“Rocketman”: em seu melhor, cinebiografia faz jus ao legado de Elton John com imaginação e autenticidade

It’s going to be a wild ride.

Direção: Dexter Fletcher

Roteiro: Lee Hall

Elenco: Taron Egerton, Jamie Bell, Richard Madden, Bryce Dallas Howard, Gemma Jones, Steven Mackintosh, Tom Bennett, Matthew Illesley, Kit Connor, Charlie Rowe, Peter O’Hanlon, Ross Farrelly

Reino Unido/EUA, 2019, Musical, 121 minutos

Sinopse: A trajetória de como o tímido Reginald Dwight (Taron Egerton) se transformou em Elton John, ícone da música pop. Desde a infância complicada, fruto do descaso do pai pela família, sua história de vida é contada através da releitura das músicas do superstar, incluindo a relação do cantor com o compositor e parceiro profissional Bernie Taupin (Jamie Bell) e o empresário e o ex-amante John Reid (Richard Madden). (Adoro Cinema)

Como um disco arranhado, tenho a sensação de escrever sempre a mesma coisa quando assisto a alguma cinebiografia baseada na trajetória de cantores ou grupos musicais. Em grande parte, isso se dá pelo fato de projetos como ElisBohemian RhapsodyRayJohnny & JuneTim Maia serem os mesmos em sua composição. Se você viu uma, já viu todas. Ao mesmo tempo, não deixa de ser um gosto adquirido: cada vez mais, cinebiografias musicais conquistam as plateias, e Bohemian Rhapsody, inspirado na trajetória do Queen e mais especificamente na vida de Freddie Mercury, tornou-se o maior marco recente nesse sentido, arrecadando mais de 900 milhões de dólares ao redor do mundo e vencendo nada menos do que quatro Oscars (ator para Rami Malek, montagem, edição de som e mixagem de som). Assim como as leituras live action da Disney para vários de seus clássicos, as cinebiografias musicais são um caminho sem volta no cinema popular.

Passada a euforia inicial dessa tendência, vem a questão: afinal, quantas serão de fato lembradas? Raramente, há títulos que quebram barreiras no circuito independente, como Não Estou Lá, por exemplo, que, dirigido por Todd Haynes, homenageou Bob Dylan de maneira bastante inusitada, mas, considerando obras com expressivo apelo popular produzidas por grandes estúdios, poucas são imaginativas e nenhuma deve se comparar a Rocketman, que, em cartaz nos cinemas brasileiros, opta por narrar a vida de Elton John com a lógica clássica de um musical e não simplesmente com uma colagem displicente dos melhores hits do cantor. Isso quer dizer que, quebrando a tradição de outros títulos do gênero, o filme assinado por Dexter Fletcher incorpora o repertório de Elton à história, onde o próprio elenco canta as músicas em diferentes sequências ou até em diálogos corriqueiros. Mesmo quando está no palco, o protagonista não interpreta clássicos como Crocodile Rock ou a própria Rocketman com banalidade: na primeira, Elton literalmente flutua com o público, enquanto, na segunda, ele sai direto de uma ambulância para entrar no palco e, logo em seguida, ser lançado ao espaço como um foguete.

Tanta imaginação e assertividade no poder da clássica narrativa de filmes musicais confere a Rocketman um tom criativo que o difere de outras cinebiografias, abrindo portas para que demais títulos do gênero se sintam validados a seguir caminhos diferentes do que aí estão. Fletcher, que finalizou Bohemian Rhapsody após Bryan Singer ter sido demitido da direção quase ao final das gravações, é claramente um realizador afeito a musicais, trazendo grandes contribuições para um projeto que em momento algum se envergonha de sua natureza e muito menos de seu extravagante personagem, aqui representado com total liberdade e naturalidade. Essa, inclusive, foi uma exigência do próprio Elton John: que sua vida não fosse maquiada ou amortecida e que suas fraquezas estivessem tão presentes no filme quanto as suas qualidades. A carta branca dada pelo cantor também na parte musical — ele fez questão que Taron Egerton cantasse as músicas para conferir autenticidade à encenação — engrandece o conceito de Rocketman, que, além de não ser um mero lipsync, conta toda uma vida sem amarras e com suas próprias ideias.

Com números musicais originais e encantadores, o filme esbanja dignidade por incorporar uma fantasia que sempre esteve presente tanto nos figurinos hiperbólicos da carreira de Elton John quanto na sua própria imaginação, algo que fez o cantor sobreviver a uma vida familiar de desamparo e a um vivência afetiva quase inexistente até meados da vida adulta. É tão bonito ver uma cinebiografia reverenciar seu biografado rompendo as formalidades que, por isso mesmo, é frustrante constatar a fragilidade do filme quando a história está com os pés firmados no chão. Ao tentar dimensionar seus personagens sem o uso da música ou da imaginação, Rocketman se limita, inclusive porque a trajetória de ascensão-queda-reerguimento do cantor é menos complexa do que o projeto supõe ou tenta engrandecer. Elton John chegou ao topo sem muitas dificuldades profissionais, e o ponto baixo de sua carreira foi uma longa temporada de problemas com álcool e drogas. Há drama nisso? Com certeza, mas o roteiro insiste em pesar a mão nessa crise existencial, tomando tempo demais da projeção e fazendo com que o espectador deseje logo a chegada do próximo número musical.

Quando opta por caminhos desprovidos de música e sonhos, o roteiro de Rocketman segue a cartilha das cinebiografias que vemos de tempos em tempos: manchetes de jornais jogadas na tela para contextualizar a repercussão pública do protagonista, momentos registrados de maneira tão displicente que parecem fazer parte de uma checklist de fatos sobre a vida do biografado (o casamento de Elton com Renate Blauel dura, no máximo, duas cenas) e há, claro, todo um ciclo de descida ao inferno e reconciliação com diálogos e mensagens expositivas. Entre a imaginação e a convencionalidade, o longa de Dexter Fletcher oscila bastante, o que é sentindo também em função de escalações equivocadíssimas, como a de Bryce Dallas Howard (caricata como de costume, ela vive a mãe do protagonista e perde a chance de trazer qualquer sutileza a uma personagem nada empática), e de tratamentos unidimensionais a figuras importantes, como o namorado de Elton vivido por Richard Madden.

Ainda assim, o roteiro escrito por Lee Hall (Cavalo de Guerra, Victoria e Abdul: O Confidente da Rainha) acerta na construção específica de uma relação que, no final das contas, é o comovente centro emocional de Rocketman: a amizade entre Elton John e Bernie Taupin, que compôs praticamente todos os clássicos emoldurados pelo cantor com inesquecíveis melodias. A relação entre os dois é tocante porque celebra algo inerente a todos nós (a amizade) e é muito bem personificada pela química entre Taron Egeron e Jamie Bell. Egerton, que merece aplausos pela entrega emocional e pelo absoluto empenho em cantar e dançar todas as sequências musicais, é o dono do show, mas é quando ele contracena com Bell que o filme encontra os seus sentimentos mais genuínos. O coração de Rocketman está nessa história, e ela é importante para compreendermos o quanto essa versão cinematográfica da vida de Elton não deixa de ser uma forma do próprio cantor expurgar seus próprios demônios. Dexter Fletcher pode até ter dirigido um filme com abordagens infinitamente mais interessantes do que outras, mas, no geral, foi fidelíssimo a seu biografado em todas as facetas. Em seu melhor, Rocketman é puro Elton John.

2 comentários em ““Rocketman”: em seu melhor, cinebiografia faz jus ao legado de Elton John com imaginação e autenticidade

  1. Pingback: Adeus, 2019! (e as melhores cenas do ano) | Cinema e Argumento

  2. O que eu mais gostei em “Rocketman” foi como o filme se aproxima dos elementos mais clássicos dos musicais, com as canções de Elton John sendo inseridas como retratos de momentos de sua vida. Além disso, gostei muito da atuação de Taron Egerton.

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