Maratona de séries em tempos de pandemia: “I Know This Much is True”, “The Good Fight”, “Homecoming”, “Mrs. America” e “The New Pope”

“I Know This Much is True” (HBO, minissérie)

O diretor Derek Cianfrance, que já havia estraçalhado meu coração anos atrás com Namorados Para Sempre, adapta o romance homônimo de Wally Lamb para contar a trágica odisseia de dois irmãos gêmeos fadados à dor desde a infância. Um deles é esquizofrênico. O outro tenta seguir a vida de alguma forma mesmo sendo o único porto seguro do irmão. Ambos são interpretados por Mark Ruffalo, que nunca esteve tão bem em toda a sua carreira, apoiado por um elenco feminino de dar inveja (Kathryn Hahn, Rosie O’Donell, Archie Panjabi, Melissa Leo). E a excelente notícia é que I Know This Much is True não cede à clássica tentação de focar no irmão esquizofrênico para mostrar como Ruffalo é bom ator. O que Cianfrance faz é contar tudo sob o ponto de vista do irmão que tenta atravessar a vida sem deixar que a doença do outro defina seus caminhos e escolhas, ainda que, no final das contas, ele não consiga escapar disso.

Poucas vezes vimos tanta desgraça reunida quanto nessa minissérie da HBO: qundo parece que não é mais possível piorar, I Know This Much is True surge com outra paulada. Boa parte desse impacto também vem de um talento muito característico de Cianfrance: o de pincelar a dor através da nossa relação com o tempo, exatamente como vimos em Namorados Para Sempre, onde íamos e voltávamos na história de um casal para entender a sua ruína, ou no subestimado O Lugar Onde Tudo Termina, forte drama sobre como certas feridas são passadas de geração para geração. No caso de I Know This Much is True, o diretor opta novamente pelos flashbacks. Entre a ideia de que certas vidas parecem amaldiçoadas e a tese de que seria muito fácil culpar o destino ao invés de assumir nossas próprias escolhas, a minissérie termina por calibrar muito bem o retrato do sofrimento, sem jamais soar apelativa. Tudo que está nessa dolorosa crônica não passa mesmo de vida real. Uma experiência para os fortes.

“The Good Fight” (CBS All Access, 4ª temporada)

O spin-off da clássica The Good Wife foi diretamente afetada pela pandemia, que impediu a equipe de concluir três dos 10 episódios previstos para essa temporada. A incompletude é sentida na tela, uma vez que fica difícil julgar a quarta temporada porque muitos arcos e conflitos não foram concluídos, como o mistério do Memo 618, responsável por boa parte do entretenimento desses episódios disponibilizados. Da forma como foi exibida, a temporada tem seus problemas: participações especiais que nada acrescentam (personagens inesquecíveis como Louis Canning e David Lee dão às caras sem fazer muita diferença para a história), a protagonista Diane Lockhart (Christine Baranski, sempre impecável) é frequentemente jogada para o campo dos coadjuvantes e alguns atores começam a parecer dispensáveis (não à toa, Delroy Lindo e Cush Jumbo anunciaram sua saída do programa). Já o humor muito particular da série e a identidade que ela construiu com grande esmero se desvinculando de The Good Wife nos últimos anos permanecem intactos.

É perceptível o quanto os criadores Robert e Michelle King recuaram na questão política que tanto marcou o terceiro ano, quando The Good Fight se tornou, com uma subestimada inspiração, a série mais posicionada do ponto de vista político na indústria norte-americana. Tal recuo é um erro, mesmo que o público tenha reclamando do viés excessivamente político. Isso porque, na nova leva de episódios, temos um claro exemplo de como a fórmula pode render episódios brilhantes. Falo especificamente de The Gang Deals with Alternate Reality, onde Diane Lockhart, vivendo um delírio, acorda nos Estados Unidos onde Hillary Clinton ganhou as últimas eleições presidenciais. Inspirado e divertido, o episódio promove importantes reflexões do ponto de vista republicano e democrata, ousando até mesmo ao propôr a tese de que, sem o machismo da campanha e do governo de Donald Trump, movimentos como o #MeToo talvez sequer tivessem vindo à tona. A série já está renovada para uma quinta temporada.

“Homecoming” (Prime Video, 2ª temporada)

É uma desnecessária continuação para a temporada anterior, que tinha na presença de Julia Roberts como protagonista uma imensa ancoragem. Pois Julia não volta (agora só assina como produtora executiva) e quem assume o protagonismo é a “cantriz” Janelle Monáe, cuja presença em nenhum momento preenche a tela ou instiga o espectador. Aliás, quem rouba a cena é mesmo a tailandesa Hong Chau, que tinha papel pequeno na primeira temporada e que esteve em Watchmen, uma das minisséries mais brilhantes de 2019. O segundo ano não se trata necessariamente de um spin-off, pois em partes descobrimos que a trama existe para dar conclusão e expandir conflitos da primeira leva de episódios. A tentativa de conectar os dois anos do programa é falha, especialmente se levarmos em consideração o quanto a hipnotizante estética de Homecoming não consegue sequer dosar algum interesse pela trama fria e vazia.

Com apenas sete episódios de meia hora (três a menos que a temporada anterior), essa sequência frustra inclusive em aspectos mais estruturais, como o fato de parecer um filme picotado em sete partes. Vale perceber como são vários os episódios que dizem muito pouco e acabam sequer tento uma lógica própria, sem falar nos frágeis ganchos deixados a cada desfecho, que não chegam nem perto de estimular a curiosidade como acontecia quando Julia Roberts era protagonista. Fica a sensação de prato requentado, embora tentativas não faltem, a exemplo das aquisições de Chris Cooper e Joan Cusack para o elenco (os dois, contudo, estão reduzidos a papeis subutilizados ou um tanto confusos). Não era de se esperar que Homecoming sucumbisse à previsibilidade e a alguns vícios tão cedo. Sem ter repercutido com público e crítica, o segundo ano pode ser o último do seriado, já que uma nova temporada ainda não foi confirmada.

“Mrs. America” (FX, minissérie)

Mrs. America é um prato cheio caso você seja o tipo de espectador que encontra certo fascínio ao se deparar com personagens detestáveis. Afinal, como não ter os nervos testados por Phyllis Schlafly (Cate Blanchett), a anti-feminista ultraconservadora que fez de tudo para barrar o avanço dos direitos das mulheres nos Estados Unidos durante a década de 1970? Como pano de fundo, a minissérie da FX traz a famosa luta de diversas feministas pela Emenda dos Direitos Iguais (Equal Rights Amendment, em inglês), proposta à Constituição dos Estados Unidos para garantir direitos legais iguais para todos os cidadãos americanos, independentemente do sexo. A ironia é que Schlafly, decidida a sabotar a implementação dessa emenda em todos os cantos dos Estados Unidos, usufruía justamente daquilo que tanto queria tirar das mulheres: entre outros itens, a possibilidade de trabalhar, ter uma carreira e ser independente. Para ela, a população feminina deveria servir ao lar e à família, enquanto ela própria viajava o país e fazia uma carreira reconhecida pelos republicanos conservadores.

Narrada em nove partes, Mrs. America tem todos os episódios com uma mulher na direção e divide o protagonismo de cada uma de suas passagens entre diferentes coadjuvantes que atravessam toda a trama, como a Gloria Steinem de Rose Byrne ou a Bella Abzug de Margo Martindale. Ainda assim, é a partir da figura de Phyllis Schlafly que o programa se desdobra, mostrando como cada uma das ativistas feministas reage à essa figura ultraconservadora inicialmente tratada como piada, mas logo encarada como uma ameça real a importantes lutas. Faz muito bem a minissérie ter esse rodízio de personagens e centrar suas perspectivas no discurso contraditório de uma figura polêmica como Schlafly, interpretada com traços tão complexos quanto detestáveis pela excelente Cate Blanchett. São duas escolhas que arejam Mrs. America e que impedem o programa de ser um daqueles relatos históricos tão convencionais, didáticos e produzidos apenas para mimetizar a vida real como um documentário.

“The New Pope” (HBO/SKY, 2ª temporada)

Sou fã incondicional da temporada anterior, intitulada The Young Pope, onde Jude Law nunca esteve tão inspirado e o cineasta italiano Paolo Sorrentino filmava com sua imponência habitual vista também em títulos como o belo longa-metragem A Juventude. A ideia de uma continuação parecia bacana, mas, conferindo esse segundo ano, penso que poderiam ter ficado apenas com o primeiro. Aqui há aquela famosa tomada de consciência que faz o espectador perceber o quanto um diretor está dedicado a ampliar e repetir os elementos de um projeto anterior. Pois é exatamente isso o que Sorrentino, também autor do roteiro dos nove episódios ao lado de Stefano Bises e Umberto Contarello, faz em The New Pope, uma produção muito mais escrachada, satírica e explícita do que a temporada anterior. O espectro de coadjuvantes também ganha mais espaço, muitas vezes pulverizando o protagonismo agora entregue a John Malkovich. Resultado: com tudo ampliado, The New Pope perde em sutilezas.

Outro aspecto importante para balizarmos os deslizes dessa continuação é o pouco tempo de tela dado a Jude Law, que faz muita falta como o sempre enigmático, sedutor e capcioso Pius XIII. Por razões explicadas na trama e que não serão reproduzidas aqui para evitar spoilers, seus holofotes são transferidos para John Malkovich, visivelmente entretido com as palavras e os maneirismos de um personagem interessante, embora muito longe de representar o fascínio daquele vivido por Jude Law. Não por acaso, Law domina todo o seu limitado espaço em cena e ainda sobrevive aos fracos conflitos do terço final da temporada. Sorrentino continua levantando pontos importantes e interessantes sobre a fé (destaque para a discussão envolvendo a mini-rebelião de um grupo de feiras que decide enfrentar o patriarcado tão marcante do catolicismo), mas a corda foi esticada mais do que deveria, quase descaracterizando a fluidez de provocações e emoções registradas no primeiro ano. Não há pistas de que existirá uma nova temporada.

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