Cinema e Argumento

Em “Morra, Amor”, depressão, loucura e maternidade são vistas pela ótica sempre inquietante de Lynne Ramsay

I’m stuck between wanting to do something and not wanting to do anything at all.

Direção: Lynne Ramsay

Roteiro: Alice Birch, Enda Walsh e Lynne Ramsay, baseado no romance homônimo de Ariana Harwicz

Elenco: Jennifer Lawrence, Robert Pattinson, Sissy Spacek, Nick Nolte, LaKeith Stanfield, Gabrielle Rose, Clare Coulter, Saylor McPherson, Kasmere Trice Stanfield, Sarah Lind, Zoe Cross, Luke Camilleri

Die My Love, Reino Unido/Canadá/Estados Unidos, 2025, Drama, 119 minutos

Sinopse: Grace (Jennifer Lawrence) acaba de ser mãe pela primeira vez. Aspirante a escritora, decide sair de Nova Iorque em busca de uma vida mais calma e se muda com a família para a antiga casa de infância do marido (Robert Pattinson), numa zona rural de Montana. Aos poucos, começa a enfrentar sentimentos de isolamento e sofrimento psicológico. Com a saúde mental em declínio no período de pós-parto, a realidade vai levando o casamento a um território inquietante e imprevisível.

Morra, Amor nos apresenta a Grace (Jennifer Lawrence) e Jackson (Robert Pattinson) quando ambos chegam à casa que será seu novo lar. Idílico, ensolarado e silencioso, o cenário é perfeito para duas pessoas em busca de autorrealizações. Enquanto ele quer gravar um álbum, ela tem planos de escrever um romance. Mais para frente, o filme revela que a casa em questão pertencia ao tio falecido de Jackson — um sujeito sempre tido como feliz pela família e que veio a óbito porque cometeu suicídio. A triste dicotomia é notada apenas por Grace, e isso não é mera coincidência. Talvez ela reconheça nessa história algo do seu íntimo, não por presságios, agouros ou fantasmas, mas pela sensação de ver o seu próprio eu desaparecer na desesperadora imensidão do nada.

Perita em capturar o que existe de mais incômodo em estados de espírito muito particulares, a diretora Lynne Ramsay volta a pisar no terreno da maternidade após o assombroso Precisamos Falar Sobre o Kevin. Com Morra, Amor ela novamente tem um material literário em mãos, no caso, o romance homônimo publicado por Ariana Harwicz em 2012. As duas adaptações de Ramsay, contudo, não se sobrepõem: ao passo em que Precisamos Falar Sobre o Kevin desvendava a protagonista por meio da relação disfuncional estabelecida entre ela e um filho — para dizer o mínimo — problemático, Morra, Amor acompanha o íntimo de uma mulher que, antes, durante e depois do nascimento do bebê, permanece em conflito consigo e com o mundo. Não há problema algum de conexão com o filho, diz Grace, a certa altura. O inferno, na verdade, é todo o resto.

Quando o silêncio bucólico dá lugar ao vazio, Morra, Amor passa a desconstruir a vida a dois. Há uma desconexão entre o casal, da maneira com que ambos passam a ter apetites muito distintos por sexo à falta de assunto ou interesse em estabelecer uma conversa banal por telefone quando um dos dois viaja a trabalho. O incômodo tão característico da filmografia de Lynne Ramsay toma forma com a estratégia da repetição, emulando, em situações corriqueiras, o desgaste emocional especialmente da protagonista. É de enlouquecer, por exemplo, que ela precise lidar com o cachorro recém adotado por Jackson. O animal tem papel importante porque representa o total descaso da figura masculina com o que acontece naquela casa. Afinal, o cão chega àquele ambiente sem o consentimento de Grace e vira mais uma “tarefa” para ela, já que Jackson pouco contribui para as tarefas domésticas.

O acúmulo dessas situações amplifica os dilemas de uma mulher em gradativa desintegração e cujo desespero está em não conseguir diagnosticar o que tanto lhe desconstrói. No roteiro escrito por Ramsay em parceria com Alice Birch e Enda Walsh, ecoam, claro, as inseguranças inerentes à maternidade — uma mãe de verdade precisa fazer ela mesma o bolo de aniversário do filho? — a ponto de elas se tornarem pequenas paranoias, como quando um choro inexistente do bebê soa bastante real mesmo no mais absoluto silêncio. Para completar, os alienados ou bem intencionados à volta também acabam contribuindo para a profunda depressão de Grace, afinal, a depressão costuma ser exatamente assim: incompreendida, subestimada ou vista apenas como falta de esforço, quando não passível de ser resolvida com uma aula de ioga e uma ida ao cabeleireiro.

Lynne Ramsay emoldura a trama com um aspecto de imagem 1:1 (o famoso formato “quadrado”), escolha que, por óbvio, “comprime” os sentimentos de uma personagem já presa entre a vontade de fazer alguma coisa da vida e não conseguir fazer absolutamente nada. Ninguém olha para Grace com compreensão — e muito menos consegue lhe dar um abraço ou algo do gênero. O resultado? Ela começa a se tornar um perigo para si, mais do que para os outros, tentando, no subconsciente, provar sua existência através da autodestruição, inclusive física. Sem flertar com o mero sadismo, a diretora filma tal processo com crueza, ainda que daí venha a sua fama de cineasta “controversa” ou que “divide opiniões”, classificações usadas para prevenir o público, mas que, neste mundo estranhamente comportado de hoje em dia, são necessárias e estimulantes.

Entre os produtores de Morra, Amor, está ninguém menos do que Martin Scorsese, que, informações dão conta, foi o responsável por escolher Jennifer Lawrence para o papel principal após assistir à sua performance em Mãe!. Gosto dessa informação porque ela valoriza uma fase da carreira de Lawrence que vem sendo subavaliada por público e crítica. Ainda que Lawrence tenha sido multipremiada mundo afora pelos filmes duvidosos de David O. Russell, suas escolhas mais interessantes e equilibradas se deram após a superexposição ao lado do diretor. Além de Mãe!, há o delicado Passagem, por exemplo, assim como o divertido Que Horas Eu Te Pego?, onde ela exercita sua verve cômica. Morra, Amor se soma aos ótimos projetos que a atriz vem escolhendo em um recorte mais desacelerado de sua filmografia. Destemida, ela brilha em cena ao, ironicamente, dar vida a alguém que está se apagando. Não é para todo mundo, como já foi possível constatar nas reações mistas ao filme desde a estreia mundial no último Festival de Cannes. Entretanto, mais uma vez, fico ao lado de Lynne Ramsay e seus incômodos, sempre potencializados por atores escolhidos com grande precisão.

Rapidamente: “Casa de Dinamite”, “Os Roses”, “Salve Rosa” e “A Vizinha Perfeita”

A Vizinha Perfeita venceu o prêmio de melhor direção em documentário no último Festival de Sundance e o Critics’ Choice Awards em cinco categorias do gênero.

CASA DE DINAMITE (A House of Dynamite, 2025, de Kathryn Bigelow): O poeta americano W. H. Auden escreveu que o prazer é o guia crítico menos falível de todos, o que explica minha relação com Casa de Dinamite, um filme de várias fragilidades, mas que, em última instância, conseguiu me deixar grudado nele do início ao fim. Trata-se do mais novo trabalho de Kathryn Bigelow cujo cinema, no geral, nunca chegou a me causar maiores comoções, e que agora assina a sua obra mais comercial, mesmo sem abandonar o estilo que lhe rendeu, inclusive, o primeiro Oscar de direção entregue a uma mulher com Guerra ao Terror. A diferença é que as discussões geopolíticas dão espaço muito mais amplo ao thriller e ao suspense, o que serve bem ao resultado de Casa de Dinamite, longa estruturado em três capítulos que mostram diferentes perspectivas para um mesmo espaço de tempo — no caso, os curtíssimos minutos quando o serviço de inteligência dos Estados Unidos percebe que está prestes a sofrer um misterioso ataque nuclear. Ninguém sabe de onde vem ou quem exatamente ordenou o movimento, restando apenas uma contagem regressiva das mais nervosas em que autoridades precisam tomar uma decisão, seja ela qual for. O primeiro ato é magnífico na construção da tensão, enquanto o segundo se sai admiravelmente bem ao manter a tração diante da reencenação dos fatos — e é aí que Bigelow imprime com destreza seu olhar quase documental em prol da imersão. Já o terceiro, centrado no personagem de Idris Elba, falha em praticamente todos os aspectos, da conclusão que não tem a devida pungência na falta proposital de respostas à própria ausência de atmosfera, onde fica evidente, por exemplo, o trabalho surpreendentemente preguiçoso de Volker Bertelmann em uma trilha sonora que parece apenas um copia-e-cola de seu trabalho em Conclave. Ainda assim, tal frustração não foi o suficiente para abalar a minha impressão positiva de Casa de Dinamite, que acompanhei com bastante interesse — e, portanto, com o guia crítico menos falível proposto por W.H. Auden.

OS ROSES: ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE (The Roses, 2025, de Jay Roach): Com Olivia Colman e Benedict Cumberbatch nos papéis principais, Os Roses: Até Que a Morte os Separa é uma refilmagem de A Guerra dos Roses, comédia de 1989 estrelada por Michael Douglas, Kathleen Turner e Danny DeVito, que, por sua vez, é baseado no romance homônimo de Warren Adler. Há atualizações que justificam esse retorno ao clássico, vingativo e venenoso embate de um casal diante de um complicado divórcio, como o enfoque dado à mediocridade e à masculinidade frágil de um pai de família que, repentinamente, deixa de ser o provedor da família e se vê às voltas com o desmoronamento da própria carreira. Já a mulher, antes uma cozinheira que abandonou a profissão para cuidar dos filhos, volta para a gastronomia com imenso êxito e sucesso, o que passa a acentuar uma série de conflitos no então pacífico matrimônio. Atento aos novos tempos, o roteiro escrito por Tony McNamara (A Favorita, Pobres Criaturas) transita com bom humor pelos meandros de um mundo em que os homens ainda têm imensa dificuldade em admitir fracassos e fragilidades — especialmente quando em contraste com gloriosos protagonismos femininos. Ao propor leituras como essa, Os Roses escapa de ser uma mera refilmagem caça-níquel, como já vemos aos montes no cinema norte-americano, e entrega divertidas observações sobre matrimônios que acabam ruindo mais por questões individuais de cada parceiro do que pelo casamento propriamente dito. Acontece que, tratando-se de um remake, é inevitável a expectativa em torno de como serão reproduzidos os elementos que consagraram a obra original, coisa que Os Roses até trabalha em seus materiais promocionais, mas falha em entregar na tela: a explosiva guerra do filme original e suprimida do título atual fica restrita a uma mínima fatia dos 121 minutos de duração e, quando entregue, soa como um clímax apressado, protocolar e pouco convincente mesmo dentro do espectro cômico construído até ali. O que era para ser o grande deleite de Os Roses acaba por ser, na verdade, uma inesperada frustração.  

SALVE ROSA (idem, 2025, de Susanna Lira): Comecei gostando do tom camp e artificial empregado a tudo — dos cenários perfeitinhos e coloridos em que Rosa (Klara Castanho) grava seus vídeos para a internet ao modo comercial de margarina com que Dora (Karine Teles) cria a filha, tudo parece perfeito demais para ser verdade, sinal desses nossos tempos cada vez mais obcecados com a aparência e com o olhar dos outros. A atmosfera se dissipa quando Salve Rosa revela a intenção de ser um The Act brasileiro, mas sem a mesma potência e criatividade da perturbadora minissérie estrelada por Joey King e Patricia Arquette. Não é apenas questão de propostas similares: na realidade, todo o desenvolvimento do roteiro escrito por Ângela Hirata Fabri dá a impressão de ser uma mera transposição da bem-sucedida produção estadunidense – que, por sua vez, adapta uma terrível história verídica. Ou seja, se você já viu The Act, automaticamente, você já viu Salve Rosa, cujo título, a certa altura, também já antecipa mais do que deveria para qualquer espectador atento. Outro problema é o filme estar tão empenhado em fazer uma denúncia, como se a exposição do problema central — no caso, os atos no mínimo criminosos de uma mãe que não quer perder os privilégios trazidos pela vida famosa da filha na internet – ditasse o funcionamento de tudo, seja ele do encadeamento dos fatos até o próprio tom das interpretações orbitantes às protagonistas. O terceiro ato, em particular, carimba a falta de sutilezas e de um olhar mais complexo para a confecção da dramaturgia. É nele que Salve Rosa, precisando dar vazão às catarses e resoluções inerentes a um thriller, corre rápido demais rumo à mensagem que deseja passar, sem se preocupar exatamente com a verossimilhança dos acontecimentos. A esta altura, Klara Castanho (vencedora do prêmio de melhor atriz no último Festival do Rio por sua performance) e Karine Teles estão meio que por elas próprias, carregando, cada uma à sua maneira, o interesse que, infelizmente, Salve Rosa desperta ao início, mas perde pouco a pouco ao longo do caminho.

A VIZINHA PERFEITA (The Perfect Neighbor, 2025, de Geeta Gandbhir): Ganhou o prêmio de melhor direção na mostra de documentários do último Festival de Sundance, além de ter vencido as categorias de melhor documentário, direção, montagem, documentário de arquivo e true crime da edição do Critics’ Choice Awards dedicada ao gênero. Todos os reconhecimentos são merecidos para este filme impactante de Geeta Gandbhir sobre o homicídio de Ajike Owens, morta pela vizinha Susan Loricz em 2023 após uma série de disputas envolvendo um grupo de crianças que brincava nas redondezas da vizinhança. Cerca de 90% do que se vê em A Vizinha Perfeita é constituído de câmeras acopladas aos uniformes dos policiais ao longo de todo o conflito, o que traz uma eficiência angustiante ao resultado, uma vez que acompanhamos todo o desenrolar dos fatos como se de fato estivéssemos em campo com as autoridades. Com o mínimo de interferência em cima dos acontecimentos, o documentário examina as controvérsias envolvendo a lei conhecida como “Stand Your Ground” nos Estados Unidos, que, basicamente, legitima ataques até mesmo letais caso seja comprovada a defesa do que se entende como território físico de cada pessoa. Obviamente, a lei é mais uma porta de entrada para a perpetuação do racismo sistêmico, já que estatísticas comprovam que a população negra sempre é a mais penalizada na aplicação dos efeitos da Stand Your Ground, principalmente em casos como o de Ajike Owens e Susan Loricz, sem provas concretas do crime, apenas a palavra de uma pessoa sobre o ocorrido. São questões que lançam luz sobre tantas outras definidoras da sociedade estadunidense — o porte de armas, a violência urbana, a desigualdade social — e que A Vizinha Perfeita conduz sem sensacionalismo, mesmo tendo um lado muito bem definido sobre toda a situação. Condenada a 25 anos de prisão, Susan Loricz sempre alegou inocência, mas conclusões de sobra podem ser tiradas a partir do documentário sobre como ela encapsula a maneira elástica e relapsa com que os Estados Unidos administram leis tão suscetíveis a relativizar o caos e a letalidade.

53º Festival de Cinema de Gramado #9: “Rua do Pescador Nº 6”, de Bárbara Paz

A catástrofe climática que acometeu o Rio Grande do Sul em maio de 2024 é filmada sem cor por Bárbara Paz no documentário Rua do Pescador Nº 6, que integra a mostra competitiva de longas-metragens gaúchos do 53º Festival de Cinema de Gramado. O preto-e-branco, aliado ao tom ensaístico, descortina uma obra sóbria e respeitosa às vidas afetadas pelas enchentes históricas. Não há um minuto sequer de espetacularização ou didatismo: como a refinada documentarista que já havia demonstrado ser no maravilhoso Babenco – Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, Bárbara rejeita o tom de reportagem já tão exercitado pela imprensa para aproveitar o potencial memorialístico e reflexivo do cinema, propondo um outro tipo de olhar — um mais humano, experimental e sensível.

Afirmo que Bárbara Paz é documentarista ímpar porque ela tem um profundo respeito pelas possibilidades audiovisuais que fogem ao óbvio, a começar pela opção de priorizar imagens a palavras, e sempre com a devida calma. A partir dessa escolha, Rua do Pescador Nº 6 é emoldurado com elegância e, acima de tudo, propriedade: no desenho de som assinado por Rodrigo Ferrante e André Tadeu está, por exemplo, o sopro do vento minuano que prenuncia as chuvas de repente tão temidas, assim como a discreta gaita de Renato Borghetti confere à trilha sonora marcas de sons característicos da cultura gaúcha. O uso do preto-e-branco, explorado com o virtuosismo habitual de Bruno Polidoro, ainda nos traz uma interessante dualidade: apesar de tamanha catástrofe parecer cinematográfica, ela é, na verdade, uma dura realidade.

O que interessa Bárbara Paz, contudo, é o pós-tragédia. Ainda que Rua Pescador Nº6 faça brevemente suas observações sobre as causas da catástrofe climática — assim como outras falas em off, a voz da ministra Marina Silva dá conta de contextualizar que as mudanças climáticas são fruto de uma série de decisões políticas —, o longa se concentra nessa linha tênue entre o desastre e o recomeço de uma população que vemos e ouvimos de perto. É assumindo um lugar de pensamento diante do registrado que o documentário, sim, mostra como pouco mudou desde 1941, quando o Rio Grande do Sul já havia sido afetado por outra enchente histórica, mas também — e até principalmente — reafirma o papel do cinema como registro histórico através do ponto de vista humano, sem uma vírgula de sensacionalismo ou oportunismo frente ao difícil trabalho de filmar e pensar uma tragédia conforme ela se materializa.

53º Festival de Cinema de Gramado #8: “Sonhar com Leões”, de Paolo Marinou-Blanco

A eutanásia é um inevitável paradoxo, pois o desejo pela morte celebra, na verdade, a vida — aquela vivida com dignidade, autonomia e consciência. Gilda (Denise Fraga), que enfrenta uma doença terminal e tem apenas um ano de vida pela frente, simboliza muito bem essa dicotomia, especialmente por carregar franquezas e cinismos que servem de norte para a construção de Sonhar com Leões, filme rodado em Portugal e na Espanha pelo diretor Paolo Marinou-Blanco e que faz sua estreia brasileira na competição do 53º Festival de Cinema de Gramado.

Em tom de tragicomédia, o longa se arrisca do início ao fim, misturando elementos como a quebra de quarta parede, o uso do humor para falar de assuntos complicadíssimos, a busca pela seriedade sem apelar para alguma cartilha temática e a costura da realidade com situações surreais. São ideias que, se transpostas do papel para as telas de forma torta, poderiam resultar em desastre, mas que Marinou-Blanco equilibra com imenso êxito. Em suas mãos, Sonhar com Leões se torna uma obra criativa, instigante e capaz de driblar uma série de armadilhas.

Há diálogos claros que o filme estabelece com outras produções de mesmo tema — impossível não lembrar, por exemplo, de longas como Ensina-Me a Viver, A Partida e o recente O Quarto ao Lado, ou do antológico seriado Six Feet Under —, e Sonhar com Leões ainda encontra espaço para atualizar o debate, colocando, por exemplo, a vida/morte de Gilda diante das contradições capitalistas atuais — como ela própria diz, hoje em dia há multinacional para tudo, inclusive para morrer ou para se ter uma morte de luxo.

A comédia em momento algum desrespeita ou minimiza tudo o que Sonhar com Leões abarca. Por sinal, acreditar que o gênero se prestaria automaticamente a isso é um erro tacanho. Comédias podem muito bem tratar sobre questões difíceis da vida com inteligência e humanidade, tese que Denise Fraga costuma trabalhar à perfeição em sua carreira no teatro, no cinema e na televisão. Por isso que sua presença como protagonista é tão simbólica: à parte toda emoção e técnica inerentes ao repertório da atriz, ela lapida aqui essa sua investigação sensível e perspicaz de como a risada nos é profundamente familiar.

Uma parcela do que Sonhar com Leões faz de admirável está em como a jornada da protagonista se modifica também na forma: de início adotando a quebra da quarta parede para evidenciar como Gilda só tem o espectador como confidente, o filme se desfaz desse artifício na medida em que o jovem Amadeu (João Nunes Monteiro) chega como um novo elo em sua vida. Juntos, eles embarcam em uma jornada transformadora e que reserva boas surpresas na discussão sobre o que significa estar realmente vivo. Tudo sem moralismos, não-me-toques ou, parafraseando o próprio longa, pena.

53º Festival de Cinema de Gramado #7: “Querido Mundo”, de Miguel Falabella

Nascido e forjado no teatro, Miguel Falabella diz ser diretor de cinema por paixão. Sua estreia como diretor de longas-metragens foi em 2008 com a comédia Polaroides Urbanas, estrelada pela saudosa Marília Pêra. Mais de uma década depois, em 2019, lançou Veneza, filme que viria a inaugurar aquela que pode muito bem ter se tornado a marca de Falabella como contador de histórias no cinema: a fábula. Não tenho maiores simpatias por essa obra que, por outro lado, é defenestrada pela crítica mais pelo preconceito com o tom fabulesco em si do que por sua execução pouco exitosa. A história parece se repetir agora com Querido Mundo, recebido de forma muito mista em sua estreia no 53º Festival de Cinema de Gramado, mas não por mim — aliás, acho que é visível seu amadurecimento como realizador entre um filme e outro.

Tendo como base o espetáculo homônimo escrito por ele próprio em parceria com Maria Carmen Barbosa, Falabella faz de Querido Mundo uma carta aberta ao amor — e a como precisamos de pessoas que verdadeiramente nos escutem. O otimismo é escancarado, o que por si só já considero uma qualidade em tempos de tantas adversidades, e o diretor abraça com gosto a sua verve popular. Para chegar à essência da fábula, o longa, claro, não se furta dos extremos: a protagonista vivida por Malu Galli, por exemplo, passa por todos os tipos de maus tratos nas mãos do marido, assim como o personagem de Eduardo Moscovis é pura inércia diante da amargura de sua agora ex-mulher Otília. Trata-se, no final das contas, da opressão que o bem sofre do mal, matéria-prima de incontáveis fábulas.

Os dias de Elsa (Galli) e Osvaldo (Moscovis) são registrados em preto-e-branco, enfatizando a supressão de cor na existência de duas pessoas que, talvez, nunca tenham recebido amor de verdade, e Querido Mundo não poupa na via crucis até o fatídico momento que conectará suas duas figuras centrais em meio às ruínas — literalmente. Tudo muda a partir daí, inclusive em termos de envolvimento com o filme, talvez pelo melhor aproveitamento da natureza teatral do texto que o diretor emoldura com uma técnica esmerada, da fotografia de Gustavo Habda à direção de arte de Tulé Peake. Em um palco de destroços, Querido Mundo encontra o seu melhor após uma primeira metade que se prolonga na preparação do terreno para o que realmente interessa.

Assim como nas fábulas, as emoções em jogo são puras, e os protagonistas caminham nessa linha tênue entre elas e a ingenuidade. Tanto Elsa quanto Osvaldo têm em comum a derrota — e ela própria, inclusive, diz com todas as letras que ambos são verdadeiros perdedores na vida. Em comum, contudo, há a vontade de reconstruir a vida e o amor, daí o otimismo da obra. Entre os acertos dessa abordagem, muitos pontos devem ser conferidos à Malu Galli, em desempenho que navega entre o drama e a comédia com naturalidade e luminosidade. É também pelo prazer de vê-la em boa química com Moscovis que, mesmo já gostando do resultado como um todo, senti falta de ainda mais espaço para o teatral em Querido Mundo.