
A última novela que acompanhei com absoluta devoção foi Avenida Brasil, lá em 2012, quando consumíamos audiovisual de maneira bem diferente. Desde então, nos últimos anos — e, especialmente, nas produções pós-pandemia —, não embarquei mais neste formato que tanto define o público brasileiro. Minha impressão é que não há espaço para contemplação: hoje, tramas precisam estar sempre recheadas de ganchos e reviravoltas, mesmo em detrimento do compromisso com a realidade e com a própria lógica interna de suas dramaturgias. É crime pra cá, trapaça pra lá, traição no meio, planos mirabolantes e um punhado de malabarismos só para manter uma história indo em frente, custe o que custar, naquilo que produtores e roteiristas acreditam ser a solução para prender a atenção de plateias dispersas diante da hiper conexão.
Ao menos para mim, ver novelas virou sinônimo de um constante exercício de suspensão de crença, o que até acho tolerável, desde que a recompensa seja muito boa, o que não tem sido o caso na grande maioria das produções recentes. Se os folhetins televisivos se veem em completa crise, seja ela criativa ou comercial, agora eles também precisam lidar com uma importante novidade: os streamings passaram a desbravar o mercado das novelas, e Beleza Fatal, a produção original Max que exibiu seu capítulo derradeiro nesta última sexta-feira (21), acaba sendo um marco em uma discussão acalorada em meio à crise catastrófica de, por exemplo, Mania de Você, que registrou há poucas semanas a pior audiência de uma novela das nove para a Rede Globo, desbancando Travessia, de Glória Perez, não por acaso, outra produção bastante recente.
Beleza Fatal mexe em muitos calos porque mobilizou o público: nas mídias sociais, foi comentada, virou meme, revigorou o embalo do ritual coletivo de se assistir semanalmente a um programa e, com mais liberdade para tratar de temas considerados espinhosos pela TV aberta, tocou em questões que refletem os dias atuais. Trata-se de uma novela que, assim como a ótima Pedaço de Mim, da Netflix, repensa formatos tradicionais, a começar pela existência de núcleos mais enxutos e um número menor de episódios. É fácil e divertido acompanhar Beleza Fatal, pois, com economia, pouco sobra em cena e todos os personagens criados pelo roteirista Raphael Montes estão ali para, de um jeito ou de outro, colaborar para que a história avance.

Há outro aspecto ao mesmo tempo importante e desafiador: no formato de streaming, a resposta do público não influencia no andamento da história, como acontece na TV aberta. Tudo já está escrito e filmado, e isso pode ser tanto uma bênção quanto uma maldição. Sem o termômetro do público, é impossível dosar mais ou menos os personagens e até mesmo repensar os rumos de uma trama a partir dos índices de audiência. Em suma, se a proposta de uma determinada novela pega, o sucesso, em tese, está garantido até o fim. Por outro lado, se não engrena, é impossível colocar mudar a rota. Felizmente, Beleza Fatal acerta a mão e mantém um fôlego admirável ao longo de suas dezenas de episódios, convicta de seu estilo e de sua proposta.
A minha relação conflituosa com a novela de estreia da Max reside na ideia de que ela, apesar dos inegáveis acertos, ainda carrega muitos vícios da TV aberta, mas falemos sobre isso daqui a pouco. De forma resumida, Beleza Fatal explora a linha tênue entre justiça e vingança, com foco no plano traçado por Sofia (Camila Queiroz) para derrubar Lola (Camila Pitanga), responsável por colocar sua mãe injustamente na prisão e, depois, mandar assassiná-la. Sofia vive com a família Paixão, também assombrada por uma tragédia pessoal: a morte da filha Rebeca (Fernanda Marques) pelas mãos de Rog (Marcelo Serrado) e Benjamin (Caio Blat) durante uma cirurgia plástica. E é claro: Lola não poderia deixar de estar envolvida com esse núcleo, liderado pela poderosa família Argento.
Metade do êxito de Beleza Fatal está na concepção dos personagens. Se Lola cumpre com folga o papel de uma vilã clássica, inescrupulosa e que adoramos odiar, o texto de Raphael Montes busca também conferir uma fragilidade imensa ao também vilão Benjamin ou, então, doçura e cumplicidade ao casal Elvira (Giovanna Antonelli) e Lino (Augusto Madeira). A escrita faz a trama partir de dilemas já consagrados — no caso, a eterna (e nada sutil) luta entre o bem e o mal — coexistir com perspectivas contemporâneas, entre elas, a naturalidade com que são discutidas questões sobre sexualidade identidade e sexualidade de gênero, seja com personagens abordados causas mais, digamos, panfletárias, ou com outros que se apresentam bissexuais sem que isso seja uma questão para os outros.
Muito do envolvimento despertado pelos personagens se deve à ótima escalação do elenco principal. Enquanto Camila Pitanga se diverte horrores na composição de Lola (e Beleza Fatal não poupa esforços para torná-la uma personagem marcante com bordões, desfile de figurinos e todo tipo de maldade), Caio Blat acerta em cheio na inegável mediocridade de seu Benjamin, um quase-homem com grandes aspirações, mas sem nenuma vocação para um dia minimamente alcançá-las. Outro que se diverte é Marcelo Serrado, muito feliz na caricatura das toscas facetas de um personagem detestável, bem como Giovanna Antonelli e Augusto Madeira, que esbanjam química e carisma como um casal humilde, apaixonado e pelo qual é fácil torcer.

Ainda assim, meu grande destaque vai para uma coadjuvante: Júlia Stockler como Gisela. Ela dá humanidade, camada e complexidade a uma personagem suscetível a um vitimismo piegas e sem muito alcance dramático. Sua jornada de autoconhecimento e de luta contra um relacionamento grotesco de tão abusivo é das mais bonitas da novela, tornando fácil a missão de solidarizarmos com uma personagem que, desde sempre sabemos, não merece passar por tamanho sofrimento pelas mãos do marido e de uma família a qual claramente não pertence. Stockler trata com delicadeza as fraquezas de uma mulher inerte diante do que lhe cerca e a gradativa força que ela adquire conforme abre os olhos para a realidade.
Não compartilho do mesmo entusiasmo pelo encadeamento da dramaturgia, cuja embalagem pop e camp se traduz melhor na direção geral de Maria de Médicis, profissional com vasta trajetória televisiva desde o início dos 2000, tendo já dirigido títulos como as minisséries JK e Queridos Amigos e novelas como Paraíso Tropical e Cheias de Charme. Em termos de roteiro, Beleza Fatal exige desprendimento integral da realidade por parte do espectador. Sobram conveniências em todas as storylines, que, caso fossem submetidas ao filtro do bom senso, jamais passariam da primeira leva de episódios. E aí mora a minha relação conflituosa com a novela: ela segue presa a saídas fáceis, exageros e suspensões de crença que, em grande parte, minaram a credibilidade do formato na TV aberta em anos recentes.
O formato condensado de episódios — Beleza Fatal se resolve em 40, contra as muitas vezes tradicionais centenas do gênero — ameniza o problema porque o investimento de tempo de quem assiste acaba sendo menor, porém, um comprometimento maior com a lógica cairia bem. O policial que não resolve absolutamente nada vivido por Enzo Romani é o menor dos problemas: do início ao fim, há um infinito entra e sai da delegacia e da prisão, como se as pessoas estivessem lá a passeio, advogados e investigadores mudando de lado conforme necessidade da trama para surpreender, incriminações repletas de furos e uma facilidade tremenda na execução de qualquer plano, sejam eles invasões a bancos, hackeamento de câmeras ou “simples” assassinatos. Se a consequência existe apenas diante de eventuais vontades do roteiro, como é possível levar a sério os perigos e as ameaças da história?

Há parte do público que celebra a “inspiração” e a “referência”, mas Beleza Fatal não é exatamente original ao fazer uma colagem de outros formatos e conflitos bem sucedidos na TV e no cinema. São um tanto excessivas as semelhanças com a premissa de Avenida Brasil, por exemplo, que ganhou o Brasil ao mostrar a história de, vejam só, a história de uma jovem que, ao longo de uma vida, traça um plano de vingança contra quem destruiu sua infância. Lá pelas tantas, Beleza Fatal também se move à la Parasita, o Oscarizado drama do sul-coreano Bong Joon-Ho sobre uma família pobre infiltrada no dia a dia de uma família rica. E o que dizer dos inegáveis toques de Succession na construção de Benjamin, o primogênito errático, fraco e mimado que tenta a todo custo conquistar a aprovação do pai e provar que merece estar na linha sucessória dos negócios da família?
O último capítulo, exibido de forma isolada pela Max, ao contrário dos outros, liberados a cada semana em blocos de cinco pelo streaming, colocou no liquidificador outros elementos de natureza novelesca, a exemplo do clássico “quem matou?”. Casamentos, julgamentos e viagens de última hora para o exterior também não faltaram. No entanto, Beleza Fatal acabou menos pulsante do que o esperado e amarrou às pressas o grande ponto de inflexão da novela: o de como a mocinha Sofia acabou embebedada pela vingança e se enraizou na mulher que sempre desejou destruir. Ótima provocação, inclusive bem defendida pela interpretação de Camila Queiroz. Já a execução… Nem tanto.
Somando acertos e fragilidades, a primeira novela da Max termina, sim, no saldo positivo — e o melhor de tudo: com o aval do público. Não chega a ser o novelão que o Brasil estava precisando como se chegou a anunciar pelas mídias sociais porque, apesar de conseguir perfilar bem o consumidor dos dias de hoje, ainda não dá um salto em termos de dramaturgia, preservando, repito, muitos vícios da TV aberta recente, tão ávida a priorizar a atenção em termos de números de audiência e não necessariamente em fidelização do público através de uma robustez dramática. Para uma estreia ambiciosa, no entanto, a Max sai ganhando — e, diante do sucesso, não faltará tema de casa e trabalho aos envolvidos.