
O diretor Fabio Meira diz que levou dez anos para escrever o roteiro de Tia Virgínia, mas que, na verdade, a gênese está em uma “pesquisa” de 43 anos observando a sua própria família e as mulheres que o formaram como ser humano. Assim é o cinema de Fabio: inspirado em lembranças pessoais e cercado de delicadeza para falar sobre aquilo que lhe é muito próximo, conhecido e, claro, familiar. As Duas Irenes, seu precioso trabalho de estreia, era baseado em histórias que o diretor ouvia e, agora, Tia Virgínia coloca na tela momentos que ele próprio testemunhou. Isso explica muita coisa sobre um longa-metragem tão bem apropriado de suas personagens e das relações estabelecidas entre elas.
A tia Virgínia do título é vivida por Vera Holtz. Trata-se de uma mulher que viu o tempo passar e não realizou nada na vida. Hoje, cansada e refém de uma rotina extenuante, cuida da mãe mais velha e que está em uma cadeira de rodas sem sequer conseguir falar. E, mais do que exausta, não estaria tia Virgínia enlouquecendo um pouco também? Sua tragédia pessoal não é esse contexto em si, mas sim a constatação de que ela está do jeito que está porque suas duas outras irmãs jogaram para ela a responsabilidade de cuidar da mãe, ainda que se abstenham de reconhecer qualquer parcela de autoria nisso. É nessa ciranda familiar que Tia Virgínia concentra ressentimentos, sonhos perdidos e, quem sabe, o vislumbre de uma ruptura.
Assim como no Álbum de Família de Tracy Letts, a tia Virgínia de Vera Holtz mal abre as janelas e as cortinas da casa, traduzindo o sufocamento vivido pela personagem e, logo em seguida, trazido pelas irmãs que chegam para o Natal. O grande atrito encenado pelo filme de Fabio Meira mora nessa interferência que as irmãs Valquíria (Louise Cardoso) e Vanda (Arlete Salles) insistem em fazer no modo como Virgínia vive sua vida e até mesmo cuida da casa e da mãe. Como o excelente roteirista que é, Meira transcende a abordagem clássica de irmãs que amam e se odeiam para também deixar o espectador curioso sobre o que a protagonista, frequentemente surpreendente e imprevisível, reserva para uma véspera de Natal em que promete fazer um importante anúncio.
Há muito mais do que a mistura entre drama e comédia no texto de Tia Virgínia. A cena em que a protagonista, por exemplo, cai em uma gargalhada descontrolada na hora do almoço é um passeio pelas variadas emoções dela própria e dos outros personagens à mesa, com diversão, estranhamento e até constrangimento. Ter as irmãs questionando a sanidade da irmã torna tudo ainda mais interessante tanto porque nos coloca nesse mesmo lugar quanto nos faz entender que muitas das “loucuras” de Virgínia são uma maneira da personagem extravasar aquilo que a manipulação não tão velada das irmãs varre para debaixo do tapete em um constante jogo de aparências.
Para dar vida às personagens, Fabio Meira reuniu um elenco de primeira. Impossível não começar a falar sobre ele sem esbaldar reconhecimento para o grande desempenho de Vera Holtz, que não costuma receber protagonismos como esse no cinema brasileiro. Ela encontra o equilíbrio perfeito entre todas as facetas de Virgínia e tem momentos que levaram a plateia do 51º Festival de Cinema de Gramado à apoteose, com direito a aplausos em cena aberta. Vera está muitíssimo bem acompanhado de Arlete Salles e Louise Cardoso, seja pela performance individual de cada uma ou pela inegável química como um trio. Ainda há o pequeno papel de Antônio Pitanga, que diverte sem se estabelecer como um simples alívio cômico.
Como diretor, Fabio Meira comanda Tia Virgínia com esmero, fazendo escolhas interessantíssimas e, por que não, ousadas, a exemplo de quando deixa fora de quadro um embate catártico da trama, entregando ao espectador a missão de tentar imaginar aquilo que não conseguimos ver. A mise-em-scéne garante que o resultado não se assemelhe a uma peça de teatro filmada (o que costuma ser uma dificuldade para longas ambientados em um único espaço) e a cuidadosa direção de arte comunica discretamente a história daquele núcleo familiar. Se, com As Duas Irenes, Fabio Meira já era um cineasta a se acompanhar, agora, com Tia Virgínia, consolida sua identidade como realizador e deixa a curiosidade se o que vem por aí é, quem sabe, o último capítulo de uma trilogia inspirada em suas crônicas familiares.
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