante na trama, quem ganha pontos, obviamente, é o maravilhoso Richard Jenkins, um ator perfeito para papeis de homens comuns como o retratado aqui. Compreendendo por completo a linha tênue entre a bondade e a ingenuidade que existe em seu Henry, Jenkins segura, com sua habitual competência, os dois primeiros episódios, mesmo que sempre fique um tanto nebuloso (e não no bom sentido) o verdadeiro rumo da história. Já a partir da terceira parte, A Different Road, Olive Kitteridge entrega por completo o protagonismo a quem de fato pertence a minissérie e  se transforma por completo, dando as devidas chances para Frances McDormand e analisando minuciosamente como uma vida inteira de amargura pode, no final, se sobrepor impiedosamente nos ombros de alguém que preferiu viver com tal pessimismo.

Como a protagonista Olive Kitteridge, Frances McDormand tem a melhor chance de sua carreira em anos

Como a protagonista Olive Kitteridge, Frances McDormand tem a melhor chance de sua carreira em anos

Escrito por Jane Anderson, o roteiro de Olive Kitteridge, em suas duas partes finais, é certeiro ao explorar as consequências de uma vida vista e vivida com infelicidade. É certo que a protagonista nem sempre agia conscientemente (e o belo momento em que ela diz que não batia no filho deliberadamente só prova como a sua quase falta de emoções tem um longo histórico que desconhecemos e que a minissérie não precisa explicar), mas muitas das escolhas feitas com ciência por Kitteridge foram decisivas para o dia a dia solitário e sufocante que a protagonista passa a viver – e perceber – quando a história se encaminha para os seus momentos finais. No fundo, Olive é uma mulher de pensamentos desprovidos de maiores julgamentos (quando testada sobre a hipotética situação de seu filho ser gay, ela é categórica ao dizer que o amaria independente de qualquer coisa), mas criou uma carcaça tão dura e oposta ao marido gentil que nunca mais conseguiu se despir dela.

Os anos passam e Olive começa a pagar o preço por ter encarado a vida desta maneira. E é a partir desta fase, quando acompanha a protagonista já com cabelos brancos e tendo que se confrontar com ela própria, que Olive Kitteridge entrega momentos realmente preciosos. Não é só porque o roteiro de Anderson prefere não julgar o gênio difícil da personagem-título que o resultado impressiona, mas também porque não faz questão de facilitá-la para o espectador. A grande jogada, na realidade, é descobrir as sutis camadas que justificam todo e qualquer comportamento dessa figura que, se estivesse em nossas vidas, certamente nos empurraria para a total aversão. Nesta mesma sintonia está a fantástica performance de Frances McDormand, que há anos não tinha uma chance dramática como esta. Assim como a Jasmine de Cate Blanchett em Blue Jasmine ou a Violet de Meryl Streep em Álbum de Família, a difícil protagonista não é obstáculo para a atriz, que, assim como suas colegas mencionadas, é perfeita ao superar a antipatia de Olive e realmente impressionar o espectador.

Exibida no início de novembro em duas noites na HBO estadunidense, Olive Kitteridge ainda traz Bill Murray em uma participação que, apesar de ter um peso muito simbólico para os rumos da protagonista, é responsável por amortecer a visão frequentemente pessimista adotada por Anderson e Cholodenko. Não costumo ser muito fã desta escolha narrativa que, nos 45 do segundo tempo, resolve dar uma guinada na personagem – nem que seja de forma mais contida, como é o caso aqui – para de certa forma mostrar uma luz no fim do túnel antes dos créditos finais. Ainda assim, esta não é uma escolha que abala Olive Kitteridge, uma minissérie que começa estranha mas aos poucos se encontra – em especial no fascinante estudo de personagem e na atuação de McDormand, que já pode reservar um belo espaço em sua estante para os inúmeros prêmios que vai ganhar merecidamente na próxima temporada de premiações.

Na TV… uma aula chamada The Good Wife

Episódios como Hitting the Fan provam o porquê de The Good Wife ser uma das melhores séries em exibição mesmo depois de cinco anos

Episódios como Hitting the Fan provam o porquê de The Good Wife ser uma das melhores séries em exibição mesmo depois de cinco anos no ar

“Não se deixe enganar pelo nome”, dizia o cartaz da quarta temporada de The Good Wife, fazendo alusão ao próprio título da série, que aponta a trajetória de Alicia Florrick (Juliana Margulies) como a esposa perfeita que não se permite errar ou sequer explodir em lágrimas nos momentos de tristeza. Mas se em anos anteriores ela já tinha começado a desconstruir a imagem da mulher que muitas vezes abdica de seus sentimentos e escolhas para manter as aparências e agradar os outros, agora, na quinta temporada, que terminou no último domingo (18), ela finalmente saiu de trás das cortinas e chegou ao palco – e o melhor de tudo: o fez na temporada mais fabulosa deste programa que, mais do que nunca, alcança seu auge como um verdadeiro modelo a ser seguido pelas séries de TV aberta.

Agora Alicia Florrick traça os seus próprios rumos profissionais sem depender da ajuda de outros. Também xinga o marido Peter (Chris Noth) como bem entende. Assume suas traições – sejam elas pessoais ou profissionais -, e diz não se arrepender de nenhuma delas. Se em um primeiro momento tais transformações sugerem um tom meio repentino, basta observar toda a trajetória da série para perceber que a virada da personagem era mais do que necessária e esperada. Chegou a vez de Alicia brilhar e fazer a sua própria vida – mesmo que, em muitos casos, ela tenha que sofrer mais do que esperava e rever muitos de seus conceitos há anos enraizados. A trajetória de Alicia, por sinal, é acompanhada com maestria por Julianna Margulies, que, a cada episódio, reforça ser uma atriz que tem domínio completo das facetas da personagem que interpreta.

Na quinta temporada, Christine Baranski teve os seus melhores momentos como Diane Lockhart em toda a série

Como Diane Lockhart, a ótima Christine Baranski teve, na quinta temporada, os seus melhores momentos em toda a série

Mas antes a quinta temporada de The Good Wife fosse exclusivamente sobre Alicia Florrick. É muito mais do que isso. Neste ano, a série deu maior espaço para outros personagens, em especial Will Gardner (Josh Charles) e Diane Lockhart (Christine Baranski), que, devido a eventos decisivos no episódio Hitting the Fan (o melhor e mais eletrizante já feito pela série), passam a ter uma importância singular na trama. Repleta de embates que afloram o talento do elenco e de reviravoltas bastante corajosas para um programa que ainda não tem seu desfecho confirmado, a quinta temporada de The Good Wife continua a desenvolver o talento da série de lidar com múltiplos personagens. Se Kalinda Sharma (Archie Panjabi) perdeu o mistério e o encantamento que cultivou em anos anteriores, os atores convidados continuam a roubar a cena – em especial Michael J. Fox, perfeito como o insuportável Louis Canning.

A excelência da série, contudo, não está necessariamente em aspectos isolados como o grande momento da elegante Christine Baranski na história (e é uma pena que ela tenha que concorrer na temporada de premiações com a imbatível Anna Gunn, por Breaking Bad), a forma como os roteiristas sabem lidar cada vez mais com o humor, a dor imensurável que a história traz para a protagonista após uma tragédia, a constante evolução inventiva da trilha sonora de David Buckley ou a desenvoltura mais fluente dos diretores (raccords sonoros e movimentos de câmera nunca chamaram tanta atenção no programa). O que encanta no quinto ano de The Good Wife é justamente o conjunto de todos os episódios da temporada e, principalmente, a sinergia deles com tudo o que já foi realizado no programa em mais de 100 capítulos.

Alicia Florrick (Julianna Margulies) nunca foi tão autêntica, mas tampouco teve que lidar com tantas dificuldades ao longo trama como no quinto ano

Alicia Florrick (Julianna Margulies) nunca foi tão autêntica como no quinto ano, mas tampouco teve que lidar com tantas dificuldades ao longo da trama

É extremamente comum que um programa de mais de 20 episódios por temporada se perca após os seus primeiros anos. Especialmente quando eles são tão longos (mais de 40 minutos) e estruturados a partir da lógica de um caso por episódio. Não é o que acontece com The Good Wife. A série criada por Michelle e Robert King nunca perde o fôlego, sempre reforçando a lógica de que, quando não tem acontecimentos para necessariamente movimentar a trama, precisa pelo menos desenvolver seus personagens e plantar dicas para o que está por vir. É um belíssimo exemplo de planejamento e maturidade, onde personagens não somem e aparecem sem explicações e situações são retomadas apenas por falta de assunto. Tudo em The Good Wife tem um propósito.

O resultado da temporada é precioso por todas essas razões e porque a série faz parte da TV aberta. Se já é difícil um programa tão longo chegar em sua quinta temporada sem tropeços, o que dizer, então, de um programa que consegue fazer isso ciente de que sua audiência é infinitamente maior, que seu canal depende de anunciantes e que sua concepção não deve ser tão erudita ou complexa para não afastar o público mais convencional? Mas The Good Wife venceu e provou que é possível fazer tudo isso com grande dinamismo e a devida inteligência. Se Breaking Bad, há pouco tempo, deu a aula suprema de como construir a trajetória perfeita de um drama para os moldes da TV por assinatura, The Good Wife repete o feito de ser uma aula – e talvez com ainda mais méritos por ser tão refém de dinheiro, estatísticas e audiência na TV aberta.