TIFF 2024, #1: “Oh, Canada”, de Paul Schrader

Exibido no Festival de Cannes e, agora, no Festival Internacional de Cinema de Toronto, Oh, Canada traz o diretor Paul Schrader (Gigolô Americano, Mishima, Fé Corrompida) em um tom mais melancólico e memorialista. Com base no livro “Foregone”, de Russell Banks, ele conta a ,história de um famoso e fictício cineasta que, à beira da morte, participa de um documentário sobre a sua vida antes da fama. São, como o próprio personagem diz, confissões que nem mesmo a esposa, vivida por Uma Thurman, havia ouvido durante seus longos anos de casamento. Ao mesmo tempo, devido à doença, ela questiona se os depoimentos do marido não se confundem entre as fronteiras de realidade e ficção, de certa forma embaralhando os relatos repletos de idas e vindas no tempo.
A ideia de Oh, Canada radiografar o seu protagonista a partir de quem ele era antes da fama é acertada — e até mesmo fora da curva, já que Schrader, também autor do roteiro, não busca fazer o retrato edificante de um homem que prosperou na vida, venceu obstáculos ou algo parecido. O interesse reside nos equívocos de alguém que, durante a juventude, tomou diversas rotas problemáticas, seja abandonando a esposa e um filho para nunca mais vê-los por décadas, até o malabarismo sem responsabilidade afetiva alguma entre as mulheres que cruzaram pelo seu caminho. A obra de Leo Fife (Richard Gere) é vista à parte de quem ele foi e é quando as câmeras estão desligadas, fronteiras que Oh, Canada desenha claramente desde o princípio.
O longa, contudo, não decola em questões primordiais. É irônico que Schrader ganhe pontos ao não tentar amaciar o protagonista por espectador, mas falhe em conseguir despertar algum interesse por ele. Parte desse problema está em como Oh, Canada se alterna entre o passado e o presente, criando, através dessa abordagem, expectativas em torno da vida do personagem que nunca são cumpridas. É como se estivéssemos todo o tempo à espera de uma revelação ou de um acontecimento que justifique as tantas cerimônias em torno da gravação do documentário sobre o protagonista. Leo Fife, em suma, não tem episódios tão interessantes assim para relatar, e isso prejudica a atmosfera que o longa inegavelmente tenta construir.
A montagem de Benjamin Rodriguez Jr. também bagunça um pouco as coisas, pois, para além da ausência de clímax, Oh, Canada não é um filme que flui bem, por vezes tornando-se até um pouco confuso entre os personagens que coloca e tira de cena ou nas próprias intervenções que nos trazem ao presentem e servem para dar mais peso dramático aos acontecimentos narrados. Se continuo achando Jacob Elordi um ator limitado (ele interpreta Leo Fife no passado) e fico frustrado por Uma Thurman ter em mãos uma personagem sem muitas dimensões, ao menos créditos devem ser dados a Richard Gere, despido de vaidades e visivelmente comprometido com um tipo de papel que não costuma lhe ser confiado com muita frequência. Sua presença, bem como o ótimo uso de canções ao longo da história, é o que vislumbra a melancolia que Oh, Canada não alcança como um todo.
OH, CANADA REVIEW
Premiered at the Cannes Film Festival and now at the Toronto International Film Festival, Oh Canada brings director Paul Schrader (American Gigolo, Mishima, First Reformed) in a more melancholic and reflective tone. Based on Russell Banks’ book Foregone, it tells the story of a famous fictional filmmaker who, on the verge of death, participates in a documentary about his life before fame. These are, as the character himself says, confessions that not even his wife, played by Uma Thurman, had heard during their long years of marriage. At the same time, due to his illness, she questions whether her husband’s testimonies blur the line between reality and fiction, in a way muddling the narrative field with flashbacks.
The idea of Oh Canada dissecting its protagonist based on who he was before fame is spot-on – and even unconventional, since Schrader, who also wrote the script, does not aim to create an uplifting portrait of a man who succeeded in life, overcame obstacles, or anything like that. The focus lies on the missteps of someone who, during his youth, took several problematic paths, from abandoning his wife and child, whom he never saw again for decades, to emotionally irresponsible juggling of relationships with the women who crossed his path. The work of Leo Fife (Richard Gere) is seen separately from who he was and is when the cameras are off – boundaries that Oh Canada clearly establishes from the start.
The film, however, falters in key areas. It’s ironic that Schrader earns points by not trying to soften the protagonist for the audience but fails to generate any real interest in him. Part of this issue lies in how Oh Canada alternates between past and present, creating, through this approach, expectations about the character’s life that are never fulfilled. It’s as if we’re constantly waiting for a revelation or an event to justify all the pomp surrounding the documentary about the protagonist. In short, Leo Fife doesn’t have such interesting stories to tell, and that weakens the atmosphere the film undeniably tries to build.
Benjamin Rodriguez Jr.’s editing also muddles things a bit. Beyond the absence of a climax, Oh Canada isn’t a film that flows well, at times becoming a bit confusing with the characters it introduces and removes from scenes, or interventions that bring us back to the present, meant to add dramatic weight to the narrated events. While I still find Jacob Elordi a limited actor (he plays Leo Fife in his younger years) and feel frustrated that Uma Thurman plays a character without many dimensions, at least credit must be given to Richard Gere. Stripped of vanity and visibly committed to a type of role not often entrusted to him, his performance, along with the excellent use of songs throughout the story, is what captures the melancholy that Oh Canada as a whole fails to fully achieve.
52º Festival de Cinema de Gramado #9: “Filhos do Mangue”, de Eliane Caffé

Um homem acorda cercado por uma multidão. Em polvorosa, homens e mulheres lhe fazem mil e uma acusações, exigindo diversos acertos de contas. Só que o tal homem, conhecido como Pedro Chão, não lembra de absolutamente nada. Está tão desnorteado quanto desmemoriado. Ao mesmo tempo em que busca juntar as peças de tudo o que aconteceu, ele tenta responder a esse tribunal formado em sua volta. E é basicamente sem preencher as lacunas de eventos passados que Filhos do Mangue narrará a história desse protagonista sem referencial, inclusive sobre ele próprio.
Afeita a interações com as comunidades que verdadeiramente habitam os locais em que seus filmes se passam, a diretora Eliane Caffé, do ótimo Narradores de Javé e de Era o Hotel Cambridge, volta a apostar nessa fórmula de experiências coletivas. Em Filhos do Mangue, ela chega ao Rio Grande do Norte mostrando os costumes de um povo ribeirinho, interpretado por um numeroso elenco de não-atores que dá vida a questões envolvendo não só sua natureza antropológica da região como também questões relacionadas a desvio de verba pública, exploração da prostituição e cenas de violência doméstica.
Como um longa-metragem coral, Filhos do Mangue é uma grata surpresa. A longa cena em que a comunidade confronta o homem desmemoriado já dá conta, logo no início do filme, de apresentar ao espectador as diferentes dinâmicas e personalidades dos personagens que vamos acompanhar ao longo da trama. E eles não poderiam ser mais humanos: concordam, brigam, alteram a voz, clamam por racionalidade e expõem uma série de temperamentos que, quando combinados, definem muito bem aquela vida coletiva.
Assim como nós, o protagonista vivido por Felipe Camargo vai (re)conhecendo cada um deles. Na verdade, a situação é muito mais complexa em seu caso, uma vez que, sem referências sobre si próprio, ele depende da palavra dos outros para tentar se decifrar. Sua confusão é palpável não só pelo excelente desemprenho de Camargo, mas também por uma circunstância que desafia valores — afinal, como ele pode ter tomado, em outra “vida”, as tantas decisões erradas e condenáveis que lhe contam e que ele não identifica como características de sua índole?
Sem se reconhecer no espelho, Pedro Chão convive com essa violência de verem outros desenhando sua própria pessoa e passa a viver às margens daquela comunidade, como se estivesse a cumprir uma penitência cotidiana que ele, no fundo, passa a compreender como justa. Filhos do Mangue, então, olha bastante para esse homem por meio de silêncios e atividades banais. É quando Felipe Camargo trabalha nas minúcias, pois a jornada interna de Pedro Chão acontece, em sua maioria, no não-dito.
Por vezes, o longa quer abraçar coisas demais, o que imprime irregularidades no número de temas discutidos e na profundidade dos personagens abordados. Contudo, se no roteiro escrito em parceria com Luis Alberto Abreu, Eliane Caffé resvala na concisão, o mesmo não pode ser dito de sua firme direção: tanto ela trata a comunidade ribeirinha sem maniqueísmo algum como fortalece a todo momento o trabalho coletivo em cena, extraindo ótimos momentos inclusive dos atores não-profissionais e consolidando o seu dom de transformar um grupo em uma voz uníssona.
“The Great Lillian Hall”: Jessica Lange tem muito a dizer, o filme nem tanto
Life’s gone on as if I had never lived at all.

Direção: Michael Cristofer
Roteiro: Elisabeth Seldes Annacone
Elenco: Jessica Lange, Kathy Bates, Lily Rabe, Pierce Brosnan, Jesse Williams, Michael Rose, Cindy Hogan, Keith Arthur Bolden, Jonathan Horne, Clayton Landey, Allison Mackie
EUA, 2024, Drama, 110 minutos
Sinopse: À medida que dedica seu coração, alma e tempo na preparação para seu próximo grande papel, a querida estrela da Broadway Lillian Hall (Jessica Lange) se vê surpreendida pela confusão e pelo esquecimento. Lutando contra todas as adversidades para chegar à noite de estreia, enquanto tenta manter suas memórias e identidade que estão desaparecendo, ela enfrenta uma tumultuosa jornada emocional: equilibrar seu desejo pelos holofotes com a dura realidade de sua doença recém-diagnosticada.

Como fazer um filme sobre demência depois de Meu Pai? Vez ou outra, acontece isso: uma obra eleva tanto a régua para certos temas que as expectativas títulos subsequentes se tornam quase ingratas. The Great Lillian Hall, telefilme que a HBO estreou no último 31 de maio, não deixa de padecer dessa comparação. Enquanto Meu Pai rompia formalidades narrativas e inovava no modo com que colocava o espectador no lugar de seu protagonista, o recente lançamento da HBO cai na vala comum de filmes sobre demência, tanto em forma quanto em discurso.
No centro da história está Lillian Hall (Jessica Lange), consagrada atriz da Broadway que, prestes a estrear um novo espetáculo, começa a vivenciar esquecimentos e alucinações. Em pouco tempo, descobre ter uma doença análoga à demência que lhe tirará a memória e as palavras, pontos cruciais para o exercício da arte de interpretar. O lugar-comum começa por aí: filmes sobre a perda da memória sempre buscam protagonistas cujas profissões dependem da palavra, a exemplo da escritora Iris Murdoch vivida por Judi Dench em Iris e da professora interpretada por Julianne Moore em Para Sempre Alice, papel que lhe valeu o Oscar de melhor atriz.
Os conflitos imaginados pela roteirista Elisabeth Seldes Annacone, em seu primeiro roteiro de longa-metragem são muito protocolares. Da filha ressentida pela ausência de uma mãe ocupada com o trabalho estelar aos esquecimentos que a atriz tenta a esconder a todo custo para provar que pode, sim, seguir como protagonista de seu mais novo espetáculo, The Great Lillian Hall pouco avança na construção da angústia que é ver uma pessoa percebendo seu próprio desaparecimento. A saída encontrada pela roteirista é colocar os esquecimentos convenientemente em momentos cruciais para dosar a urgência da situação — ainda que o fato de Lilian estar com frequência nos palcos seja um bom elemento de tensão, pois, neles, ela se vê socialmente exposta e vulnerável.
Contrastando com o filme em si, Jessica Lange, em papel que quase foi de Meryl Streep, tem muito a dizer no papel da protagonista. A escalação vem em boa hora, uma vez que Lange, a um passo de se tornar EGOT (falta apenas o Grammy), tem tido oportunidades muito melhores em séries e minisséries nos últimos anos (American Horror Story, Feud: Bette and Joan) do que em longas-metragens. A última vez que ela protagonizou um filme foi, salvo engano, em Grey Gardens, curiosamente outro telefilme da HBO, ao lado de Drew Barrymore. Quinze anos sem uma oportunidade dessa dimensão é muito para uma atriz como Lange. Ela reconhece a oportunidade e imprime toda emoção e a dimensão à personagem principal.
A atriz dribla obstáculos que poderiam dificultar o trabalho de intérpretes menos talentosas. Um deles é, além dos já citados, a falta de elementos suficientes para sentirmos que Lillian é, de fato, uma lenda da Broadway, seja por seu background ou pelas próprias referências a seu nome,. Aliás, o próprio showbusiness ganha traços rasteiros, com citações a quotes óbvias (Uma Rua Chamada Pecado, A Malvada, etc.) e até algumas situações que exigem suspensão de crença, como o fato da produtora do espetáculo ter tantas opiniões sobre o estado debilitado de Lillian, mas nunca realmente tomar uma atitude drástica sobre isso. Pois Lange tira de letra e expõe, com emoção e humanidade, todo o talento que o filme diz que sua protagonista tem, assim como suas fragilidades, dúvidas e angústias diante de um inevitável deterioramento. É a interpretação que faz poderia muito bem adaptar o título para The Great Jessica Lange.
Rapidamente: “20 Dias em Mariupol”, “O Clube dos Milagres”, “Clube Zero” e “O Sabor da Vida”

O Sabor da Vida é muito mais do que as polêmicas envolvendo a sua escolha para representar a França na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional.
20 DIAS EM MARIUPOL (20 Days in Mariupol, 2023, de Mstyslav Chernov): Vencedor do Oscar 2024 de melhor documentário, esse filme do diretor ucraniano Mstyslav Chernov captura, com bastante crueza, a recente invasão russa na cidade de Mariupol e registra todos os horrores inerentes a qualquer guerra. Da tensão reverberada pela chegada dos primeiros tanques até imagens de devastações da cidade-título, 20 Dias em Mariupol traz imagens pesadas de se ver, com o intuito, claro, de ser uma grande denúncia do que está acontecendo em território ucraniano, mas também de dar uma outra dimensão ao espectador que pensa conhecer o verdadeiro horror de uma guerra só por acompanhar as notícias em telejornais e sites da internet. Essa acaba sendo a grande força do documentário, pois o resultado se aproxima mais de uma grande reportagem do que de uma produção com DNA cinematográfico. O tom jornalístico, corriqueiro no gênero, não chega a ser uma surpresa porque se trata da vocação do próprio Mstyslav, correspondente de guerra já reconhecido pelo Prêmio Pulitzer de Serviço Público por seu trabalho na profissão. 20 Dias em Mariupol é, aliás, composto por imagens originalmente enviadas pelo jornalista para veiculação em noticiários durante os dias em que ficou encurralado com outros colegas durante a invasão russa na cidade ucraniana. Soma-se ao caldo a inserção de dilemas clássicos da profissão e verbalizados pelo diretor-narrador, como quando o repórter se vê dividido entre ajudar uma pessoa necessitada ou apenas fazer o registro do momento. Diminui a força e a urgência do relato? De maneira alguma. Apena se torna um daqueles casos em que o tema se sobrepõe à forma, com todos os prós e contras.
O CLUBE DOS MILAGRES (The Miracle Club, 2023, de Thaddeus O’Sullivan): Sempre serei grato a filmes como O Clube dos Milagres por eles reunirem grandes atrizes que já não recebem o devido protagonismo — no caso, temos aqui Maggie Smith, Kathy Bates e Laura Linney. E também sempre reclamarei de filmes como O Clube dos Milagres porque normalmente eles são incapazes de criar histórias inspiradas para que essas atrizes brilhem além dos talentos inerentes a elas. Oriundo da TV, o diretor Thaddeus O’Sullivan dá vida ao roteiro de Jimmy Smallhorne, Joshua D. Maurer e Timothy Prager como um açucarado telefilme familiar dos anos 1990, mas sem qualquer tom de nostalgia que possa tirar o pó em torno do material. Também não ajuda O Clube dos Milagres ter uma história das mais frágeis, em que as protagonistas vividas por Maggie e Kathy sonham visitar a cidade de Lourdes, esperando viver um milagre. Antes de embarcar, elas se deparam com o retorno de Chrissie (Laura Linney), figura ausente em suas vidas há muitos anos e que traz consigo uma série de mágoas e mal entendidos de um passado distante. Falta graça ao longa, que acaba dependente das atrizes, todas boas como de praxe, mas sem ter muito o que fazer com o texto morno. Há ainda pitadas de humor pouco eficientes entre os coadjuvantes, além de uma certa tentativa de emular, sem sucesso, o charme de uma comédia britânica. Não por acaso, O Clube dos Milagres passou despercebido mundo afora e, aqui no Brasil, foi, sem alarde, para o streaming. Destino compreensível para um longa que, mesmo inofensivo, não deveria ter se permitido chegar a um nível tão grande de inexpressividade com as atrizes reunidas em cena.
CLUBE ZERO (Club Zero, 2023, de Jessica Hausner): Prova de que todas as premiações e festivais são suscetíveis a erros (e dos grandes!) é Clube Zero ter disputado a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2023. Dirigido pela austríaca Jessica Hausner, o filme se revela uma sucessão de coisas que não dão certo, algo no mínimo surpreendente para uma cineasta em seu oitavo longa-metragem. Nessa equação de erros, talvez não exista problema maior do que a forma torta com que Clube Zero aborda uma série de temas delicados. Na trama, Mia Wasikowska interpreta uma professora que estabelece um vínculo muito próximo com um grupo de alunos quando introduz em aula o tema da alimentação consciente e como os seres humanos se relacionam com ela. Tal proximidade começa a tomar rumos perigosos, uma vez que os estudantes — alguns bulímicos, outros diabéticos ou apenas displicentes com hábitos alimentares — ficam gradativamente obcecados com o assunto, entrando em uma espiral de fanatismo que pode inclusive colocar suas vidas em risco. Mas, afinal, o que é Clube Zero? Uma sátira? Um drama? Um thriller? Um filme-denúncia? Sem nunca se fazer entender, a diretora Jessica Hausner, autora do roteiro em parceria com Géraldine Bajard, peca na abordagem temática e na construção da narrativa. A falta de foco prejudica a conexão com os personagens, afinal, fica complicado compreender o que devemos sentir por eles e, principalmente, qual o objetivo do filme com as discussões levantadas. Diante desse vazio, Clube Zero se arrasta e se distancia, acreditando ter algo a dizer quando, na verdade, é até mesmo problemático na irresponsabilidade de suas tentativas de abordagem.
O SABOR DA VIDA (La Passion de Dodin Bouffant, 2023, de Anh Hung Tran): Foi o filme enviado pela França para concorrer a uma vaga na categoria de melhor filme internacional do Oscar 2024, o que causou uma série de polêmicas diante da trajetória vitoriosa de Anatomia de Uma Queda, começando pela Palma de Ouro em Cannes até o próprio Oscar de melhor de roteiro original. Estrategicamente, a decisão se mostrou mais do que equivocada, mas, do ponto de vista artístico, não dá para reclamar, pois O Sabor da Vida é especial em muitos aspectos. Nele, a gastronomia é vista como um ritual não apenas da cozinha, mas também da nossa própria existência. A primeira meia hora, centrada na produção e na degustação de um elaborado banquete, já nos mostra como os personagens se compreendem através do ato de cozinhar e como se comunicam através dele. Avesso aos clichês edificantes e de redenção que permeiam os filmes sobre gastronomia, o roteiro escrito pelo próprio diretor vietnamita Anh Hung Tran se utiliza de longos preparos na cozinha e da reação dos personagens ao que vai aos pratos para destrinchara profunda cumplicidade entre Eugénie (Juliette Binoche) e Dodin (Benoît Magimel), parceiros de trabalho há 20 anos. Ao mesmo tempo em que dá para sentir o aroma dos pratos ao longo de todo o filme, também é possível compreender porque Eugénie e Dodin formam uma excelente dupla. Tudo acontece sem pressa alguma, com total economia nas palavras e uma sinestesia que pode até não ser para todos os paladares, mas que, por si só, já é o suficiente para que O Sabor da Vida mereça ser descoberto como essa preciosa forma encontrada pelo cinema para retratar mais uma vez a gastronomia.
“A Paixão Segundo G.H.” é difícil transposição do romance de Clarice Lispector para o cinema
Nada me fazia supor que eu estava a um passo de um império.

Direção: Luiz Fernando Carvalho
Roteiro: Luiz Fernando Carvalho e Melina Dalboni
Elenco: Maria Fernanda Cândido e Samira Nancassa
Brasil, 2023, Drama, 124 minutos
Sinopse: Rio de Janeiro, 1964. Após o fim de uma paixão, G.H. (Maria Fernanda Cândido), escultora da elite de Copacabana, decide arrumar seu apartamento, começando pelo quarto de serviço. No dia anterior, a empregada (Samira Nancassa) pediu demissão. No quarto, G.H. se depara com uma enorme barata que revela seu próprio horror diante do mundo, reflexo de uma sociedade repleta de preconceitos contra os seres que elege como subalternos. Diante do inseto, G.H. vive sua via-crúcis existencial. A experiência narra a perda de sua identidade e a faz questionar todas as convenções sociais que aprisionam o feminino até hoje. Baseado no romance de Clarice Lispector.

Por definição, obras da literatura consideradas “inadaptáveis” sempre dividirão opiniões quando transpostas para o cinema. Lembro particularmente de Ensaio Sobre a Cegueira, que foi levado às telas por Fernando Meirelles com a bênção do próprio autor José Saramago. Ao fim de uma sessão à época de lançamento do filme, Saramago disse, emocionado, que sua alegria em ter visto o resultado era a mesma de quando ele havia terminado de escrever o livro nos anos 1990. Se uma lenda da estatura do escritor aprovou o resultado, quem haveria de contestá-lo? Pois o público não foi lá muito simpático com o longa de Meirelles, provando que romances amplamente consagrados e reconhecidos por suas naturezas inadaptáveis dificilmente alcançarão algum tipo de unanimidade.
Arrisco dizer que A Paixão Segundo G.H. não foge à regra. Tomando como base o romance homônimo lançado pela escritora Clarice Lispector em 1964, a versão cinematográfica marca o retorno do cineasta Luiz Fernando Carvalho à direção de longas-metragens. Seu último trabalho para o cinema foi em 2001, quando lançou o belo Lavoura Arcaica, adaptação do livro de Raduan Nassar. Mais uma vez se lançado em um desafio fílmico-literário, agora acompanhado de Melina Dalboni na confecção do roteiro, o diretor preserva, em A Paixão Segundo G.H., o domínio estético e a sensorialidade muito própria do seu cinema, ao mesmo tempo em que adota um formato demasiadamente hermético para narrar uma história que precisava de mais ar para ganhar vida.
Quem dá vida à protagonista G.H. do título é Maria Fernanda Cândido, em uma interpretação que, com certeza, ficará entre as mais citadas de sua carreira. Para além de sua beleza clássica, que é explorada pelo diretor com inúmeros closes, belos figurinos e monólogos em que olha diretamente para a câmera, Cândido dá conta da imensidão de sentimentos e reflexões que se desenham em cena, o que é um desafio dos mais difíceis. Cabe a ela, em grande parte, garantir a conexão com o espectador, também porque A Paixão Segundo G.H. é um filme-solo e ambientado em um único local (o apartamento da protagonista), com uso de quase nenhum outro personagem, exceto a empregada vivida Samira Nancassa, em participação mínima. E Cândido se sai muitíssimo bem, seja como musa ou nas múltiplas facetas dessa escultora que decide reorganizar a própria casa.
Acontece que A Paixão Segundo G.H. pesa a mão na verborragia, sem deixar tempo para o espectador respirar. Talvez reverente demais com o texto de Clarice Lispector, o roteiro transmite as palavras da escritora de duas formas: em narração ou por meio de monólogos. Até mais ou menos a metade da projeção, o formato é eficiente, pois casa muito bem com o excelente trabalho de fotografia, direção de arte e trilha sonora. Entretanto, quando G.H. encontra a barata que será a razão de todas as suas reflexões, o filme perde seu impacto. Isso porque, conforme avança nos questionamentos da protagonista, o roteiro passa a amontoar, de maneira incessante, as belas, porém densas e complexas, meditações de Lispector, preservadas aqui vírgula a vírgula, sem um ajuste sequer. Se, em um livro, é possível fazer uma pausa para absorver pensamentos ou digerir divagações, na versão cinematográfica é impossível, pois não há espaço para isso.
A Paixão Segundo G.H. termina por se desviar para o intelectualmente exaustivo por conta dessa forma que alterna entre narrações e monólogos. Não lembro de já ter visto tanto texto em off no cinema — e, uma vez que o texto de Lispector foi intocado, a sensação é que, por vezes, o filme se aproxima de um audiobook —, assim como as declamações de G.H., em certa altura, parecem estar acontecendo em um teatro devido à união do tom literário, ao espaço limitado em que se passa (o quarto da empregada) e à própria dramatização de Cândido. Para o meu gosto pessoal, essa combinação acelerada deixa escapar o impacto. Afinal, quando estamos pescando a profundidade de uma passagem, ela logo termina para dar lugar a outra tão profunda quanto.
Navegando no que define como uma reação criativa à obra de Lispector e não exatamente como uma adaptação, o diretor Luiz Fernando Carvalho abarca, conforme ele próprio evocou na exibição do filme durante a última edição do Festival do Rio, a potência feminina que vai além da cosmo-política do homem ocidental. Os temas complexos são, claro, oriundos do livro original e também preservados à risca, inclusive na longa exploração da barata, observada aqui quase microscopicamente como a própria protagonista. Se A Paixão Segundo G.H. é considerado uma das obras mais densas de Clarice Lispector, é correto afirmar que, à parte questões de apreço ou não pelo resultado visto na tela, a recriação de Luiz Fernando Carvalho ganha pontos, ao menos, por bancar a realização de um longa muito próprio e específico, algo cada vez mais em falta nas salas de cinema. Não é para opiniões mornas.