Cinema e Argumento

“A Baleia”: Darren Aronofsky aposta em drama mais intimista, mas quem está realmente no comando é Brendan Fraser

I need to know that I have done one right thing with my life.

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Direção: Darren Aronofsky

Roteiro: Samuel D. Hunter, baseado no espetáculo “The Whale”, de autoria própria

Elenco: Brendan Fraser, Sadie Sink, Hong Chau, Ty Simpkins, Samantha Morton, Sathya Sridharan, Jacey Sink

The Whale, EUA, 2022, Drama, 117 minutos

Sinopse: Charlie (Brendan Fraser) é um professor de inglês recluso, que vive com obesidade severa e luta contra um transtorno de compulsão alimentar,. Ele dá aulas online, mas sempre deixa a webcam desligada, com medo de sua aparência. Apesar de viver sozinho, ele é cuidado pela sua amiga e enfermeira, Liz (Hong Chau), e quer se reconectar com a filha adolescente que abandonou anos atrás, reparando seus erros do passado.

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Com cerca de 270 kg, Charlie (Brendan Fraser) usa instrumentos para juntar coisas do chão porque já não consegue mais se agachar. Também precisa de equipamentos para conseguir levantar da cama ou tomar banho. Com a pressão na casa dos 23 por 18, sequer consegue dar uma risada, pois imediatamente se engasga, começa a tossir e sente uma pontada no coração. E, mesmo assim, Charlie se recusa a ir ao hospital ou fazer qualquer coisa para amenizar sua situação. A desculpa é a de que se endividaria em hospitais, mas não demora muito para que o espectador perceba que ele não quer fazer nada em relação a isso. Na verdade, o protagonista de A Baleia já desistiu da vida e não faz questão de mover um centímetro sequer para reverter a tragédia anunciada de sua morte.

Não é de hoje que o diretor Darren Aronofsky mergulha na destruição de personagens. Do perturbador Réquiem Para Um até o mais recente e polêmico Mãe!, sua predileção é pela espiral que leva personagens ao fundo do poço ou, pelo menos, a um mundo paralelo à realidade. A Baleia permanece nessa mesma esteira com uma sutil diferença: no filme, Charlie orquestra conscientemente a sua própria destruição. E isso causa um incômodo gigantesco, pois, a cada mordida desesperada que ele dá em pedaços de pizzas ou barras de chocolates, sabemos que isso pode lhe custar a vida — e que, ao contrário de nós, ele não está nem aí. O filme, portanto, se encarregará de ilustrar as razões que levaram o protagonista até ali e o que ele quer deixar (ou não) para as pouquíssimas pessoas da sua vida.

Samuel D. Hunter escreve a adaptação do seu espetáculo homônimo pincelando temas como religião, sexualidade e paternidade, preservando várias dinâmicas teatrais. A Baleia se dá em apenas um único espaço e se encarrega de promover um entra e sai de personagens que irão descortinar detalhes até então desconhecidos pelo espectador. Aronofsky escapa da armadilha de fazer um teatro filmado, ainda que isso não lhe garanta um êxito completo. Difícil saber até que ponto Hunter teve a palavra final sobre o que seria preservado ou não do espetáculo, mas há diversas barrigas na adaptação quanto ao uso de personagens secundários, como a filha vivida por Sadie Sink, que não precisava de tanta presença, até porque o filme pesa a mão na construção da imagem de uma adolescente rebelde.

Os subtextos seguem um caminho semelhante com arestas que poderiam ser tranquilamente aparadas. É o caso de boa parte das aparições de Thomas (Ty Simpkins), um missionário que salva Charlie em um momento crucial e tenta convencê-lo a buscar por algum tipo de redenção. Via de regra, A Baleia é sempre melhor quando o personagem se revela a partir do convívio com pessoas que estão há bastante tempo na sua vida. Nesse sentido, ao contrário da filha, a enfermeira Liz (Hong Chau) é um acerto  no que se refere à dramatização, uma vez que ela se vê em uma delicada encruzilhada: ao mesmo tempo em que quer fazer de tudo para salvar o amigo, também acata a decisão tomada por ele de não sair mais de casa e viver do jeito que está.

Não é errado dizer que se trata do filme mais “intimista” de Darren Aronofsky. Afinal, tudo se dá no apartamento do protagonista em dias banais, com pessoas comuns e sem grandes ambições. A contradição é que Aronofsky nunca foi um diretor necessariamente afeito a esse estilo. Pelo contrário. Na realidade, a ambição — seja ela temática ou de proporções técnicas — é que sempre foi uma marca da sua carreira, e isso parece ser algo do qual ele não abre mão. Isso acaba prejudicando A Baleia, pois o diretor quer engrandecer essa história a cada minuto, inclusive nos momentos em que ela necessita de tons amenos ou a simples articulação entre texto e interpretação. Percebam a trilha sonora de Rob Simonsen: apesar de boa, é usada em demasia, trazendo gravidade e incômodo em sequências que já falam por si só em tais aspectos.

O próprio protagonista basta para que A Baleia tenha o devido impacto, por mais que estejamos diante de um longa-metragem suscetível a diversas polêmicas e problematizações. Enquanto é compreensível que parte do público acuse o filme de gordofobia em função da miserabilidade aplicada à condição do protagonista, vejo tudo como uma questão não tão simplista assim. Quando Charlie pergunta ao missionário se ele acha seu corpo nojento, fica evidente que ele reconhece a maneira com que a sociedade olha para o seu tamanho. Os 270 kg são a representação de alguém que, a partir de uma dolorosa perda pessoal, terminou submerso em depressão, isolamento e ataques de ansiedade. Definitivamente não enxergo a representação de Charlie como um ato de má fé vindo de um roteirista que já passou para uma luta contra desordens alimentares.

O que não funciona tão bem na construção do protagonista é a maneira com que A Baleia o torna um mártir acima do bem e do mal. Com muita generosidade, Charlie perdoa e compreende todas as pessoas, mesmo quando elas não dão razão para isso, em especial a filha que, muitas vezes, beira o insuportável. É uma posição que, de vez em quando, soa artificial, mas que Brendan Fraser compensa amplamente e um pouco mais. Ele nunca parece engessado pelas pesadas (e impecáveis) próteses, que são parte fundamental da sua interpretação. Impressiona como Fraser se comunica através do olhar e dos movimentos físicos tão complicados desse homem sem presente e sem futuro. Ele faz de Charlie um personagem crível, múltiplo e íntimo. É a chance de uma carreira e, a cada momento, o ator parece saber disso. Somente por ele, se não também pelo desconforto propositalmente trabalhado ao longo da projeção, A Baleia já vale a pena.

Rapidamente: “Avatar: O Caminho da Água”, “Blonde”, “Close” e “Top Gun: Maverick”

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Eden Dambrine é uma revelação no dilacerante Close, oitavo filme a garantir para a Bélgica uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional

AVATAR: O CAMINHO DA ÁGUA (Avatar: The Way of Water, 2023, de James Cameron): Se há algo em que James Cameron nunca falha é em entregar aquilo o que sempre prometeu. Avatar: O Caminho da Água não foge à regra. É espetáculo vistoso e capaz de preencher a tela, justificando tanto tempo de espera desde o lançamento do filme original em 2009. E não é impacto válido apenas para quem tem a oportunidade de ver na melhor sala possível: aposto boa parte das minhas fichas que essa continuação, assim como todos os filmes de Cameron, preservará sua grandiosidade em qualquer tela. E, digamos, que para por aí, pois O Caminho da Água tem dois problemas centrais, começando pela ausência do fator surpresa. Já conhecemos profundamente a terra de Pandora e sua impressionante estética, algo que Cameron tenta contornar — às vezes acertando, outras não — ao levar os personagens para uma outra localização dentro daquele universo. Sem a efervescência de algo novo em termos de espetáculo, o peso maior recai sobre o roteiro, sempre um calcanhar de Aquiles na filmografia do diretor. E a má notícia é que o texto de O Caminho da Água se revela fraco até mesmo para o padrão James Cameron. Com exceção da baixa de um ou outro personagem e dos comoventes instintos parentais dos protagonistas para proteger seus filhos, essa sequência chove no molhado e termina quase como se nada tivesse acontecido em termos práticos ao longo de mais de três horas, além de se repetir na preguiçosa reciclagem do vilão. No geral, em termos comparativos com o filme anterior, não são bons indícios para uma franquia que Cameron já revelou planejar até um quarto, quinto, sexto ou sétimo longa-metragem…

BLONDE (idem, 2022, de Andrew Dominik): Antes Blonde fosse apenas um projeto ruim desmerecedor do talento a sua protagonista, uma vez que desses temos aos montes, ainda mais quando falamos sobre cinebiografias. A questão com esse filme sobre a vida do ícone Marilyn Monroe é outra: a de mau gosto mesmo. Tendo como base o livro homônimo de Joyce Carol Oates, o diretor Andrew Dominik (O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford) usa um viés assumidamente imaginativo apenas para torturar Marilyn Monroe. Não que a protagonista de clássicos como O Pecado Mora ao Lado e Os Homens Preferem as Loiras tenha tido uma vida fácil. Pelo contrário. Agora, resumi-la a isso é desonrar a lembrança de uma das maiores estrelas já aclamadas em Hollywood. A cruz carregada pela protagonista é tão pesada o tempo inteiro que, em certo ponto, o drama acaba se banalizando. Dominik tem imensas virtudes ao compor imagens — não à toa, a fotografia de Chayse Irvin e a trilha de Nick Cave e Warren Ellis brilham mesmo com todos os problemas amontoados —, mas, neste caso, falta o mínimo de calibragem para abarcar melhor tantas emoções que, por si próprias, já são deveras pesadas. Blonde é longuíssimo e, diante de tanto sofrimento, comete até a proeza de transformar Marilyn Monroe em uma protagonista das mais chatas. Ainda assim, com tudo trabalhando contra, Ana de Armas sobrevive e vai além. Sua performance acerta na meticulosidade de técnica e sensibilidade, expondo nuances e observações que o seu próprio filme parece incapaz de perceber — ou pior, de aceitar como bons caminhos a serem seguidos.

CLOSE (idem, 2022, de Lukas Dhont): Evite a qualquer custo spoilers envolvendo Close, título que marca a oitava indicação da Bélgica ao Oscar de melhor filme internacional. Saber de antemão o núcleo das emoções deste segundo longa-metragem de Lukas Dhont afeta a construção de impacto da jornada nada fácil de uma amizade entre dois jovens garotos. Pelo menos em anos recentes, não tenho lembrança de um coming of age tão doloroso e que confie tanto no espectador para absorver uma situação difícil e incômoda. Se, do ponto de definição, o coming of age é uma história em que determinado personagem sai da infância para adentrar a vida adulta, Close dramatiza esse rito ao se concentrar no que acontece quando alguém é obrigado a administrar emoções complicadíssimas até mesmo para adultos. Na mistura, coloca ainda outro dilema delicado: por que a sociedade cobra tantas respostas e definições em uma fase da vida amplamente marcada pela (auto)descoberta e pela busca do entendimento daquilo que se quer ser, fazer ou sentir? Por que é exigido que uma criança seja de um jeito ou de outro quando nem ela própria começou a pensar em quem deseja se tornar? Assim como no devastador Alabama Monroe, a Bélgica está mais uma vez sob os holofotes mundiais com uma obra difícil de assistir pela franqueza com que mapeia os desdobramentos de uma situação responsável por deixar marcas indeléveis para toda a vida. Na dianteira do elenco, o jovem Eden Dambrine é uma revelação e entrega desempenho incrivelmente maduro. E, para quem gosta de trilhas sonoras, vale prestar atenção nas composições instrumentais de Valentin Hadjadj, todas no equilíbrio certo entre a dor e a beleza.

TOP GUN: MAVERICK (idem, 2022, de Joseph Kosinski): Ninguém imaginava que Top Gun: Maverick pudesse ir tão longe. O sucesso de bilheteria, claro, era esperado, mas o que surpreendeu mesmo foi o amplo reconhecimento da crítica e as suas seis indicações ao Oscar, incluindo as de melhor filme e roteiro adaptado. Além de ser um longa com adrenalina toda vez que aposta na adrenalina das cenas aéreas, Top Gun: Maverick reforça o talento do cineasta Joseph Kosinski em orquestrar a parte técnica, algo perceptível desde a sua estreia na direção de longas-metragens com Tron: O Legado. Diverte e frequentemente empolga de maneira que seu sucesso com o público seja inquestionável. De bandeja, a sequência do longa-metragem original de 1986 termina ao som de Hold My Hand, ótima canção de Lady Gaga também indicada ao Oscar. Ainda assim, é de se estranhar tantas honrarias a ponto de Top Gun: Maverick ter sido considerado o melhor filme do ano pelo National Board of Review. Não é para tanto. Por outro lado, pode ser que uma caraterística da qual eu não compartilho pese bastante na avaliação: a nostalgia. Kosinski preserva intacta uma certa áurea dos anos 1980, compilando referências a personagens e acontecimentos passados, lembranças ainda muito presentes para o protagonista interpretado por Tom Cruise e um punhado de voos incríveis (e potencializados pela evolução técnica do cinema desde os anos 1980). Já para aquele espectador que não tem relação com o filme original ou caiu de paraquedas na continuação, é provável que, dramaticamente falando, tudo soe um pouco datado e (bastante) cafona. Ou seja, como sempre acontece no cinema, tudo é questão de ponto de vista.

“Entre Mulheres” dialoga sobre as interseções, discordâncias e tragédias de um violentado universo feminino

Why does love — the absence of love, the end of love, the need for love — result in so much violence?

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Direção: Sarah Polley

Roteiro: Sarah Polley, baseado no romance “Women Talking”, de Miriam Toews

Elenco: Jessie Buckley, Rooney Mara, Claire Foy, Ben Whishaw, Judith Ivey, Kate Hallett, Emily Mitchell, Liv McNeil, Sheila McCarthy, Michelle McLeod, Frances McDormand, Kira Guloien, Shayla Brown

Women Talking, EUA, 2022, Drama, 104 minutos

Sinopse: Em 2010, as mulheres de uma comunidade religiosa isolada lutam para conciliar sua realidade com sua fé. (Adoro Cinema)

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O título original — Women Talking, ou seja, mulheres falando/conversando, em uma tradução literal — é mais fiel ao que a diretora Sarah Polley encena neste seu quarto longa-metragem, chamado aqui no Brasil de Entre Mulheres. Literalmente, a adaptação do livro homônimo lançado por Miriam Toews em 2018 traz várias personagens que, durante pouco mais de 90 minutos, discutem se devem ou não fugir da comunidade religiosa em que (con)vivem com homens abusadores e violentos, muitas vezes dentro de suas próprias casas. Não é coisa do século passado: apesar dos figurinos e da direção de arte evocarem tempos antigos, Entre Mulheres deixa uma incômoda sensação de que, seja em que época for, o sistema patriarcal segue, de um jeito ou de outro, dolorosamente enraizado em todos os cantos do mundo.

Sarah Polley estreou na direção de longas-metragens aos 27 anos de idade com uma maturidade impressionante. Seu Longe Dela, de 2006, é ímpar na sensibilidade com que fala sobre um tema à época bastante distante daquela jovem cineasta: as transformações trazidas pelo Mal de Alzheimer a um casamento de mais de quatro décadas. Agora, dez anos após ter realizado o pessoalíssimo documentário Histórias Que Contamos, ela demonstra que sua habilidade como narradora segue intacta com Entre Mulheres. Mais do que isso, Polley pega um formato em que é fácil resvalar para a linguagem teatral para colocar na tela um filme dinâmico e que, do ponto de vista temático, discute as violências dirigidas ao universo feminino sem cair em discursos fáceis.

Tudo o que Sarah Polley não quer é, justamente, respostas prontas, aproveitando muito bem personagens em conflito sobre sair ou não da tal comunidade em que vivem. Há aquelas convictas de que, por só conhecerem uma única realidade durante toda uma vida, não conseguirão sobreviver sem os homens. Já uma personagem específica é categórica: ele será capaz de matar para defender as filhas caso continue onde está. Mulheres de diferentes gerações e convicções analisam todos os cenários — e, a partir deles, Polley versa sobre violência, costumes, ideais, as trágicas universalidades que unem as mulheres e, por que não, as discordâncias existentes entre pessoas que teoricamente deveriam estar de acordo em prol de um bem maior.

Entre Mulheres não deixa de ser uma celebração ao diálogo, com toda atenção aos detalhes e às camadas que apenas um olhar feminino poderia conferir a um projeto como esse. Também tem tempo para tecer reflexões com calma porque os homens estão fora de quadro, com exceção do personagem de Ben Whishaw, por razões logo explicadas pelo roteiro. Deixar os homens de fora é uma jogada acertada porque assim Polley outra vez confere atenção prática às mulheres, colocando-as como nosso ponto de referência em relação aos conflitos e suas urgências. Sabemos o que sabemos por causa delas e confiamos em cada palavra quando o roteiro nos insere em todas as conversas como se estivéssemos ali, ouvindo atentamente as idas e vindas de reflexões e argumentos.

Ao mesmo tempo, ser de natureza “palavrosa” não faz de Entre Mulheres um apanhado inchado de observações e personagens. O roteiro mais ambicioso da carreira de Polley até aqui se garante porque é instigante ao deixar o espectador curioso pela resolução. Conseguirão aquelas mulheres chegarem a um acordo? E, se não houver unanimidade, como ficam as que discordam ou que não desejam seguir a maioria? Elas literalmente colocam no papel os prós e os contras de todos os possíveis caminhos e, para além das palavras, ganham vida nas mãos de um grupo extraordinário de atrizes, com direito a uma participação muito pequena de Frances McDormand, também produtora do longa.

De intérpretes já bastante conhecidas do público, como Claire Foy e Ronney Mara, a outras nem tanto, a exemplo de Michelle McLeod e August Winter (a segunda interpretando uma menina que passa a se identificar e a se vestir como um garoto), o elenco se caracteriza por uma colaboração generosa e equivalente entre as atrizes. Meu destaque particular fica com Jessie Buckley, que dá vida à personagem mais espinhosa de todas, daquele tipo que tem resposta para tudo e que caminha por uma linha muito tênue entre praticidade e um senso para lá de individualista. Sua reatividade levanta boa parte dos conflitos e diz mais sobre seus medos e anseios do que ela própria está disposta a admitir.

Por não ter lido o livro original de Miriam Towes — que, por sua vez, toma como inspiração o caso real de uma pequena comunidade boliviana em que nove homens drogavam e abusavam de mulheres locais —, fico sem poder dizer o quanto a adaptação é fiel ou transcende a obra que toma como base. Contudo, isoladamente como cinema, Entre Mulheres é uma excelente pedida para quem, assim como eu, acredita que a concisão de um bom roteiro, um ótimo elenco e uma direção que sabe o que está fazendo rende muito mais do que qualquer pirotecnia. Em uma de suas entrevistas sobre o filme, Sarah Polley apontou como a fotografia de tons dessaturados evoca à ideia de que o universo daquelas mulheres — e os conflitos inerentes a ele — já desapareceu há muitos anos. Otimismo demais diante das tragédias que ainda vemos por aí? Talvez. Mas envernizado por uma esperança que Polley traz com as pequenas grandes qualidades que lhe firmaram como uma cineasta para se acompanhar sempre.

“Tár” não corresponde à expectativa de 16 anos por um novo filme de Todd Field

It’s always the question that involves the listener. It’s never the answer.

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Direção: Todd Field

Roteiro: Todd Field

Elenco: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Adam Gopnik, Sylvia Flote, Sydney Lemmon, Mark Strong, Nicolas Hopchet, Kitty Watson, Zethphan D. Smith-Gneist

EUA, 2022, Drama, 158 minutos

Sinopse: Tendo alcançado uma carreira invejável com a qual poucos poderiam sonhar, a renomada maestrina e compositora Lydia Tár (Cate Blanchett), a primeira diretora musical feminina da Filarmônica de Berlim, está no topo do mundo. Como regente, Lydia não apenas orquestra, mas também manipula. Como uma pioneira, a virtuosa apaixonada lidera o caminho na indústria da música clássica dominada por homens. Além disso, Lydia se prepara para o lançamento de suas memórias enquanto concilia trabalho e família. Ela também está disposta a enfrentar um de seus desafios mais significativos: uma gravação ao vivo da Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler. No entanto, forças que nem mesmo ela pode controlar lentamente destroem a elaborada fachada de Lydia, revelando segredos sujos e a natureza corrosiva do poder. E se a vida derrubar Lydia de seu pedestal? (Adoro Cinema)

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Desde que começou sua carreira em longas-metragens com o ótimo Entre Quatro Paredes (2001), o diretor Todd Field se provou um exímio observador do cotidiano, começando por esse denso drama que examina o luto e as relações familiares. Logo em seguida, ele lançou olhar sobre as dinâmicas (extra)conjugais no afiado Pecados Íntimos (2006), baseado na obra de Tom Perrotta. Tár, que chega aos cinemas agora em 2023, encerrando um hiato de 16 anos na carreira de Field, não é exatamente um filme-irmão de Entre Quatro Paredes e Pecados Íntimos. Para falar bem a verdade, tudo é mais ambicioso, da duração de quase 2h40 ao universo imaginado para a consagrada (e fictícia) maestrina Lydia Tár (Cate Blanchett), que se enreda em uma série de conflitos envolvendo poder e prestígio no plano profissional e pessoal.

Inevitavelmente, tanto tempo de espera entre um filme e outro gera expectativa, algo que nem sempre trabalha a favor de uma obra. E, talvez, esse período de 16 anos sem um trabalho do diretor tenha mesmo minado a minha experiência com Tár, que vem colecionando admiradores por onde passa, mas que ficou distante de me causar algum envolvimento. À parte expectativas, e ainda na questão do tempo, o filme chega ao público um tanto datado no que se refere às discussões propostas pelo roteiro. Há pouca novidade no que Field, também autor do roteiro — seu primeiro original na carreira de longas-metragens —, tem a dizer, por exemplo, sobre a cultura do cancelamento e o efeito que ela causa no íntimo de figuras públicas e consagradas.

Minha frustração com Tár reside basicamente em ver que o cineasta se saiu melhor ao abarcar vários personagens de uma vez só em seus filmes anteriores do que nesse estudo de uma única figura. Mesmo depois de quase três horas junto à Lydia Tár, ficamos sem saber de onde ela vem, as razões que lhe tornaram uma mulher praticamente imune a sentimentos e até mesmo sua personalidade musical para além da idolatria pelo compositor Gustav Mahler. Conceber Lydia como uma famosa vencedora do EGOT (sigla para quem já foi premiado com Emmy, Grammy, Oscar e Tony) também não diz o suficiente sobre sua verve artística. Não é o caso de dar resposta a tudo (aliás, no cinema como um todo, nunca é),  e sim o de ao menos o de provocar o espectador a construir a sua própria percepção acerca da protagonista a partir de diferentes camadas e provocações.

Um dos melhores momentos de Tár — e que, ele sim, diz muito sobre quem a personagem é com os outros e com ela mesma — é aquele encenado em uma das aulas ministradas pela personagem. Trata-se tanto de um sólido e interessante vislumbre das firmezas e contrariedades de Lydia quanto de um excepcional trabalho de mise-en-scène, com Cate Blanchett fisgando plenamente a atenção em um trabalho de grande sinergia com o filme em si. No entanto, dali em diante, tornam-se previsíveis as reverberações dessa interação específica e de todos os movimentos erráticos de uma protagonista que não enxerga ou, por pura soberba e por ser quem é, escolhe não enxergar a possibilidade de seus atos terem grandes consequências.

Se o roteiro é plano e exaustivo, a direção de Todd Field parece estar em dúvida quanto tratar a jornada da personagem como uma trágica derrocada ou como uma grande piada do destino. Essa falta de unidade, aliada ao fato do longa pouco se arriscar, confere sinais contrários especialmente ao terço final, quando acompanhamos a desintegração de Lydia em todos os espectros. Cate Blanchett, que conduziu de verdade a orquestra em todas as cenas, traduz a imponência, a vaidade e as aparências de Lydia com seu talento de sempre. O esforço em fazer a amarração de Tár se dá pelas mãos dela, que tem vivido uma fase excepcional há bons anos. Entretanto, Blanchett por si só não pode contornar problemas como o do desfecho, cuja intenção mira na ironia para acertar em representações até mesmo estereotipadas. Pode ser que eu não estivesse em um bom dia, que eu tenha deixado passar algo ou que simplesmente eu não tenha visto o mesmo filme que a esmagadora maioria, mas Tár ficou para mim como um relato que, ao contrário dos talentos musicais de sua maestrina, falha em encontrar seu próprio ritmo. 

“Aftersun”, uma melancólica meditação sobre as lembranças que colecionamos e como elas acabam nos (re)definindo

I think it’s nice that we share the same sky.

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Direção: Charlotte Wells

Roteiro: Charlotte Wells

Elenco: Frankie Corio, Paul Mescal, Celia Rowlson-Hall, Sally Messham, Ayse Parlak, Sophia Lamanova, Brooklyn Toulson, Spike Fearn, Kayleigh Coleman, Harry Perdios, Ruby Thompson, Ethan Smith, Onur Eksioglu, Cafer Karahan

Reino Unido/Estados Unidos, 2022, Drama, 102 minutos

Sinopse: Sophie reflete sobre a alegria e a melancolia das férias que ela tirou com seu pai 20 anos antes. Memórias reais e imaginárias preenchem as lacunas enquanto ela tenta reconciliar o pai que conheceu com o homem que desconhecia.

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* Atenção! O texto abaixo contém spoilers envolvendo detalhes centrais do filme.

Nossas memórias não são termômetros tão confiáveis porque dependem de onde estamos agora e, principalmente, do sentido que passamos a atribuir às coisas quando tomamos alguma perspectiva. Talvez aquele relacionamento repleto de momentos felizes tenha suas lembranças distorcidas porque resultou em uma dolorosa separação. Um período difícil de anos anteriores de repente é visto de forma positiva na medida em que acabou proporcionando uma série de aprendizados. Ou, então, aquelas ensolaradas férias de infância ganham, com o passar dos anos, um ar pesado e triste, em função de tudo o que aprendemos com as dores trazidas pela vida adulta. A tônica de Aftersun, longa-metragem de estreia de Charlotte Wells, é justamente essa: abordar o tempo como ferramenta indispensável no processo de ressignificar sentimentos, percepções e vivências.

Tudo parte de uma perspectiva presente — a protagonista adulta está revisitando as gravações de um período de férias na Turquia com o pai —, mas Aftersun se situa no passado, convidando o espectador a preencher as lacunas do que está acontecendo, especialmente daquilo que uma pequena Sophie (Frankie Corio) ainda não enxerga em função da idade e só passará a entender quando se tornar adulta. Para tanto, a diretora se vale de uma narrativa cotidiana e sem grandes acontecimentos dramáticos. O que importa aqui é atmosfera. E que atmosfera! Desde os primeiros minutos percebemos o filme envolto em um certo incômodo que não condiz com os momentos supostamente felizes entre pai e filha. No final das contas, por que a alegria parece tão triste?

Wells nos torna íntimos dos personagens a partir das circunstâncias mais banais. Entre uma e outra situação, como um passeio de barco ou um banho de lama, ela revela detalhes munidos de discretos significados: os pais da protagonista são separados, Calum (Paul Mescal) se diz surpreso de ter conseguido completar 30 anos e os livros que ele leva para a viagem têm como tema a meditação. Dar pequenas pinceladas em detrimento da encenação de grandes dramas faz muito sentido para aquilo que Aftersun emula com maestria em atmosfera: o estado de depressão de Calum, que busca esconder sua condição para cumprir o esperado papel de um pai diante da filha durante em um período de férias.

Ainda que Sophie perceba mais coisas do que Calum imagina, ele, inevitavelmente, faz de tudo para manter as aparências, represando angústias e tristezas que, assim como a própria protagonista em sua versão adulta, jamais saberemos quais são. Essa barreira invisível entre os personagens não impede o roteiro de iluminar a relação dos dois. Há uma cumplicidade palpável ali, representada em cenas banalíssimas e, por isso mesmo, tão próximas da vida real. A delicadeza de Aftersun também se estende à jornada individual de Sophie, situada naquela fase da vida em que uma criança começa a se descolar dos pais para, aos poucos, começar a construir sozinha a sua identidade individual.

Parte da dor que a Sophie adulta sente vem dessa impossibilidade de ter ajudado seu pai. Não por vontade própria, e sim pelos limites da vida: sendo uma criança, ela jamais poderia imaginar ou compreender o que realmente estava se passando dentro do homem que lhe deu à vida e que, presume-se, ela viu pela última vez no corredor de um aeroporto ao final das férias. E, anterior a isso, talvez ainda mais cruel seja a ideia de nunca ter conhecido de verdade um pai que agora, sendo compreendido a partir de memórias ressignificadas, diz-lhe tanto sobre a vida e suas dificuldades. Tantas divagações são possíveis porque Aftersun nos inunda com algo cada vez mais em falta: empatia. É fácil fazer o exercício de se colocar tanto no lugar da protagonista quanto no de Calum, ambos interpretados com humanidade ímpar por Frankie Corio e Paul Mescal.

Nos minutos finais, a diretora sai um pouco do realismo com o intuito de entrelaçar passado e presente em uma das cenas mais bonitas do ano. Desafio alguém a não levá-la na memória. Falo da sequência ao som de Under Pressure, do Queen, capaz de sintetizar o universo inteiro do filme. A banda do saudoso Freddie Mercury que me perdoe, mas não conseguirei mais ouvir a canção do mesmo jeito, tamanha a emoção. Há de se tirar o chapéu para essa estreia de Charlotte Wells em longas-metragens, e fico feliz em ver que, até aqui, a produção tem sido reconhecida por público e crítica como merece. Que essa rara sensibilidade em conjugar imersão e emoção possa ser vista em outros trabalhos da diretora. E acho que vai, pois, se ela já começou assim, com um dos retratos mais verdadeiros sobre a depressão, mal posso esperar pelo que vem por aí.